20081222

O Natal como ele é II

(coluna publicada no jornal Correio Popular, de Campinas/SP, em 24 de dezembro de 2002)

No último Natal, vimos como Dilamor descobriu, em pleno Atol das Rocas, que um espírito elevado é capaz de suplantar até os mais profundos ressentimentos de quem não ganhou nenhum presente da gente. Neste ano, a mensagem divina nos leva até a Penitenciária Estadual. Na cozinha do tenebroso casarão conhecido como Cadeião da Trindade, escreveu-se uma das mais impressionantes páginas da história do cristianismo. Naquela noite revestida de significado foram plantadas as sementes que desabrochariam na conversão de Guido Copertone. Ou: cada um faz o bem como bem entende.

Sedentário, relapso e cafajeste, aos 23 anos Copertone portava-se como um completo parasita. Jovem criado no tucanato, viu na eleição do pai como deputado a chance de descolar uma boquinha no serviço público. O velho ficou no dilema. Descendente direto dos italianos que desbravaram o Sul do Brasil, uma gente honesta e trabalhadora, que ria das adversidades e acostumada a dizer “obrigado” no lugar de “quanto custa?”, não iria permitir que um capricho do júnior jogasse sua biografia na lama. Ao mesmo tempo, movia montanhas se necessário para atender às vontades do filho. Limpou sua consciência arrumando uma vaga como cozinheiro-chefe dos detentos. Se sobrevivesse na função, o guri provaria ter herdado a fibra dos antepassados. E aí, quem sabe, seria promovido a estafeta em uma repartição qualquer, sem nenhum ônus para a reputação familiar.

E lá se foi Copertone, 1,60 de altura, ser chamado de “mestre” pelos internos já domesticados, que reuniam condições de civilidade suficientes para coexistir entre facas e óleo quente sem pensar besteira. “Trate-os como animais”, aconselhou seu pai antes de abandoná-lo na porta do Cadeião. No primeiro dia, botou em prática o ensinamento. Um polaco magro e alto, que picava tomate, deixou cair três rodelas no chão. Copertone, do outro lado da cozinha, gritou para que todo mundo ouvisse: “Se liga, seu (palavrão que nem o marginal conhecia). Na próxima, é a casa que vai cair aqui!”. O cara, condenado por ter matado com 115 punhaladas o patrão que o despediu, abaixou a cabeça sem olhar para o cutelo que manejava e murmurou um “sinsinhô, mestre”. Copertone sentiu-se em casa.

A jornada na cozinha do Cadeião começava às 4 da tarde e durava 24 horas, com folga nos dois dias seguintes. Nesse esquema de três turmas se revezando, Copertone entrou na escala de 24 de dezembro. Chegou mal-humorado, mais pela ausência de TV a cabo do que por virar o Natal naquele muquifo. Às 2 da manhã, com todos dormindo no quartinho anexo aos fogões, ele se levantou, decidido. Ligou para o seu chapa Cabelo e implorou por vodka. Em menos de meia hora, o amigo conseguiu atravessar três garrafas. Em silêncio, Copertone tomou uma dose. Duas. Na terceira, acordou a rapaziada dizendo que era o Papai Noel. Mandou os presidiários fazerem fila, que iria distribuir o elixir.

Dezesseis homens, um atrás do outro, pacientemente esperavam pelo seu quinhão, a tampinha da garrafa com um gole de bebida. Às 6 horas, os criminosos riam e choravam e abraçavam Copertone, soluçando que aquele foi o melhor Natal que passaram no Cadeião. Zezinho Ninja, emocionado, desmanchou-se em gratidão: “Mestre, se quiser um som novo pro carro, é só me chamar.” O tempo passou e Copertone encontrou sua vocação, tornando-se policial civil. Certa noite, capturou um bandido roubando a casa de um ex-governador envolvido no escândalo dos precatórios. Segurando o meliante pelo cangote, reconheceu-o. Então, em vez de lhe aplicar os óculos árabes (a maior humilhação que um homem pode sofrer), lembrou-se da cumplicidade etílica e apenas lhe desferiu um tiro em cada joelho. Com o butim do assalto, ligou para Cabelo e enfiaram o pé na jaca.

20081219

O Natal como ele é

(coluna publicada no jornal Correio Popular, de Campinas/SP, em 25 de dezembro de 2001)

Aquele réveillon prometia. Com mais dois casais, Dilamor e Gina alugaram uma escuna que os levaria de Natal até Fernando de Noronha, onde saudariam o ano vindouro de um jeito doce na Cacimba do Padre. A embarcação deixou a capital do Rio Grande do Norte no dia 22 de dezembro. Em pouco tempo, só os homens estavam curtindo a viagem, incluindo no rol o capitão do barco, um holandês com a pele rosa, esturricada pelo sol inclemente do litoral potiguar, que não parava de contar histórias de sua adolescência herbífumo-uterina pelas quebradas de Amsterdã. As mulheres, enfastiadas, limitavam-se a suspirar e a proferir variações de “não aguento mais ver mar” e “falta muito, papai Smurf?”.

O protesto feminino foi surpreendido dois dias depois. A noite se insinuava no horizonte quando uma pequena faixa de terra quebrou a monotonia visual. “Aquilo é o Atol das Rocas, a primeira reserva biológica do Brasil, criada em 1979. Pelas minhas contas, devemos estar a uns 240 quilômetros da costa do Estado”, apontou o holandês. “É formado por uma coroa de coral sobre um pilar vulcânico, em cujo centro está uma lagoa de água salgada. Sem água potável e com rala cobertura vegetal, o atol é o refúgio para uma enorme quantidade de aves marinhas. A sede da reserva é utilizada por pesquisadores que estudam peixes e aves, e ali também é um importante centro de estudo e proteção de tartarugas marinhas”, prosseguiu o capitão, como se tivesse decorado o Almanaque Abril.

Tanto mulheres quanto homens entenderam apenas a última frase. Aquela silhueta em forma de casinha devia ser a sede da reserva e aquelas três sombrinhas agitadas, os tais pesquisadores
que estudam peixes e aves. Resolveram aportar a uma distância segura dos corais, mas próxima o suficiente para perceber que os gestos que vinham do atol não eram amistosos. “Vocês não podem desembarcar aqui”, gritavam da pequena faixa de terra. “Isso é área militar.” Dilamor, que, embora não reclamasse, também já estava de saco cheio de tanto mar, revoltou-se. “Porra, não vim de tão longe para ser proibido de descer aqui!”, conspirou com a tripulação. “Vou lá, sim! Quero passar o Natal no Atol das Rocas.”

Pegou um saco plástico e nele enfiou uma garrafa de uísque e um torrão de mais ou menos 70 gramas do mato que a Soninha gosta. E se atirou na água, uma vez que a única maneira de chegar até o atol seria a nado, pois os corais impediam o uso do bote inflável. Gina, na murada da escuna, não sabia se pedia para ele voltar ou se torcia para que ele se entendesse com os caras e sinalizasse com a permissão para que todo mundo deixasse aquele barco “miserável”. Iluminado pela lua cheia, Dilamor seguia compenetrado em seu propósito de vencer os 300 metros que separavam o chacoalhar do barco (nem jogar futebol de botão direito ele conseguia) daquele porto seguro. A uns 200 metros da costa, ele pôde ver melhor o que lhe aguardava: três homens, que continuavam a gritar para que ele se afastasse.


Cada recomendação funcionava como um revigorante para as forças de Dilamor, que apertava os lábios em torno da ponta do saco plástico e dobrava o ritmo de suas braçadas. Finalmente, chegou à terra, tomando cuidado para que o costão bravio não avariasse suas oferendas. O trio já esperava com cara de reprovação. Antes que eles dissessem qualquer coisa, Dilamor desamarrou o saco. Para o primeiro, jogou a garrafa. Para o segundo, aquele estranho pacote do tamanho de um sabonete. O terceiro, de mãos vazias, gritou: “Papai Noel!”. E, nesse instante, Dilamor compreendeu que o espírito de Natal é algo muito poderoso, capaz de suplantar até os mais profundos ressentimentos de quem não ganhou nenhum presente da gente.

20081216

Voltamos em breve com a programação anormal

Primeiro, deixa eu me recuperar da existência de uma banda chamada The Pussy Gourmets.

20081123

A pessoa é para o que nasce

Uns denunciam a falta de liberdade com receitas culinárias e poemas.

Outros fazem da falta de assunto o próprio assunto.


Celebremos a falta de alma com música. Porque uns cantam enquanto outros morrem.


AMADOU & MARIAM, “La Triste Realité”

20081112

Parabéns, Neil Young

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Há exatos 63 anos, nascia um dos caras que faz com que esta porra toda ainda tenha algum sentido.

NEIL YOUNG, "Down by the River"

20081030

O lado patético do sucesso

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De uns dias para cá, este VEÍCULO vem experimentando surtos de audiência como se não houvesse amanhã. São editores monitorando se eu publico alguma coisa nova, em busca de mais um motivo para me amaldiçoar até a sétima geração: “Ainda não entregou o texto que te encomendamos, mas tem tempo para besteira, né, bastardo?!”.

Espero, sinceramente, que meus constantes – e já folclóricos – atrasos não maculem nossa relação. E torço, com todas as minhas forças, para que caia a exigência de diploma no exercício do jornalismo. Assim, a atividade deixará de ser um ofício para se tornar a ARTE que de fato é, proporcionando-me álibis muito mais nobres para a procrastinação. Isso aqui não é uma pastelaria.

20081027

76.629

Esse é o número de eleitores que não votaram em ninguém no segundo turno da eleição para a prefeitura de Florianópolis. Quando ficou definido que a capital catarinense seria, inevitavelmente, gerida por este ou por aquele, pessoas esclarecidas dispuseram-se a fazer uma série de contorcionismos mentais para justificar sua preferência – ou tolerância – em um dos dois candidatos. Destaco os argumentos, um para cada lado, que mais me chamaram a atenção.

