20091230

Aceitamos todos os cartões

Tudo o que você precisa é paz. Para trabalhar, para acreditar, para retomar. Aí você acha que vai encontrar esse tudo lá.

Na primeira madrugada, assiste ao pouso forçado de um urubu acompanhado por duas garotas anunciadas como prostitutas. Mas não passavam de pombas tolas enganadas pelo nojento alado. O estupro iminente só não se consumou devido à aparição monopolizadora de Michael Caine. Desprezadas, elas foram embora. Insultado, o urubu ficou. Pela manhã, você escuta o responsável pelos hóspedes gritando com ele: “Vai tomar um banho, tu tá fedendo” e não sabe se está acordado ou não.

Na segunda madrugada, você é alugado por um elemento da nobreza que, caído em desgraça, só quer um ouvido paciente para narrar histórias de tempos invencíveis. A carne já passou do ponto, a cerveja esquentou, o gelo derreteu, a boca fechou. Não tem problema: suas aventuras são movidas a cigarro e Veneno. Com todo o tato do mundo para não melindrá-lo, você o avisa que vai deitar. Levanta com ele na mesma cantilena, alternada com lágrimas provocadas por lembranças proibidas. Você resolve dar uma saída para ver se alivia. Na volta, ele reclama que estava esperando você para evaporar.

Na terceira madrugada, ninguém mexe na corrente do portão. É o próprio anfitrião que se encarrega do entretenimento. Nem os momentos de expiação vespertina tinham lhe trazido equilíbrio, nem a visita da dona da voz rouca havia apaziguado sua alma. Ele queria acelerar, acelerar, acelerar até bater. Você lhe promete cumplicidade sem se envolver. Ele conversa com os cachorros, tranca-se na solitária, deixa seus transtornos obsessivos compulsivos aflorarem livremente. E então desfalece. Você o conduz até sua cama.

São 6h47 da manhã. Você chegou anteontem e não conseguiu dormir direito uma noite sequer. Bem-vindo ao Asilo Arkham.

20091228

Menos 76 dias

Saudemos a melhor segunda-feira do ano – nem que seja por ser a última:

RARE EARTH, I Just Want To Celebrate


I just want to celebrate another day of livin'
I just want to celebrate another day of life
I put my faith in the people
But the people let me down
So I turned the other way
And I carry on, anyhow
That's why I'm telling you

I just want to celebrate, yeah, yeah
I just want to celebrate, yeah, yeah
Another day of living,
I just want to celebrate another day of life

Had my hand on the dollar bill
And the dollar bill blew away
But the sun is shining down on me
And it's here to stay
That's why I'm telling you

I just want to celebrate, yeah, yeah
Another day of living, yeah
I just want to celebrate another day of living
I just want to celebrate another day of life

Don't let it all get you down,
Don't let it turn you around and around
And around and around

Well, I can't be bothered with sorrow
And I can't be bothered with hate, no, no
I'm using up my time by feeling fine, every day
That's why I'm telling you I just want to celebrate
Aw, yeah
I just want to celebrate yeah yeah
Another day of living, yeah yeah
I just want to celebrate another day of livin', yeah
I just want to celebrate another day of life

Don't let it all get you down, no, no
Don't let it turn you around and around,
And around and around, and around
Around round round
'Round and around round round round
Don't go 'round

Saudade de nada

O post anterior foi a 200ª manifestação deste VEÍCULO. Que os próximos 200 sejam mais frequentes, interessantes e, principalmente, mais leves.

20091226

Anotações de leitura

“Todas as grandes ações e todos os grandes pensamentos têm um começo ridículo. Muitas vezes as grandes obras nascem na esquina de uma rua ou na porta giratória de um restaurante. Absurdo assim. O mundo absurdo, mais do que outro, obtém sua nobreza desse nascimento miserável. Em certas situações, responder ‘nada’ a uma pergunta sobre a natureza de seus pensamentos pode ser uma finta de um homem. Os seres amados sabem bem disso. Mas se a resposta for sincera, se expressar aquele singular estado de alma em que o vazio se torna eloquente, em que se rompe a corrente dos gestos cotidianos, em que o coração procura em vão o elo que lhe falta, ela é então um primeiro sinal do absurdo.

Cenários desabarem é coisa que acontece.”