1) “Vou votar no mais velho, que já roubou bastante, não precisa mais.” O raciocínio, de uma simplicidade que beira a caricatura, ignora que, nesse meio, ninguém rouba porque precisa. A corrupção é patológica. Ao contrário do ditado popular, em política é o próprio ladrão que faz a ocasião.

2) “Vou votar no menos velho, que é para enterrar de vez o outro.” Trata-se de uma visão mais sofisticada e pragmática do processo. Seria a primeira derrota de um, o que não o impediria de estar de volta daqui a dois anos pedindo o seu voto. Seria o terceiro revés consecutivo do outro (e para o mesmo adversário), o que deve incentivá-lo a dedicar cada vez mais o seu tempo a renhidas partidas de dominó. Não é nada, seria um a menos para se combater em 2010.

Foram apuradas 53.914 abstenções, 16.827 nulos e 5.888 brancos. Em um universo de 301.967 títulos, dá pouco mais de 25% do total. Significa que um em cada quatro cidadãos não se sentiu representado (entre outras razões rancorosas e impublicáveis) pelas duas propostas que lhe foram apresentadas.

São quase 80 mil pessoas. Gente de classes sociais, grau de instrução, gostos, religiões e ideologias diferentes, que se uniu no repúdio. É um baita público-alvo para algum negócio. Por defeito de ofício, só penso em publicação, como um pasquim semanal de custo baixíssimo, feito para dar lucro considerando que apenas 2% (1,5 mil exemplares) desse contingente iriam comprá-lo. Mas deve haver idéias mais criativas, rentáveis e prazerosas do que contar com o interesse da população por leitura.

Aceito propostas. Serão respondidas apenas aquelas que incluírem remuneração.

20081017

Pau-de sebo virtual com passaporte carimbado

De Olinda para o éter, o DJ Bruno Pedrosa manda avisar que saiu a compilação Criolina Brazilian Grooves, parceria da festa brasiliense Criolina com a revista francesa Brazuca. Enquanto baixo o pacote, penso como ainda vai demorar para o CD deixar de ser a referência de formato. As 34 faixas estão disponíveis online, dispostas para ocuparem dois discos, inclusive com capa e selo. Duvido que alguém vá realmente queimar uma cópia, imprimir as artes, recortar, colar na bolachinha e colocar em uma caixa plástica. Senão por todos os desperdícios envolvidos – dos quais o de tempo é que mais me aflige –, pela música.

Talvez a vadiagem esteja embotando minha opinião ou o negócio seja only for export, sei lá. Mas, pô, Bruno, tu mesmo já fez
coisa melhor do que esta “3 Segundos”. Assim como tenho certeza de que melhor vai ficar o disco de dub que tu anda fazendo com o Canibal, dos Devotos (ex) do Ódio. Quando sai? Quero me exibir dizendo que participei do nascimento da idéia, um dos raros lampejos que lembro antes de trocarmos a Feira Música Brasil de 2006 2007 por uma festa nelvosa no Preto Velho, no Alto da Sé: I Love Cafuçu, organizada pelas “lindinhas” locais, onde o “cafuçu” (homem canalha) pagava menos do que a “rariú” (corruptela do “how are you?” que as nativas usam para abordar o turista) e rolava de true brega a new rave.

O que se aproveita da coletânea não é exatamente novidade para qualquer um que acompanha minimamente artistas que “trabalham uma música brasileira moderna, atenta às misturas do resto do mundo”, conforme o release. Como esse remix beleza para “Guerreiro”, de Curumim, cujo show realizado há algumas semanas por essas plagas deixou os hormônios em uma situação grave, muito grave. Cheguei na segunda metade, a tempo de presenciar o trio comandado pelo baterista japonego transformar o samba em uma massa jamaicana. Se ele quisesse, poderia ficar improvisando por cima do riddim de “Under Me Sleng Teng” a noite inteira. Dopamina não ia faltar.

CURUMIN, "Guerreiro (Chico Mann remix)"

20081015

Dá licença que a cultura livre quer passar

Há um quê de ironia no lançamento, quase simultâneo, dos livros Música, Ídolos e Poder – Do Vinil ao Download e Tecnobrega – O Pará Reinventando o Negócio da Música. O primeiro é a autobiografia de André Midani, “homem de gravadora” de um tempo em que o mercado fonográfico era chamado de “indústria da felicidade humana” e as pessoas que nele desempenhavam alguma função executiva precisavam, necessariamente, gostar e entender um tantinho de música. A chegada do MP3 representou a morte (simbólica) do autor e (lenta) do mundo que ele ajudou a construir, principalmente no Brasil. O segundo, de Ronaldo Lemos e Oona Castro, disseca a cadeia produtiva do brega paraense. Surgida à margem da grande mídia e de gravadoras, é movida por artista, festas de aparelhagem, distribuidores informais (eufemismo para “camelôs”) e público.

Os dois estão à venda nas “melhores livrarias e casas do ramo”. Mas um permite que você baixe, gratuitamente, seu conteúdo integral.

20081006

Diálogos hipatéticos

— E esse segundo turno, hein?

— Nem fala! Tô pior que Jesus sendo crucificado!

— Hahahahaha, saquei, saquei, hahahaha!

(...)

— Tá, mas de que lado tá o bom?

— E tu te chama Jesus, por acaso?

20080924

Desaforismo vespertino

“Seja suficientemente vago para parecer relevante.”

20080920

Boa notícia para a população carcerária

De hoje até a eleição, em 5 de outubro, nenhum dos 380 mil candidatos a prefeito, vice-prefeito e vereador pode ser preso nem detido, exceto se apanhado em flagrante. Aliviado com o artigo 235 do Código Eleitoral, o superlotado sistema penintenciário brasileiro agradece. Pelo menos dentro dos próximos 15 dias, os 308 mil detentos não correm o risco de ter de dividir a cela com algum dos integrantes desta seleta lista. Essa gente é muito barra-pesada.

20080919

Chega de maldade e ilusão

Movido por uma crise de leve desespero, desisti de esperar a ajuda do divino Deus e deixei o equilíbrio ir embora. Um, dois, três, quatro: a cada pergunta banal que respondia corretamente, acumulava pontos contra todos e contra ninguém em uma diversão que eu não conhecia bem. Na minha indecisão, nem vi que ninguém se importava com meu jogo. Eu tinha todo o tempo do mundo para ser feito de otário, mas não tinha para quem chorar e nem para onde ir. Nunca conseguiria vencer.

Nem me lembrava mais disso, até que informações ao meu dispor dão conta que o futuro não é mais como era antigamente. Quase tive um trelelê.

Fazia um bom tempo que o rock de Brasília não me despertava tanto interesse.

20080915

Momento crítico

Vai ter muita gente boa falando de coisa importante para a inexorável ascensão profissional dos colegas na sétima Semana de Jornalismo da Ufsc, que começou hoje e segue até o dia 19. E eu, expelindo teses rasas sobre crítica musical, na quarta-feira (17), das 9h ao meio-dia. Participo do negócio pela quarta vez, todas comprovadas pelo atestado em papel timbrado da academia e assinado pelo coordenador do curso. Deve ser algum tipo de recorde: passam os estudantes, passam os organizadores, passam os palestrantes e lá estou novamente, contando que a maior satisfação neste ofício é descobrir que uma resenha consegue estragar o café da manhã de Marisa Monte em Nova York.

A fim de escandalizar ainda mais os desavisados que se inscrevem para a atividade, neste ano resolvi me preparar melhor. Pesquisei a história, revisei conceitos, indiquei bibliografia. Mas nada do que eu apresente vai refletir com tanta fidelidade o que penso do que esta análise de Ricardo Alexandre. A partir de um fato isolado, o jundiaiense mais polêmico a despontar para a mídia nacional desde Cida Marques revela a série de equívocos que vêm permeando a relação entre artista e crítica no Brasil. A única diferença é que agora a arenga se via blog. Não deixa de ser um avanço.

De forma sucinta e precisa, Ricardo explica: "A imprensa alimenta o sonho, bobões". Do público e da própria imprensa, completaria eu. Porque quando respondíamos pela parte musical do extinto suplemento Zap!, do Estadão, o que publicávamos era movido por "ideais". Éramos, acima de tudo, crédulos: acreditávamos nos artistas e, principalmente, em um suposto poder atribuído ao que escrevíamos. Nossas críticas, imaginávamos, orientariam mercado, artistas e consumidores. Até que saiu uma pesquisa encomendada pelo jornal, em 1996, na qual nossos leitores elegeram Carla Perez como "artista do ano".

De lá para cá, minha trajetória tem sido uma cruzada pessoal e intransferível contra a realidade que insiste em destruir o que havia de mais precioso no jornalismo que eu praticava. Se artista e público abdicaram de sonhar, pior para eles. Por isso é que hoje fico muito mais satisfeito escrevendo sobre assuntos com os quais não me afino do que sobre a música que me é cara. Fazer crítica musical no Brasil é tentar dignificar uma bobagem ou, como Ricardo lembrou, uma piada em debate, citando o surreal quadro homônimo do programa TV Pirata.

Daqui da minha laje, recorro à comparação com o filme Boogie Nights. Lançado em 1997, retrata a ascensão de um jovem astro no cinema pornô dos anos 1970. Por mais toscas e explícitas que fossem as produções, os envolvidos acreditavam que estavam fazendo arte – até o advento do VHS na virada da década, que literalmente fodeu com tudo ao baratear o processo, provocando a explosão da oferta e o conseqüente (sem trocadilho) nivelamento por baixo.

Na música, o VHS é a internet. Só não sei se a analogia se aplica melhor à crítica (qualquer um publica a sua opinião), aos artistas (qualquer um compõe, toca e grava) ou ao mercado (qualquer um coloca seu disco à disposição na rede). Mas, independentemente de quem perca menos nessa briga, o papel de Dirk Diggler é meu e ninguém tasca. Enquanto eu atendo minha Rollergirl, curta esse som da trilha do filme.

WALTER EGAN, "Magnet & Steel"

20080907

Camiseta nova para vegetar no domingo #22

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20080905

Cartas a um jovem blogueiro

Leia.

Releia.

Não, só pode ser trote. [Dica do Dauro]

20080901

Quando o demo te resenhou, ele tava te tirando

Você sabe que está bem perto do fim do arco-íris quando começa a semana recebendo um e-mail (que, por delicadeza, terá o seu remetente omitido) como o abaixo. Tomei a liberdade de destacar os trechos que mais me tocaram.

Sobre a crítica ao DVD do Armandinho, página 77, Revista Bizz, edição 203, julho de 2006, pág 77.

Caríssimo [meu nome], bom dia. Uma coisa é você fazer uma crítica, ainda que negativa, mas sem ofender o artista, nem seu público, e outra coisa é perder o respeito com o artista e o público. Se você não gosta de Reggae, então, não está apto a fazer uma crítica legítima e autêntica sobre o produto midiático. Já no começo do texto deixas claro o preconceito e desenterra sem sentido o fantasma da maconha, pois é sabido que é caso raro entre os artistas, aqueles que não fazem uso da planta. Por um acaso teriam que usar outra droga para fazer Reggae, como são usados narcóticos e álcool para compor outros ritmos. Você é que tem dificuldade de dissociar o gênero de certos estigmas, o que fica evidenciado pelo teu preconceito de não ver a questão como resolvida para eles, pois para você não está, e te grilas com isso, pois deixas de escrever o texto da crítica de maneira subjetiva para falar de um assunto que não te compete (a não ser que você fume também), pois é sobre música que eu quero ler.

Fiquei chocado com o que eu li, gostaria de saber se você é realmente crítico, jornalista, ou qual espécie de disparate? Para fazer o que tu fazes não se precisa de diploma! Fica nítida tua aversão ao ritmo Reggae e também tua miséria jornalística, denunciando um semi-profissional anti-ético e parcial. Como crítico você é um pangaré, quem dera fosse um maconheiro.

O Reggae não precisa provar nada, Bob Marley já provou tudo e projetou o ritmo mundo afora, sendo sucesso de crítica e público, e consagrado (cantor e ritmo) até mesmo pelo Rock and Roll. Você como crítico é um péssimo profeta de Jah, pois tua previsão foi pior que a crítica. Armandinho não é somente sucesso no Sul, ele é no país inteiro, com vendagem do DVD criticado de 40 mil cópias e 80 mil do CD, conforme site abaixo, que também trás uma crítica para te educar no ofício.

Nota: Por um acaso, esse domingo agora (31 de agosto), encontrei Armandinho passeando na Praia Brava, Itajaí, e parei para falar com ele. Foi a primeira vez que conheci ele pessoalmente, e é de uma simpatia desmedida e de uma humildade contagiante. Falei para ele da tua crítica e ele se lembrou dela da revista BIZZ, Ele disse que também não esperava a agressão que sofreu. Pra falar a verdade ninguém merece uma agressão gratuita como essa. Vai te tratar.
Caro leitor: não sei como revelar isso sem abalar suas convicções e semear a dúvida em seu coração, mas é que, er, tipo, digamos que... é tudo COMBINADO. Prontofalei.

20080830

Camiseta nova para sair no sábado #21

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Contracapa: causa, efeito e cumplicidade

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Quem respira cultura pop neste pedacinho de terra perdido no mar deve se lembrar bem de como eram as coisas há dois anos. Por mais sensacional que fosse o disco, livro, vídeo, exposição ou peça de teatro, a obra tinha de disputar um cantinho do jornal com a viagem à Disney da filha do novo rico, com o carrão importado do playboy, com a plástica da perua.

Tudo mudou com o surgimento da Contracapa, em agosto de 2006. Desde então, mais do que dar visibilidade a músicos, escritores, poetas, videastas, desenhistas, artistas plásticos, atores e demais representantes locais de profissões-que-não-precisam-de-diploma, a coluna publicada no Diário Catarinense vem apresentando à cidade manifestações que a própria cidade desconhecia.

Talvez o talento sempre estivesse presente, só não encontrava espaço para aparecer. Talvez o talento só tenha ousado brotar porque houve alguém para divulgá-lo. Tanto faz. O fato é que, por uma destas raras conjunções astrais, calhou de Florianópolis abrigar uma de suas gerações mais criativas ao mesmo tempo em que o grupo que monopoliza a mídia no Estado resolveu dedicar uma página de segunda a sábado à arte que insiste em pulsar fora da panela.

E isso, mané, é muito mais importante do que tentar descobrir se a Contracapa é causa ou efeito. Marcos Espíndola comanda – simples assim. Eu poderia me sentir o tal por ter editado, em 2005, a coluna Maresia, assinada por ele. Por ter produzido, em 2007, a festa do primeiro aniversário da Contracapa. Por ter sido convocado para botar um som na celebração dos dois anos da coluna, daqui a pouco, na Célula.

Prefiro me considerar privilegiado por chamá-lo de “chapa”. O diabo é que, por conta dessa cumplicidade, estou com uma dificuldade danada em decidir qual será a nossa música-tema de hoje à noite. A camiseta nova, pelo menos, já providenciei.

20080829

Efemérides para quem precisa

Este VEÍCULO chegou ao seu 100º post no mesmo dia em que a indústria fonográfica lembrou dos 11 anos, 10 meses e 12 dias sem Renato Russo.

20080823

Camiseta nova para zair no zábado #20

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20080820

Malandro não cochicha*

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Vem cá, só eu que não sabia que a reverendíssima Editora do Bispo converteu-se à "livre distribuição de livros com acesso gratuito"?

* “Espasmo” do livro Por que se mete, porra? – Delicadezas de Paulo César Peréio.

20080816

Camiseta nova para sair no sábado #19

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20080813

Diálogos hipatéticos

— Tá, mas tu tem um plano B?

— Que mané plano B?! Eu não tenho nem plano A!

(...)

— Tipassim, vale blog?

— Até vale, mas aí não vale ficar postando só link do YouTube, que ninguém assiste essas merdas.

— Aí tu me arrombas!

20080802

Camiseta nova para sair no sábado #18

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20080731

Visite a Sibéria, onde não tem nada disso

Alvíssaras!

Eia!

Sus!

Demorou apenas DEZ DIAS para a Net alterar meu endereço de instalação da internet. Tamanha presteza levou a empresa à vitória em mais um round da encarniçada e sangrenta batalha entre as operadoras de TV a cabo e as companhias telefônicas. É uma luta curiosa e desigual. Não raro, os dois contendores esquecem as desavenças e miram os mesmos golpes baixos contra o saco do consumidor. Solicitada na mesma ocasião para transferir o telefone, a Brasil Telecom ainda não se manifestou. Alguém me avise quando o capitalismo chegar aqui, pliz.

Como este é um blog selvagem criado em cativeiro, não estava conseguindo se reproduzir fora do que chama de lar. A impressão é de que agora voltamos em definitivo com as nossas transmissões. Por enquanto, só digo que a paisagem é linda aqui de cima. E não estou me referindo ao Campeonato Brasileiro.

20080717

Faltam 21 dias para a Olimpíadas (sic) de Pequim

Certo está o sempre milenar chinês. Para designar “crise”, usa dois ideogramas. O primeiro significa “perigo”. O segundo representa “Opportunity”.

[pigarro]

Não, nem assim cola. A pequenez desta gente é assustadora.

20080712

Camiseta nova para sair no sábado #17

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20080705

Camiseta nova para sair no sábado #16

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Abismado na Serra

(reportagem publicada na revista Viagem & Turismo Especial SC, dezembro de 2007)

Praia Grande não tem praia. Nem é grande. A cidade catarinense, a 280 quilômetros ao sul de Florianópolis pela BR-101 (os últimos 20, pela SC-450), destaca-se por estar aos pés da maior concentração de cânions do Brasil. Há mais de 60 deles esparramados entre os parques nacionais de Aparados da Serra e da Serra Geral, na divisa com o Rio Grande do Sul. O mais famoso é o Itaimbezinho – “pedra afiada” em tupi –, um paredão rochoso com 5.800 metros de extensão cobertos por vegetação baixa e recortado por cachoeiras que despencam de seus 780 metros de altura. Imagine se fosse Itaimbezão.

Embora a partir de um metro abaixo da borda do cânion já seja Santa Catarina, Praia Grande sempre perdeu para a gaúcha Cambará do Sul a competência de explorá-lo. Pousadas que vão de aposentos despojados a aconchegantes chalés, condições para a prática de esportes de ação e uma infinidade de roteiros guiados estão mudando a situação. É verdade que seus cerca de 8 mil habitantes não costumam aceitar cartão de crédito nem de débito, o que pode virar uma dor de cabeça quando se descobre que na cidade só existem duas únicas agências bancárias (estatais) e uma lotérica para se sacar dinheiro. Mas é verdade também que não há muito em que se gastar, o que pode se configurar em uma tremenda vantagem.