(O Mito de Sísifo, de Albert Camus)

20091225

O Natal como ele é III

(coluna publicada no jornal Correio Popular, de Campinas/SP, em 21 de dezembro de 2004)

Das decisões que envolvem o Natal, aquela foi a mais fácil. A escolha de Idiomar deu-se praticamente por aclamação. Afinal, entre os homens da família, era o único com condições – ou espírito esportivo – para encarar tamanha responsabilidade sem frustrar as expectativas da parentada. O sogro não tinha mais estrutura mental para suportar o desafio. O cunhado desmoralizou-se na última vez em que desempenhou a função. Sobrou ele para atuar como Papai Noel na comemoração da noite de 24 de dezembro. Conformado, exigiu apenas que distribuísse os presentes também para os adultos. Seria sua oportunidade de, sob a obrigação de fazer algum comentário gracioso à medida em que chamaria os donos de cada pacote, dizer poucas e boas para aquela cambada de cínicos.

Sua mulher, Dionéia, só esperou pela confirmação do marido para conjugar seu verbo predileto, comprar. No caso, o figurino do Papai Noel. Achou o tradicional uniforme vermelho e branco no camelódromo pela bagatela de R$ 19,90, incluídos o cinto preto e a barba postiça. O preço baixo embutia um senão – e não era o fato da inscrição "made in China" na etiqueta levantar a suspeita de uso de mão-de-obra infantil na confecção: a roupa era toda de feltro, tecido que proporciona a quem o veste a sensação de que até o inferno deve ser mais refrescante. Idiomar experimentou a peça, notou que o manequim tinha uma bunda enorme e, já suando, pensou na felicidade de sua filha de 3 anos ao receber o triciclo tão desejado diretamente das mãos do bom velhinho.

A pantomima envolvia toda uma logística. Idiomar começaria a ceia à paisana, representando papéis muito mais difíceis e demorados do que o disfarce para o qual estava escalado. Papai Noel não durava três horas e aparecia uma vez por ano; já as falas para marido, pai e genro exigiam decoreba constante. Em determinado momento, ele alegaria ter de sair para comprar qualquer coisa (“um elmo”, pensou) e sumiria, reaparecendo fantasiado e com a indefectível risada. A cumplicidade dos demais adultos estava assegurada, o que o deixava ressabiado era o sobrinho e afilhado Maiolo. O peste de 8 anos não iria engolir essa história e, com certeza, faria de tudo para sabotar o plano.

Chegou a noite derradeira e tudo ia correndo surpreendentemente bem. A filha, Jaqueline, ficou maravilhada ao descobrir que a cartinha que mandara três meses antes com o seu pedido funcionara. A sobrinha, Aline, de 4 anos, não se importou com mais nada depois que ganhou sua casinha de boneca. Maiolo, que ameaçou desmascará-lo ao puxar sua barba, foi domado a base de beliscões dados na surdina. Os altinhos escutaram os desaforos de Idio (como o chamavam, com a tônica no primeiro “i”) sem tirar o sorriso do rosto. À mulher e à sogra, disse que foram muito linguarudas no ano que passou. O cunhado, bêbado, respondeu ao insulto de “parasita” com um arroto. A concunhada teve sua gordura denunciada. E o sogro foi avisado para não esquecer mais de tomar seu remedinho.

Os estrategistas só não pensaram na retirada do Papai Noel. É claro que Maiolo quis acompanhá-lo até o portão de casa. Sem outra alternativa, o Papai Noel acabou no meio da rua. A idéia de Idiomar era aguardar a poeira baixar, tirar aquela roupa insuportável e voltar dizendo que não achara o elmo que procurava. Mas outras famílias o viram caracterizado e o chamaram para encantar também os seus Natais. Ele passou a noite toda de casa em casa, levando alegria e bem-aventurança. Quando terminou, o dia raiava. Bateu no portão uma vez. Duas. Na terceira, Dionéia arremessou a perfume na sua cabeça, aos gritos de “canalha, nem no Natal abandona a farra!”. De nada adiantaram os argumentos de Idiomar: “Mas Néia, que nóia é essa?”. Ela estava convencida. No próximo dia útil, iria entrar com o pedido de divórcio.

20091218

O trabalho aperfeiçoa a obra

É hoje a possível última manifestação dos FALCATRUE em 2009. A não ser que até o dia 31 alguma obcecada cisme de escutar as musiquinhas que SÓ a gente rola, os picaretas (de coração) que desde maio vêm provocando efeitos irreversíveis nas pistas floriputas voltam para novas e eletrizantes aventuras somente no ano da graça de 2010.

Para falar a verdade, as únicas informações confiáveis na assertiva anterior são as datas. De 10 de maio, quando Zuleika gentilmente nos escalou para apertar “play” e “pause” no Blues Velvet em uma festa chamada Sabatina; a 26 de setembro, na comemoração dos três anos da coluna Contracapa, foram poucas as vezes em que a noite revelou-se especial por causa da nossa trilha sonora.