Reais em espécie tornam-se imprescindíveis para pagar a hospedagem, o combustível (recomenda-se ir de carro) e os passeios, bem como a água e os mantimentos para suportá-los. Refeições são um caso à parte: O menu dos poucos restaurantes restringe-se a comida caseira, churrasco, lanches e pizzas. Tudo bem: praticamente todas as pousadas incluem café da manhã e jantar (igualmente trivial) na diária, que custa em torno de R$ 100 a R$ 200 no verão e em feriadões. E o “almoço” provavelmente consistirá no farnel carregado na mochila, pois nessa hora o turista estará embrenhado em alguma aventura em meio à natureza. Se tudo correr de acordo com o planejado, na volta o cansaço será tanto que não restam outras opções que não comer – sem se importar com o que for oferecido - e dormir.

Três trilhas dão acesso ao Itaimbezinho por cima e por baixo. As duas que correm junto às suas beiradas são acessadas pela entrada principal do parque nacional de Aparados da Serra, a 22 quilômetros de Praia Grande pela estrada de terra e cascalho que sobe a Serra de Faxinal. O ingresso vale R$ 6 e o estacionamento, R$ 5. À esquerda do Centro de Visitantes começa a trilha do Vértice, com apenas 1,5 quilômetro (ida e volta), quase todo pavimentado. Seu trajeto circunda a “boca” do cânion, revelando diversos ângulos das cascatas Véu da Noiva e das Andorinhas, com 700 metros de altura. Por mais que se chegue perto da borda, não dá para enxergar direito onde elas caem, sob risco de exceder o limite de segurança.

Esse primeiro contato direto acaba funcionando como aquecimento para uma paisagem que, acredite, ficará ainda melhor. Depois de uma pausa para reforçar as energias no retorno ao Centro de Visitantes, é a vez de desbravar a trilha do Cotovelo. Uma estradinha de terra à direita indica o início de seus seis quilômetros (ida e volta). Bastam 15 minutos de percurso para que a gigantesca fenda na Terra insinue-se por entre as frestas da vegetação. Em menos de uma hora a estradinha transforma-se em uma trilha mesmo, separada do despenhadeiro apenas por uma corda que o bom senso aconselha a não ultrapassar. Aí se entende por que é o caminho mais procurado do lugar: dali em diante, o cânion apresenta-se em todo o seu esplendor.

O visual é algo capaz de balançar até o mais convicto dos agnósticos. Para descrevê-lo de maneira racional, só apelando para a geologia. Itaimbezinho é resultado de um intenso abalo sísmico e magmático que chacoalhou os arredores entre 150 e 200 milhões de anos atrás. O fenômeno provocou ranhuras profundas no solo. Com isso, os rios da parte superior da serra passaram a desaguar em cachoeiras e corredeiras que esculpiam as rochas, descolando blocos de basalto para o sopé das montanhas e conferindo às fissuras a dimensão de cânion. Do mirante do Cotovelo, comprova-se na prática como essa série de acontecimentos influiu no relevo da região. Da contemplação, surge a curiosidade de saber como é lá embaixo.

Conhecer o Itaimbezinho por dentro é outra história. Enquanto no topo é permitida a visitação somente até às 15h e qualquer um consegue fazer isso sozinho, percorrer o interior do cânion pela trilha do Rio do Boi requer o dia inteiro e a presença de um guia. Muitas pousadas organizam expedições com tal finalidade, mas sai mais em conta contatar um na Associação Praia Grandense de Condutores Locais para o Ecoturismo (APCE), sediada atrás da igreja matriz da cidade. A R$ 20 por pessoa – desde que se tenha condução própria para ir até o posto de fiscalização do parque nacional, a 12 quilômetros do centro, onde se inicia a jornada –, são montados grupos de seis a 12 integrantes para de manhã cedinho enfrentar uma trilha classificada como “de alto grau de dificuldade”.

Transcorrida a picada pela floresta de Mata Atlântica, são 8,5 quilômetros (ida e volta) entre os paredões do cânion, dos quais o maior pedaço é feito sobre os seixos que margeiam o rio e cobrem o seu leito. Travessias com água até os joelhos são constantes. É importante se informar se houve chuva nos dias anteriores, porque o nível do rio pode subir rapidamente. A última enchente, ocorrida neste ano, alargou o traçado das corredeiras e arrastou consigo mais calhaus, produzindo um cenário impressionante: árvores retorcidas, raízes expostas nos trechos ribeirinhos escavados pela enxurrada e pedras de tudo quanto é forma e tamanho. Cachoeiras como a Leite de Moça e a Braço Forte originam piscinas naturais para um providencial banho gelado.

O silêncio na volta acusa: estão todos esgotados e famintos. Afinal, não são meia dúzia de frutas e um sanduíche surrupiado do café da manhã da pousada que vão sustentar o corpo. Nunca R$ 6, pagos no posto de fiscalização – se o ingresso for guardado, pode ser usado para as trilhas do Vértice e do Cotovelo (o contrário, não, porque na entrada principal o bilhete é retido) –, proporcionaram diversão tão duradoura. Em ritmo turístico, com diversas paradas para se refrescar, tirar fotos, descansar e comer, em média em oito horas a trilha do Rio do Boi acaba. E começa o banquete no “café rural”, a poucos quilômetros em direção à cidade.

Na mesa aguardam quitutes locais, como rocambole e quindim (ambos de aipim), paçoca de pinhão, lâminas de banana-da-terra fritas, pães, bolos e geléias, tudo artesanal, delicioso e barato (R$ 13). Com as pernas como se tivessem levado uma surra e o estômago devidamente forrado, é inevitável a preguiça ante a programação do dia seguinte. Os cânions Malacara e Fortaleza, no parque nacional da Serra Geral, também possuem uma trilha incrível, convidam os guias da APCE. Deixe para responder amanhã, por que agora a única coisa em que se consegue pensar é em desabar na cama. Em tempo: Praia Grande tem esse nome por causa dos imensos espraiados de pedras no interior do Itaimbezinho.

20080628

Camiseta nova para sair no sábado #15

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20080627

A cigarra é a formiga (ou vice-versa)

(publicada hoje na Revista de Inverno do Diário Catarinense)

Era uma vez uma formiga e uma cigarra que moravam no Rio de Janeiro. Como na antiga fábula, uma trabalhava no verão enquanto a outra cantava o ano todo. Por mais alta que estivesse a temperatura, a formiga passava o dia inteiro carregando folhas da rua para o formigueiro. O crepitar dos gravetos secos no terreno onde ia buscar alimento, a algazarra das irmãs diante de um canudo melado de refrigerante caído no caminho, mesmo as imprecações que, mentalmente, rogava contra os impostos leoninos; tudo era abafado pelo chiar incessante e estridente da cigarra. E assim cada uma ia seguindo seu destino, sem maiores questionamentos.


O que pouca gente sabe é que havia outra formiga e outra cigarra – em Santa Catarina. Como suas congêneres cariocas, as duas viviam naquele ramerrão. Nascida e criada na terra, a formiga era funcionária do Estado em regime integral e dedicação exclusiva. Desde que se lembrava, carregava folhas entre repartições e gabinetes. Tinha direitos, licença-prêmio, gratificações, abono-qualquer-coisa. Prestes a ser promovida por tempo de serviço, um pensamento a inquietava com cada vez mais freqüência: não fez metade do que imaginava que faria e fez o dobro do que jamais imaginou que fosse fazer.


Com a cigarra, a situação era exatamente oposta. Para efeito externo, trocou a carreira corporativa na metrópole pelo sonho colaborativo na província ao se mudar para cá. No íntimo, porém, tomou a decisão com base em um conceito pessoal e intransferível de qualidade de vida, que compensava somente as ausências. Não teria contrato, mas não teria chefe. Não teria empresário, mas não teria horário. Não teria muito dinheiro, mas não teria muitas despesas. Aqui chegando, descobriu que seu carma envolvia uma dose bem mais generosa de estoicismo. Não teria nem metade pelo dobro. Por isso, rebolava.


Encerrado o verão, as perspectivas mostravam-se tão desoladoras que a cigarra abriu mão de mais um de seus princípios. Comparado com as concessões que já havia feito para continuar a aventura catarinense, entoar canções de outros bichos em um bar seria moleza. A estréia coincidiu com a Festa do Pinhão, em Lages. No fim de semana seguinte, nevou na Serra. Pelo resto da estação, o frio lotou hotéis e restaurantes, aumentou o consumo de vinho, aproximou e renovou espíritos. Havia demanda para as mais variadas atrações, menos para as versões cicadídeas de sucessos de Kid Abelha, Pato Fu, Nara Leão, Edson Cordeiro, Pantera e demais espécimes de fauna pop.


Em uma noite das mais geladas, a formiga foi ver o show da cigarra. Entrou, pediu uma bebida e ficou encostada no balcão, avaliando o (fraco) movimento. Quanto pior, melhor para suas intenções. Negociou sua saída do funcionalismo e apresentou uma proposta abaixo do valor de mercado pelo bar. Diferentemente de como a vovó já dizia, ela não trabalhava só porque não sabia cantar. Era porque ninguém pagava – com razão – para ela cantar. Sendo dona do lugar, convocaria a si própria para subir ao palco. Não pelo talento, muito menos pela grana, e sim pela realização. A cigarra também estava resolvida: iria se inscrever em um concurso público.


Na mesma época, em uma tarde especialmente quente no Rio de Janeiro, a formiga carioca se encheu.


— Já estamos no meio do ano, não tem lugar para mais folha nenhuma lá em casa e nada de esse calor ir embora! — protestou.


Sem parar de inflar seu abdômen ao ritmo de “Grilo na Cuca”, a cigarra retrucou:


— No Rio não tem inverno...


Pois é, em Santa Catarina tem.


Moral da história: Visite o zoológico de Pomerode. Lá, os animais não falam.


20080621

Camiseta nova para sair no sábado #14

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Comentários gratuitos sobre músicas idem

Sociedade da Grã-Ordem Kavernista, Sessão das 10
Em 1971, o presidente da gravadora CBS (atual Sony-BMG), Evandro Ribeiro, foi viajar. Mal sabia o executivo que, durante sua ausência, o então produtor musical da companhia, Raul Seixas, criaria a Sociedade da Grã-Ordem Kavernista. Sem lenço, sem documento e sem juízo, o grupo gravou um dos discos mais anárquicos, escrachados e inovadores da música brasileira: Sessão das 10. (continua)


20080614

Camiseta nova para sair no sábado #13

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20080611

Alô alô torcida do Framengo

Com Obama nas alturas, nada mais conveniente do que conhecer sua linhagem. Um bom material de referência é este African American Almanac, que retrata nomes e feitos da negritude divididos por áreas do conhecimento. No verbete dedicado ao então senador por Illinois, o candidato à presidência dos Estados Unidos é descrito como “uma estrela ascendente do Partido Democrata”. Além de políticos, há acadêmicos, cientistas, escritores, esportistas, atores, diretores, artistas plásticos, músicos. Monumental (1468 páginas!), a obra só peca por ater-se exclusivamente aos irmãos norte-americanos, fazendo apenas menções a emblemas da causa como Mandela, Marley e Pelé e ignorando o gênio de Jorge Ben. Mas parece que Obina vai entrar na próxima edição.

20080607

20080606

Comentários gratuitos sobre músicas idem

Vários, Funky Nassau – The Compass Point Story 1980-1986
Você nasceu rico, criou a gravadora que lançou o reggae em escala mundial e também lucra com artistas de outros gêneros. Se você se chama Chris Blackwell, o próximo passo é montar um estúdio... nas Bahamas. Foi o que produtor e dono da Island fez em 1977, depois de apresentar Bob Marley ao público branco e de ganhar dinheiro com Traffic, King Crimson e Jethro Tull.
Pela mesa de 24 canais do Compass Point passaram Talking Heads (Songs about Buildings and Food, 1978), Dire Straits (Communique, 1979) e Rolling Stones (Tattoo You, 1981). Nenhum dos citados aparece no disco. O período coletado parte da formação de uma banda da casa, baseada na dupla mais pulsante da Jamaica, o baterista Sly Dunbar e o baixista Robbie Shakespeare – que o filho dos ingleses que colonizaram a ilha conhecia tão bem.

Mas essa não é uma história sobre Blackwell. Nem sobre um disco de reggae.

É o recorte de uma reunião de propósitos iguais e conceitos musicais, origens, cores e credos diferentes. Artistas que, à sua maneira, acreditavam que o pop não pertencia a uma única cultura, encontraram em Nassau os parceiros e condições ideais para expandirem funk, disco music, ritmos afrolatinos. Aqui em casa, muitas noites envoltas na densidade dub de Adventures In Success, de Will Powers, foram dissipadas na manhã seguinte pela levada (sampleada à exaustão) revigorante de Genius Of Love, do Tom Tom Club. Renovado o espírito, a carcaça alonga-se com o remix engendrado pelo mago Larry Levan para Padlock, de Gwen Guthrie. De repente, o Paradise Garage pode ficar em algum ponto do eixo Trindade-Itaguaçu.



Beck, Odelay
No último mês de janeiro, Odelay foi relançado em edição de luxo. Sem nenhuma efeméride na qual se pendurar, o marketing apelou para um CD extra com raridades, sobras de estúdio e lados B de singles. Não precisava. O conteúdo original vale per se, quer pelo impacto que causou, quer pelo valor intrínseco da obra. Gravado em 1996, tornou-se um dos discos definidores da década e elevou seu autor à condição de cara a ser notado dali em diante. (continua)


20080604

Nanotecnologia

Foi-se o tempo em que o herbífumo contumaz era tachado de “cabeção”. Cientistas ocupadíssimos com o desenvolvimento das ervilhas detectaram que ocorre justamente o contrário.

20080601

Empresário faz chover dinheiro na Indonésia

Domingo sim
Domingo não
Deus criou a plantinha
O diabo inventou o plantão.

20080531

20080529

O despertar de uma vocação

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Minha vontade era montar um set só de trash 90s, composto por músicas infalíveis como “All That She Wants”, do Ace of Base, ou “I’m Too Sexy”, do Right Said Fred. Mas, como não pretendo passar (muita) vergonha diante de tão radiosa companhia nas pick-ups, vou tentar não apelar para truques sujos, salvo um ou outro one-hit wonder. Tirando a implicância com o erro no final do meu sobrenome,
não tenho dogmas: se não funcionar, saco um Will Smith da algibeira e corro para os quadris do povo. O que importa é promover uma discotecagem de resultados.

Não é a primeira vez que me confundem com um DJ, conforme relatado abaixo.

***

(coluna publicada no jornal Correio Popular, de Campinas/SP, em 30 de outubro de 2001)

Porque Plutão estava com a lua em Peixes, Aquário, Capricórnio & Jones Ltd., o horóscopo recomendava: ouça a intuição, que dela emanarão as luzes que você procura para nortear sua carreira. Assim, com o firmamento conspirando em prol de minha inexorável ascensão profissional, preparei-me para mais uma edição do Free Jazz. Não imaginava de que forma um festival cuja atração mais esperada era o grupo escocês Belle & Sebastian poderia contribuir para eliminar o ócio nas tardes do colunista, mas o zodíaco não costuma falhar. Contatos? Lembranças? Revelações? Os astros elucidariam a questão.

Então, vesti minha melhor pose e cunhei criativos trocadilhos para que, quando a resposta chegasse, encontrasse em mim um veículo apto a desfrutar da sabedoria em sua plenitude. Deixei em casa qualquer preconceito acerca da já citada banda. Tentei escutar seus discos, para não ser ludibriado pelo set list distribuído à imprensa, invariavelmente com os nomes das músicas errados e fora de ordem. Ignorei os lugares comuns da mídia, que martelavam tristeza, depressão e baixa-estima. Esqueci a diferença de gerações, desculpa preferida para não considerar tudo frouxo, mal-tocado e desafinado.

Enfim, um turista estrangeiro que, por acidente, caísse no palco principal na sexta à noite e me visse, teria a absoluta convicção de que se encontrava diante de um legítimo indie – apesar da barriga saliente e dos vincos que querem transformar a face em um mapa da bacia hidrográfica amazônica. Porém, bastou a “dupla francesa” (não me canso de reproduzir essa mancada de um jornalão brasileiro) entrar no palco para que o condicionamento caísse por terra. De repente, a alegria com que o Belle & Sebastian fulminava os clichês a seu respeito passou para o segundo plano.

Olhei em volta. Identifiquei jovens poliglotas ou no último ano da Cultura Inglesa, a maioria universitários e bem-nascidos, em muito parecidos com os artistas que reverenciavam. Um exame mais apurado, à base de enquetes instantâneas, detectou uma imensa legião de wannabes, uma gente que quer ser algo ligado à comunicação, música, moda ou design. Acessam a internet, carregam razoável bagagem no cérebro, não fumam nem tomam café e tiraram o título de eleitor com 16 anos. E, no entanto, nada fazem. Vão vivendo um dia após o outro, aguardando a próxima festa do London Burning e expondo suas idiossincrasias em listas de discussão por e-mail.

Ainda pensava em como batizar essa nova tendência sem usar palavras inadequadas para não macular seu poder consumidor até ficar ciente de que essa tribo já existe e já foi rotulada. Na França, eles são milhares e receberam a pecha de “intelectuais precários”: pessoas altamente qualificadas, que dispõem da mais avançada tecnologia possível, mas que não têm “nenhuma perspectiva estável de emprego e renda”, como dizia o jornal. Daí para a associação com o que dizia o horóscopo foi um pulo, embora não ficasse esclarecido de que jeito a descoberta iria alavancar minha carreira.

Entretanto, a ansiedade por desvendar as mensagens cifradas dos astros me pregou uma peça. A verdadeira solução do enigma proposto pelo zodíaco só aconteceu no domingo, nos estertores do Free Jazz. Em frente ao palco Club, eu e o jornalista Pedro Só falávamos (!) para a TVE de Minas Gerais (quem surpreendeu, quem decepcionou etc e tal). Finalizada a entrevista, uma fotógrafa se aproximou de mim, pediu licença e perguntou: “Você é DJ, não é?”. Meu cinismo foi inútil. Quando vi, ela estava disparando o flash em minha direção, pedindo para eu sentar no degrau e fazer uma “cara de descontraído”. Ao seu lado, mais dois fotógrafos aguardavam pacientemente a vez para me clicar.

Comentários gratuitos sobre músicas idem

Curumim, Japan Pop Show
Curumim está para setores da imprensa estrangeira como o jogador Alex está para os turcos. Do mesmo modo que os torcedores do Fenerbahce querem porque querem ver o meio-campista envergando a camisa 10 do escrete canarinho, um certo underground norte-americano não entende como o japa paulistano não está na linha de frente da música brasileira. Ei, mas ele está na linha de frente! É que aqui a coisa rola num certo underground também. Donde se conclui que o busílis não é ser ou não ser reconhecido. O problema é o underground. (A resenha de verdade saiu aqui.)

20080524

20080521

Comentários gratuitos sobre músicas idem

The Presets, Apocalypso
Algo está acontecendo na Austrália. De 2005 para cá, sempre tem alguma banda nova daquele país disposta a conquistar o resto do planeta com música que parte da eletrônica para avançar sobre outros estilos, como os grupos Midnight Juggernauts ou Cut Copy. Com o disco Apocalypso, a dupla The Presets firma-se como o mais promissor desses nomes e deixa claro que não deve demorar muito para que as pistas de dança sejam regidas novamente por aussies.
(continua)


Bem-aventurados os cordiais; eles terão prioridade na fila do Paraíso

Uma Mega-Sena já resolveria a vida de muita gente. Mas só tem fila para jogar quando está acumulada. Devem ser as pessoas que não têm o hábito de acreditar toda semana. Afinal, a probabilidade de ganhar com uma aposta simples é de uma para 50.063.860, maior apenas do que a chance de isso acontecer duas vezes. Então, se é para queimar o único cartucho da sorte desta encarnação, que seja por muito.