Não é questão de os bípedes estarem dançando ou não. Quem já bancou o DJ-sem-diploma sabe do que se trata: há um momento em que algo simplesmente acontece, sem porquês nem ressalvas. É mais do que “bombar”. É um negócio meio encantado, uma sensação que o som emanado tem alguma influência sobre alguma coisa individual ou coletiva, mas sempre excepcional.

De trás das pickups, com a visão panorâmica do contexto, percebe-se que determinada música mexeu com os hormônios das biatches, que outra animou um grupinho que estava parado, que uma terceira explodiu em um beijo. Dessas situações todas, duas me marcaram nessa temporada de seletor:

A primeira foi no Blues Velvet, com uma audiência predisposta para os mais diversos tipos de crimes (principalmente os não previstos no código penal) em uma sexta-feira NELVOSA de agosto. Um rapaz se aproxima e implora por Amy Winehouse. Fico sem jeito, não trouxe nada dela. Marcos E tinha uma em seu case infinito. Serve? “Qualquer uma, quero pedir a mão dela em casamento”, responde o guapo, apontando para uma fêmea que sorriu com cumplicidade. Botamos. Que sejam felizes enquanto a vida quiser.

A segunda não está ligada a um lugar, público ou noite específicos. É o remix do MSTRKRFT para “Sexy Results”, do Death From Above 1979. Saiu em 2006 e esteve presente em todos os [glup] sets como se fosse a “reserva da casa”, aquela em que o anfitrião serve com a sincera intenção de agradar – mas não fica nem um pouco preocupado se não agrada: ELE (o próprio anfitrião) gosta.

E concessão uma ova! Conhece? Deveria. A levada já um assombro, crua & sensual. Uma fêmea sussurrando “les résultats sont super sexuelles” precede a letra, que se limita a repetir, como um mantra: “sexy woman take me to your bedroom, let me show you how I work work work work”. Dá vontade de ficar trabalhando a noite inteira. Procuraê, é facinha de achar. Ou aparece lá, que eu te mostro.

20091216

Menos 64 dias

Por um desses insondáveis desígnios da Providência, a indústria fonográfica aproveitou o jubileu de prata de Unforgettable Fire, do U2, para relançá-lo remasterizado, com faixas bônus e o escambau, na mesma época em que me exilei em Santantônio dos Anjos da Laguna. Nada mais adequado para embalar minha temporada na cidade.

Nunca acompanhei um disco dos Beatles, do Led Zeppelin, de Bob Marley assim que saíram porque ainda não tinha nascido ou era criança demais para me importar. Com o LP da então desconhecida banda irlandesa, não. Tão logo li que iria ganhar edição nacional (se minha memória não me trai, em 1985, um ano depois de seu lançamento no exterior), corri para a Record, a única loja do pedaço que vendia vinis e cassetes. Jamais havia ouvido U2 antes. Mas ouviria muito pelas próximas décadas – e contando.

Naqueles tempos risonhos e francos, era “Pride” que eu escutava quando queria cantar junto, “Bad” quando queria impressionar a gatinha e “Elvis Presley and America” quando queria bancar o doidão sem ter experimentado nem tabaco. Hoje, não reconheço mais o bairro em que cresci. A casa do Dudu agora é uma loja, a do Xulipa (onde antes morava o Ubiratan) está à venda, a do Lucius deu lugar a um edifício.

Meus pais também se mudaram. Não tenho mais quarto na casa deles. Vivo calado, não sinto necessidade de convencer ninguém de que eu valho a pena e eventuais alterações da consciência só têm me servido para acentuar dissabores. Apenas os harmônicos da guitarra de The Edge continuam me causando o mesmo bem-estar. Certo estava Bono, que virou um cínico.

U2, Wire

20091214

Anotações de leitura

“A vaidade nos faz escrever a história de nossas grandezas e não a manifestação evolutiva da nossa vulgaridade.”

(Os Filhos da Candinha - Crônicas, de Mário de Andrade)

20091207

Seu ódio será a nossa herança

O 10,000 Words, em sua incansável cruzada para disseminar a tecnologia entre os jornalistas, publicou uma lista com sete razões que levam os leitores a odiar um blog. Sem disfarçar a frustração, este VEÍCULO reconhece que incorre em apenas quatro dos motivos citados. Mas não há de ser nada: com a graça da Santa Ignorância, não vamos medir esforços para completar a relação em 2010.

Contamos com o seu repúdio.