Pois é, sou um desses babacas.

E do pior tipo: o que não deixa para o último dia para evitar fila – e pega fila do mesmo jeito, porque a mediocridade evolui por ressonância mórfica. Tudo faz parte de um ritual que, no universo racional, é considerado critério. Jogar somente quando o prêmio ultrapassa R$ 20 milhões. Um cartão com seis dezenas e nada mais. E nunca tentar estabelecer alguma lógica para escolher os números.

Assim sendo, na terça-feira me preparei para desafiar o Acaso. Tinha de ser em algum lugar que comovesse a Fortuna a ponto de ela baixar por ali. A lotérica do terminal central pareceu ideal. Sua freguesia é formada majoritariamente pelas classes C e D, que gasta menos do que os R$ 2,50 (1,98 no Cartão do Trabalhador) do ônibus que sai daqui a pouco para poder sonhar com a bolada. Prazer, minha turma.

Lá chegando, peguei um cartão e, em uma concessão à matemática, dei uma espiada no quadro com as dezenas da semana anterior. Nestas, eu não apostaria. Confiante no fato de que é bem mais fácil cravar seis em 54 do que em 60, dei uma examinada nas oito pessoas que estavam na minha frente. Não foi uma boa idéia. A agência era freqüentada por gente com pinta de ser mais pobre do que eu.

Exatamente antes de mim, uma mãe arfava com a filha no colo. Um coroa carregando uma sacolinha de farmácia, duas adolescentes em uniformes da escola pública, um casal inter-racial, um motoboy, uma manca (cuja deficiência só percebi quando claudicou em nossa direção); todo mundo olhou para trás e fez festinha para a menina. Entretanto, ninguém cedeu o lugar para a mulher que a carregava. Sorri. A criança achou que fosse para ela.

Saí mais animado do que entrei. Aquela gente precisava, mas não merecia mais do que eu.

***

Não acertei nenhum número. Na próxima acumulada, vou jogar na lotérica de Jurerê Internacional. É do feitio da justiça: aparecer em um lugar onde seja estritamente desnecessária.

Eu teclei “na próxima”? Passou.

20080517

20080513

Que sirvam nossas façanhas de modelo a toda Terra

/|||\ Pela primeira vez, Carlos Heitor Cony cita alguém que conheço*. O escritor abriu sua coluna deste domingo na Folha descrevendo Simon Reynolds como “crítico inglês de música pop, escrevendo para jornais não necessariamente ligados à temática que escolheu, autor de Bring The Noise”. Em algum desses jornais não necessariamente ligados à temática que escolheu, Reynolds reclamou que “há opiniões demais sobre música”, proporcionando o gancho que Cony utilizou para abordar “a pobreza da abundância” – e chega de aspas. Duvido que o colunista tenha lido o livro mencionado. Se leu, dá licença que eu preciso passar ali rapidinho antes de pedir para sair.
* Mentira meramente estilística

/|||\ Imperdível a história publicada no caderno Cultura do Diário Catarinense do último sábado, na qual o escritor Raul Caldas Filho lembra a visita de João Gilberto a Florianópolis em 1961. Vaia de bêbado não valia já naquela época.

/|||\ Nada como uma efeméride para transformar o passado em dinheiro. Por conta dos 40 anos do movimento que levou a juventude a protestar contra todas as instituições, a Conrad imprimiu e está vendendo Paris: Maio de 1968. Em 2003, o mesmo livro existia somente em versão online, oferecida gratuitamente no site da editora. Hoje, a pretensa transgressão sobrevive na internet – por sete dias ou 100 downloads, o que vier primeiro.

/|||\ Santa Catarina na edição corrente da revista inglesa Monocle. Como o conteúdo integral está disponível só em papel, assessorias de comunicação do governo estadual que desejarem incluir a reportagem internacional no clipping deverão procurar nas bancas. Ganha um CD com as conversas grampeadas pela Operação Moeda Verde quem encontrar um exemplar em Floripa.

/|||\ Para desgosto dos amantes do futebol-arte – definido por Eduardo Bueno como “coisa de viado” –, o time de Deborah Secco começou ganhando. Contra o mesmo adversário, com o mesmo placar e com gol na mesma trave onde, em 1981, a equipe da imortal jaqueta tricolor levantou sua primeira taça na competição. Pintou o campeão.

20080510

Camiseta nova para sair no sábado #8

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Em homenagem a todas as mães, mesmo as que não gostam de Iron Maiden.

20080505

Dez triângulos e um segredo

Chegou a conta do telefone com o custo daquela falcatrua dourada: R$ 11,11. O embaraçoso não é descobrir que, tirando uma ligação para a casa dos meus pais, foi a chamada mais cara que fiz em abril. Nem que ainda não entendi por que a soma dos números de um eqüilátero, um isóscele e oito escalenos era 970. O pior de tudo é constatar que fiquei OITO MINUTOS respondendo um questionário banal antes de me ligar e desligar, na tentativa de salvar o pouco de dignidade que me restava.

Vai passar.

20080503

20080502

Você me faz sentir como se eu nunca tivesse nascido

Circula há tempo por aí e ATÉ o Matias já fez matéria sobre. Baixei-o em 2006 e, desde então, poucos livros disponíveis na internet me deixaram com tanta vontade de imprimi-lo: a história do melhor disco dos Beatles. Ray Newman, um funcionário do governo inglês, dedica-se a desvendar como a banda migrou do iê-iê-iê para o “estado da arte” no pop. O autor mostra que o processo passou pela disposição em experimentar. Seja no plano técnico, com instrumentos, métodos e sonoridades; seja no metafísico, por meio de alteradores da percepção, revisão de velhos pontos de vista e, conseqüentemente, compreensão não-cartesiana dos fatos. João botava o LSD, Paulo trazia a vanguarda e Jorge encontrava explicação dedilhando a cítara indiana. Ringo achava tudo muito louco.

Mais espantoso ainda é como nenhuma editora se interessou em publicar Abracadabra no Brasil. Combinaria que é uma beleza com a investigação a respeito do ambiente que cercou a criação de Sgt. Peppers (é da mesma banda...) ou, para ficar na linha de “biografia de álbuns clássicos”, com os bastidores de Dark Side of the Moon, do Pink Floyd. Está dada a dica. Se rolar, quero o meu.

20080427

Quando música é só um detalhe

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(Reportagem publicada na revista Frente #2, junho de 2002)

Hoje rolou a terceira e última noite da 16
ª edição do Abril Pro Rock. Apropriadamente separados das duas datas anteriores (11 e 12/4), tocaram Helloween e Gamma Ray. Como combinado, segue a terceira e última cobertura que fiz do festival. Na bowa, o evento já foi mais seletivo. Com as bandas que contratava e com os jornalistas que levava para o Recife.

***


Do exterior, viriam os ingleses do Charlatans e The Mission, os americanos Stephen Malkmus e Karsh Kale, o argentino Ataque 77 e o francês Digicay. Do Brasil, Rodolfo em sua estréia pós-Raimundos, Tom Zé voltando ao Recife depois da recepção avassaladora que tivera ali mesmo havia dois anos, Pato Fu exibindo hits para bancar o headliner e Sepultura liderando a tradicional noite do metal. Da cidade, velhos conhecidos (Mundo Livre S/A), remanescentes do ano anterior (Textículos de Mary, Bonsucesso Samba Clube) e a nova geração (Mombojó). A programação do Abril Pro Rock estava praticamente fechada quando seu organizador, Paulo André, foi assistir ao ensaio de uma banda no primeiro sábado de março.

No mês seguinte aconteceria o festival, menção obrigatória na história do pop nacional desde que de seus palcos saíram os tambores que acordaram o resto da nação para a música nova feita na capital pernambucana, no começo da década de 90. Cumprindo seu destino, o evento continuava trazendo artistas estrangeiros pela primeira vez ao País e popstars brasileiros consagrados ou que ali iniciaram sua escalada. Revelar talentos para as gravadoras deixara de ser o atrativo principal, embora o espaço para os artistas desconhecidos locais estivesse assegurado. Às vésperas de sua décima edição, o Abril Pro Rock não era o maior nem o melhor festival do Brasil. Sua fama residia, principalmente, na gênio e na mística de Chico Science; na variedade de seu elenco (de eletrônico a regional e demais rótulos atribuídos pela crítica); e no público, este sim merecedor de todos os superlativos positivos a seu respeito.

O Abril Pro Rock tinha de ser diferente – pense em vibração, energia, astral e outros conceitos abstratos usados para ressaltar (ou salvar) o que sai das caixas de som. Parte desse algo mais passava por aquele sábado. Sonali (irmã de Paulo André), Fred 04 (Mundo Livre S/A) e Luciano Meira (pai de dois integrantes do Mombojó), todos com filhos estudando no Instituto Capiberibe, deram a dica: “Na escola há uma banda formada por uns meninos que você deveria ver”. O organizador chegou no ensaio sem grandes expectativas. “Se esses moleques tocarem direitinho, vou convidá-los para abrir o festival.” Eles tocaram direitinho. O cartaz e as filipetas (com arte de Angeli) podiam ser impressos com a programação definitiva. Entre as atrações do dia 21 de abril, “participação especial: Os Psicopatas”.

Vinte minutos no palco secundário do Centro de Convenções do Recife, sem direito a cachê, para mudar a vida de cinco garotos. Os Psicopatas tocaram cinco músicas pendendo para o hardcore (normal para a idade e a técnica). As duas primeiras, “Ela” e “Azar”, bastaram para atiçar seus fãs. Colegas de classe, crianças de menos de um metro e meio tentando pogar com as letras na ponta da língua, a maioria com camisetas pretas da banda. Os pais, igualmente uniformizados, circulavam nervosos pela frente do palco com câmeras nos ombros a registrar a proeza dos herdeiros. O vocalista anuncia “Escola” e a dedica à professora de matemática. Urros infantis na platéia, amplificados com o verso “equação é coisa de mamão” (mamão = pateta). Confiante, o garoto diz que a próxima é para aqueles que acham que eles não sabem tocar: “Pode Vir Quente Que Eu Estou Fervendo”, de Erasmo Carlos. Para fechar, “Ela” novamente. Marcante para os estranhos, inesquecível para os envolvidos.

Os três acordes que eram encanto nos Psicopatas viraram enfado com Os Subversivos. Não gravassem por um selo chamado Marx Not Dead (Marx Not Dead!), com logotipo trazendo o hirsuto autor de O Capital envolto em estética punk, ou cunhassem o hino “Esmague o PFL” (reivindicação plenamente compreensível, sobretudo em Pernambuco), e não restaria nada para destacar no grupo. Ah, sim: inspiram-se “na construção de uma postura cultural de ação e conscientização aliadas a uma prática politizada que encontre nos movimentos sociais seus maiores ecos e, na música e comportamento, sua maior vanguarda!”. Com esse papo xarope, não é de se espantar que o comunismo foi varrido do mapa. Para serem mais anacrônicos, aos Subversivos só falta o monograma do Partidão bordado nas cuecas.

No palco principal, coube ao The Mission iniciar o Abril Pro Rock. No estágio atual, é impossível escrever sobre a banda do guitarrista e vocalista Wayne Hussey e do baixista Craig Adams sem citar Bacalhau. Por mais esquisito que pareça, o ex-baterista do Rumbora, que substituiu o titular impedido por problemas no visto na vinda anterior do grupo ao Brasil (em 2000), é a alma do grupo. Repetindo a dose, ele esbanjava empolgação - e, em alguns casos, conhecimento das músicas - não mais encontrada nos integrantes originais. Totalmente deslocado do espírito do festival, o Mission cumpriu sua profecia macabra: o evento perdeu mais do que ganhou com a sua presença. Perdeu porque, a despeito do argumento da organização, “pela primeira vez no Nordeste”, não foi para abrigar oitentistas decadentes que criou-se o Abril Pro Rock.

E ganhou pouquíssima coisa, porque pelo menos 90% do público não estava lá motivado por “Wasteland” ou “Beyond The Pale”. Nos bastidores, os Psicopatas resumiam a sensação reinante entre as cerca de 4 mil pessoas. “Quem são esses caras?”, perguntava o vocalista Bernardo. Aos 11 anos, ele não passava de um sonho erótico de seus pais enquanto o Mission já entrava em rota descendente. Maravilhado pela súbita e efêmera fama, o garoto não esboça nenhuma reação com “Severina”, o maior hit do grupo de Bacalhau. “Já dei seis entrevistas hoje”, calcula. À sua volta, Diogo (guitarra, 13 anos), André (baixo, 11 anos), Chico (guitarra, 13 anos) e Arthur (baixo, 11 anos) falam ao mesmo tempo. Com sinceridade desconcertante, contam que já fizeram uns 30 shows, “mas só uns cinco prestaram” e que essa é a primeira vez que vêm a um Abril Pro Rock, “e logo para tocar”, sem nenhum traço de provocação aos milhares de marmanjos que venderiam a alma ao diabo para estar no lugar deles.

Na melhor tradição do rock’n’roll, Bernardo é o sex-symbol (é o mais alto do grupo, quase 1,60m) carismático e comunicativo, e Diogo é o guitar hero caladão, largado (por cima da camiseta, vestia uma camisa rasgada na manga), sempre com a expressão desconfiada no rosto. As descobertas se sucedem. O vocalista e o baixista são irmãos gêmeos nada semelhantes e estão na quinta série, “em salas diferentes”, assim como o baterista, “um pouco atrasado”. Os dois guitarristas estão na sétima. Diogo, André e Bernardo têm aulas de violão com o mesmo professor. A banda surgiu em 2000, mas estabilizou essa formação em 2001. Os cinco espoletas vão posar para fotos e o pai de Diogo, Paulo Roberto Guedes conta que dar instrumentos foi uma idéia para ocupar os moleques hiperativos. “Diogo e Arthur eram os mais atacados.”

Médico dermatologista, Paulo Roberto não vislumbrava a burocracia que enfrentaria para que seu filho tocasse em um festival, apesar de acompanhado pelo pai. Teve de pedir autorização ao Juizado de Menores, álvara dos bombeiros dando conta das providências contra incêndio do Centro de Convenções, descrição das saídas de emergência do local e, por fim, um documento ao Ministério Público comunicando o que os meninos iam vestir durante a apresentação (laconicamente preenchido com “tênis, jeans e camiseta”). “Aí, o escritório de advocacia de uma tia dos gêmeos entrou no circuito”, lembra. “Mesmo assim, da entrada até o deferimento, levou uma semana”, diz ele, que ficou três dias sem trabalhar, em função da papelada. Como troféu, tira do bolso da camisa e brande a autorização do Juizado de Menores gargalhando satisfeito.

Alheios ao drama, os candangos do Prot(o) reativavam o palco 2 com suas guitarras honestas representando o única banda nova do festival que não era do Recife. A tempo de não interromper o gigantesco solo que encerrou o número dos brasilienses, o forró debutou no Abril Pro Rock sob a tenda do Sopa na Cidade, sucessor do saudoso Calcinha Preta - o barraco de dois andares armado em um dos cantos do Centro de Convenções, que servia como boate, consultório sentimental e câmera de vapor. Nesse ano, o negócio estava organizado, com transmissão ao vivo pela FM e terraço onde um Landau sem portas e aberto ao público ficava como sentinela. Não dá para responsabilizar o neon da rádio Cidade, que veicula o programa apresentado por Roger de Renor (o Rogê de “Macô”, de Science), muito menos na zabumba, triângulo e sanfona que animavam os intervalos das bandas, mas o fato é que o espaço não cativou.

Rodolfo fez a atenção retornar para os grandes shows. À tarde, no hotel em Boa Viagem, sua trupe destacava-se pela presença de um jovem senhor, de camisa pólo, calça, sapato e boné, com o rabo de cavalo e uma protuberância abdominal expostos. Misturado àquele bando vestindo roupas XL, tatuados e/ou furados com piercings, o cidadão despertava suspeitas de que talvez fosse um ministro da igreja a qual Rodolfo pertence, caindo na estrada do rock para atestar o comportamento do novo fiel. Prestes a marcar sua volta aos palcos, o vocalista suscitava outras dúvidas. Tocaria músicas de sua ex-banda? Sua empatia com o público seria suficiente para esquentar um show sem hits? Vamos nos acostumar com ele? Não, não e não. Diogo queria mais respostas. “Você, que é jornalista, pode contar que a gente não espalha: ele pirou, né?”

Também não, guri. Quem entrevista Rodolfo desde 1994 nota que ele nunca se mostrou tão convicto e feliz. Se isso vai se traduzir em sucesso são outros quinhentos, mas a coragem de abandonar o posto de símbolo de uma das bandas-símbolo dos anos 90, com bajulação e discos de ouro garantidos, para viver o que acredita não deve ser menosprezada. Rodox, a banda, armou-se do peso necessário para que não se levante a mínima hipótese de que Cristo abomina hardcore ou new metal. Duas guitarras (às vezes uma terceita, a cargo do produtor Tom Capone), baixo (pelo ensandecido Patrick Laplan, ex-Los Hermanos), bateria cavalar (esmurrada por Fernandão, do Pavilhão 9) e DJ. “Quem Dá Mais” introduziu o espetáculo, com o público anestesiado pelo impacto de ver o novo Rodolfo.

Ao contrário do que se cogitava, o tal senhor do lobby do hotel não era um pastor. De bermudão, camiseta e o mesmo boné, ele pulava ao lado do vocalista, fazendo os raps de apoio. Espere aí: é Vágner, ex-Peter Perfeito! Rolou o primeiro discurso da noite. O que nem Diogo, com a camiseta autografada por seu ídolo, nem os fãs e muito menos a imprensa precisavam saber é que as falas de Rodolfo constavam do set list. No papel com a relação da músicas pendurado na mesa de som, um “blá-blá-blá” (sic) escrito antes de “Estreito” e de “Dia Quente” apontavam o momento em que o vocalista se dirigiria ao público. A reação da platéia foi mais de estupor do que de aprovação, exceto na radiofônica “Olhos Abertos”, no “oooô” de “Continuar de Pé” e na versão de “Exodus”, de Bob Marley. Vágner, visivelmente fora de forma, não saía do chão. Sua impulsão atingia, no máximo, 2 centímetros.

Finda a catilinária de Rodolfo, os Textículos de Mary invadiram o palco menor. Mais coeso do que no Abril Pro Rock do ano passado e lançando seu disco no festival, o grupo esclareceu porque havia sido posto por último: seus vocalistas costumam simular coitos anais com o microfone, e fica chato pedir para alguém usar aquele equipamento na seqüência. Durante os preparativos do Pato Fu, Bernardo gabava-se por ter todos os discos do quarteto mineiro. Até o Rotomusic de Liquidificapum, o primeirão, independente, lançado pelo selo Cogumelo? “Não”, decepcionou-se o vocalista dos Psicopatas. Sua coleção não está completa, mas em compensação ele conseguiu entrar no camarim da banda, onde o guitarrista John perguntou quem ali gostava de funk. Ninguém respondeu. “Então como é que vende tanto?”

As perguntas de John continuaram no show. “É verdade que a Tiazinha cantou ‘Eu’ na Casa dos Artistas?” Novamente, ninguém viu – e, se viu, ficou com vergonha de confessar que dava ibope para o reality show do seu Sílvio. Com sucessos que já enchem os dedos de uma mão, o Pato Fu só pecou nas muitas pausas entre uma música e outra, simpatia desnecessária após se permanecer de pé por mais de seis horas. Ao lado do palco, na passagem que dá acesso ao backstage, o pai de um dos Psicopatas batia boca com um segurança para entrar sem a pulseirinha protocolar. “Mas o meu filho é um artista que tocou aí!”, protestava, sem êxito.

No sábado, os Psicopatas não foram vistos circulando pelos bastidores do Centro de Convenções. Perderam de ver Derrick Dorner, o popular Fumaça, vocalista do Sepultura, indo e vindo todo pimpão com a camiseta que liberava o ingresso o camarote da Kaiser. Pela primeira vez, houve um rega-bofe VIP no Abril Pro Rock, no qual a elite recifense divertia-se observando os maus modos da malta roqueira. Na sexta, o papel de “astro-entre-nós” fora desempenhado pelo príncipe das trevas Wayne Hussey. Acompanhado da mulher paulistana, Cíntia (ambos com a camiseta da cervejaria), e de mudança para São Paulo, o líder do Mission habituava-se com os rituais do showbiz silvícola, como acenar para os darks e posar para revistas de celebridades.

Na noite da sutileza zero, coube ao Decomposed God inaugurar as atividades, antes das 6h da tarde. Com 11 anos de carreira consagrados ao death metal, a banda ganhou a primazia por ter tirado o segundo lugar em um concurso promovido no programa Soparia na Cidade para escolher artistas locais. É de se imaginar com o nível dos grupos que não obtiveram classificação. O Ataque 77, no palco principal, por um breve instante deu a pinta que faria o melhor show do dia 22 quando tocou uma versão de “Perfeição” (Legião Urbana), quase um bubblegum diante da podreira dominante. Não eram nem sete da noite e já se contava muito mais gente do que no dia anterior, cerca de 8 mil pessoas. No bis, os argentinos entoaram uma versão ramônica de “Do You Wanna Dance” (“Queres Tu Bailar?”), desfazendo a impressão favorável.

O Prole, vencedor do referido concurso, seguiu a toada com seu choque de guitarras e percussão que (desculpe o trocadilho) não repercutiu. Culpa do Krisiun, um trator que levou a maioria do público para a frente do palco onde ia se apresentar. Os integrantes do Decomposed God, por exemplo, sentiam-se muito mais orgulhosos por tocarem no mesmo evento que o trio gaúcho do que com o Sepultura. Tudo na banda é extremo: os vocais compostos por um constante pigarro; os dois bumbos acionados sem interrupção; o futum com o qual impregnaram o camarim. Com muita moral no exterior, o Krisium (informação relevante: o nome do grupo significa “Mares da Abominação” em latim) revelou que a capital pernambucana também poderia ser chamada de Hellcife (ai!). Que o digam os berros de “Black Force Domain” pedindo pela faixa-título de um disco lançado pela gravadora alemã Gun Records, em 1995.

Os Cachorros encharcaram um pouco mais a camiseta com um pula-pula movido a rap metal e aos temas “skate, violência, atitude e diversão”, como outros 800 grupos que vagam por aí. Mais uma vez, o povo preferia se espremer para esperar o Sepultura. Saudados como heróis, Igor, Andreas, Paulo Jr. e Derrick sacaram “Refuse/Resist” logo de início, para amansar a turba. Um balão com a bandeira de Pernambuco (que virou ícone pop no último Carnaval), jogado pelo público, desviou os olhares do que acontecia no palco. Ia da direita para a esquerda, com investidas para cima de Paulo Jr e Derrick. No fosso, seguranças davam uma de goleiro, impedindo que o balão participasse da banda. Então uns moleques, qual piranhas ensandecidas, agarraram o instruso e o socaram até a morte. Yeah!

Passada meia hora de show, o Sepultura necessitava tocar urgentemente outro hit que até os poseurs conheciam, sob o risco de esfriar o set. Não, não se está falando de “Biotech Is Godzilla” ou da inédita “Corrupted” (quebrada, parecida com as músicas dos imitadores de Sepultura). Finalmente, vêm “Territory” e “Roots Bloody Roots” para exaurir a última reserva de disposição. Chamam o baixista e vocalista do Krisiun, Alex Camargo, para trucidar “Iron Fist”, do Motorhead. Acostumado a berrar empunhando o seu instrumento, ele não sabia onde enfiar as mãos, ora tocando air guitar, ora air bateria, ora simplesmente esmurrando (sem muita firmeza) o ar. No camarote da Kaiser, os convivas deixavam a beirada do mezanino à esquerda do palco, local de visão privilegiada. Cansaram. E, afinal, eram apenas 11h da noite. Ainda dava tempo de se divertir em outro lugar.

Para a última noite, o Abril Pro Rock reservou atrações capazes de espantar o cansaço acumulado de sexta e sábado. Teoricamente, um público não afeito a tribos ou guetos curtiria regionalices pop, engajamento light e gringos com prestígio indie. Na prática, o que se viu foram parcelas distintas para cada segmento. Parte pequena dos cerca de 4 mil pagantes registrados na bilheteria do domingo testemunhou o nativo Bubuska tirar som de um tamborete de madeira, em forma de pirâmide, com dois pedais e uma engrenagem que permitia acionar vários objetos de percussão simultaneamente, o “tamburetom”. Ou o Chá de Zabumba emular seu forró pé-de-serra, com destaque para o sacana hit instantâneo “A Mulé de Tatá” (“Tatá tá aí/ Não, Tatá não tá/ Mas a mulé de Tatá tando/ É o mesmo que Tatá tá”).

Inclua Bernardo, dos Psicopatas, fora dessa: o vocalista perambulava pelas cercanias do famigerado camarote, reproduzindo o clichê do rock’n’roll que reza que só se cai nessa para beber de graça e pegar a mulherada. Dos novatos, menção mais do que honrosa para as experiências do Bonsucesso Samba Clube (não tão novo assim, pois havia tocado no Abril Pro Rock de 2001) com bossa nova com samba com eletrônica discreta, na medida certa. E, realmente novo, o Mombojó, recifenses filhotes de Mundo Livre S/A com DJ Dolores, guitarra e baixo lisérgicos com uma ou outra traquitana digital. Outra fatia da audiência esperava com avidez pelos ícones Stephen Malkmus e Charlatans. O primeiro apresentou-se às 6h, com as pessoas chegando. Ignorou foquinhos pedindo canções de sua ex-banda e privilegiou seu disco-solo. No final, rendeu-se e tocou “In the Mouth a Desert”, do Pavement.

Uma terceira parte da platéia queria panfletar com Tom Zé e Mundo Livre S/A. A banda de Fred 04 cometeu o show de sempre, sem grandes exclamações nem desapontamentos (aliás, por estar em casa, recebeu um calor maior do que o habitual). Por sua vez, o adorado Tom Zé fez exatamente o que dele se esperava: pregou contra o imperialismo, armou seu teatrinho, detonou os ianques e fundiu a cachola do fã dos Charlatans. No público, uma bandeira da Palestina tremulava tranqüila, depois que o baiano mandou parar com “essa porra de balão”. Para delírio coletivo, seu guitarrista tirou “Smoke on the Water”. Tom Zé mandou parar, para esculhambar o Tio Sam – e iniciou uma música que citava o hino do Deep Purple, Stones (“Satisfaction”) e Beatles (“Day Tripper”) com “Meu Limão Meu Limoeiro”. Nem bem acabou o show, sentiu-se mal nos camarins (Emoção? Calor? Macrobiótica? Tudo isso junto?) e foi direto para a UTI, escrevendo mais um capítulo de sua biografia envolvendo Recife.

O nicho indie, encafifado pelas estripulias do tropicalista, enfim veria os Charlatans. O engraçado é que, para essa rapaziada, o clima é uma eterna meia-estação. Faça chuva, faça sol, lá estão eles com seus jeans, camiseta e um casaco por cima. Com menos de três músicas, o vocalista Tim Burgess já abandonara o figurino sufocante, tirando sua jaqueta. Com reflexo no cabelo e um falsete para lá de liberado, o inglês custou para compreender que a única que todo mundo conhecia era “The Only One I Know”. Quando rolou essa, não havia mais nada o que fazer ali, a não ser piadas cretinas. Ao Soup Dragons, ou melhor, Charlatans, faltou um clímax mais duradouro. Ao Stone Roses, ou melhor, Charlatans, faltou a identidade. Ao Oasis, ou melhor, Charlatans, faltou a sinergia com os pernambucanos.

A essa altura, o público não ultrapassava 3 mil pessoas. Burgess declarou que a próxima (“You’re So Pretty, We’re So Pretty”) iria para uma garota que tinha conhecido “ontem à tarde na praia” – a única admiradora que abordou o grupo na areia de Boa Viagem. Veredito: com essa dancinha de ombrinhos arqueados, mãos no bolso e passos desencontrados, ele não vai conquistar ninguém. Diogo teve melhor sorte. Na tenda da Soparia, me apresentou duas tietes dos Psicopatas, ambas com camisetas da banda. “Somos fãs dele”, entregaram-se as candidatas a groupie, beijando-o em cada uma de suas bochechas. Definitivamente, o Abril Pro Rock não se trata apenas de música. Ou se trata de música, sim, mas como um passaporte para prazeres mais profundos. Imagine como foi a segunda-feira no Instituto Capiberibe.