20140926

Porque no fim sempre era bom



(coluna publicada hoje no Diário Catarinense)

O Lagoa Iate Clube (LIC) bombou, e não era baile de formatura nem casamento. No palco do salão da sede social projetada por Oscar Niemeyer, Criolo. Na plateia, uma juventude acostumada com Sucrilhos no prato – como diz uma das letras de Nó na Orelha, o premiado disco que o tirou do gueto em 2011. Tanto que cantou cada rima do rapper paulistano, incluindo as da estreia Ainda Há Tempo (2006), quando tinha o Doido no nome e morava na periferia. Deu gosto trocar a sigla de “Não Existe Amor em SP” por “SC”, levitar com as “palavras do rei” em “Samba Sambei” e caprichar na p* do refrão de “Demorô”.

O artista, o público, o local; tudo conspirava para que o show do rapper paulistano em Florianópolis, na sexta passada, gerasse uma rasa tese sociológica envolvendo luta de classes e cereais matinais. Aí aconteceu uma coisa muito séria, que alterou planos, abalou convicções e relativizou conceitos: chegou o novo disco do Cachorro Grande. Já rolava o papo de que a banda viria diferentona, que havia pirado no estúdio, que estava psicodélica e tal. De fato, Costa do Marfim é uma Drogba (OK, trocadilhos como esse também). Do título ao barbudo de turbante da capa, quanto menos se entende, mais sentido faz.

A intenção declarada dos gaúchos era virar do avesso o rock básico com o qual se sustentam há 15 anos. Para isso, chamaram Edu K. O ex-De Falla, autor de “Popozuda” e capaz de ir da vanguarda às mais bagaceiras formas do pop, seguiu o briefing à risca. O sétimo álbum da matilha deixa o fã desnorteado e a crítica, perplexa. É impossível precisar a interferência do produtor, mas na ficha técnica ele aparece creditado pela “participação especial em todos os lances”. Qualquer dúvida sobre o seu papel no resultado final se esvaece logo na abertura, com os 11 minutos de delírio psicodélico de “Nós Vamos Fazer Você Se Ligar”.

Na sequência, “Nuvens de Fumaça” e “Eu Não Vou Mudar” acalmam o facho insistindo em velhos vícios. O mundo volta a girar no primeiro single, “Como Era Bom”, levado por um timbre que parece uma flauta biruta. “Use o Assento para Flutuar” expande o horizonte, com a eletrônica valorizando a guitarra característica do quinteto e escancarando a influência de Primal Scream, Stone Roses e até Kula Shaker – cujo líder é homenageado em “Crispian Mills”. Na real, a grande transformação do Cachorro Grande foi descobrir a década de 1990. Visitada para fins recreativos, ainda rende momentos bem divertidos.

Belezinha cósmica
O Asteroids Galaxy Tour obedece a uma órbita própria, orientada pelos diversos estilos que utiliza em sua trajetória pop. No terceiro disco dos dinamarqueses, Bring Us Together, a bússola está mais bem calibrada para atingir alvos maiores do que abrir shows da falecida Amy Winehouse ou emplacar música em comercial do iPod. E, se a pegada oitentista de “Navigator” ou o groove torto de “Choke It” falharem, sempre resta a estampa da vocalista Mette Lindberg para convencer os hesitantes.

20140919

A triste queda dos pássaros formosos

(coluna publicada hoje no Diário Catarinense)

Está na praça um livro que joga luzes sobre uma época tão rica quanto pouco analisada da cultura nacional. Como o título promete, Pavões Misteriosos – 1974-1983: A Explosão da Música Pop no Brasil, do jornalista André Barcinski, cobre o hiato entre a MPB politizada dos anos 1970 e o estouro do rock silvícola na década seguinte. Com o adicional de que, ao tentar explicar por que tantos discos seminais surgiram no país no período em questão, ajuda a entender também como se formou a mentalidade que iria prevalecer no futuro.
O marco inicial é a chegada do Secos & Molhados ao topo das paradas em 1974, desbancando Roberto Carlos. A ascensão do grupo liderado por um Ney Matogrosso andrógino, de cara pintada e quase nu refletia a transformação pela qual passava toda a indústria da música brasileira de então. Gente como Raul Seixas, Tim Maia, Rita Lee e Jorge Ben lançava seus trabalhos mais ousados. Alguns alcançavam o grande público, outros eram incompreendidos; todos conseguiam gravar suas experiências.

O autor mostra que, até 1983, quando Ritchie conquistou o povão com “Menina Veneno”, havia lugar também para falsos gringos cantando em inglês (Mark Davis, na verdade Fábio Jr.), picaretagens armadas por produtores (Gretchen) e pastiches sintonizados com as ondas que vinham de fora (Frenéticas). Daí em diante, por razões que incluem decadência criativa, exigência por resultados e aversão ao risco, ficaria cada vez mais difícil para os pavões continuarem misteriosos. O mercado é louco, mas não rasga dinheiro.

Raiz punk, fruto reggae
O pai integrou uma banda ícone do punk e a filha segue a carreira musical. O que ela faz? Reggae, lógico – afinal, entre outras conexões, a Babilônia combatida por Bob Marley e o “sistema” que os proletários ingleses queriam derrubar eram o mesmo inimigo. Portanto, nada mais natural do que Hollie Cook investir forte no ritmo jamaicano. Em seu segundo disco, Twice, a herdeira de James Cook (ex-baterista dos Sex Pistols) atualiza a levada roots que garante a brisa em “Ari Up”, “Desdemona” e “Postman”.



Enfado mortal
O problema de Strut nem é a música. O funk-rock setentista diluído em pop de Lenny Kravitz continua presente em seu décimo disco. O que complica a situação do cantor é que há cada vez menos bípedes interessados nisso. A crítica nunca o engoliu, a juventude o ignora e as fãs que restaram têm coisas mais importantes para se preocupar do que defendê-lo. Fica a dica: contra o enfado, não há abdômen trincado que dê jeito.

20140912

O desafio de ser relevante

(coluna publicada hoje no Diário Catarinense)

Na terça-feira, um dos poucos gigantes que restam sobre o planeta reapareceu com disco inédito após cinco anos em branco. Divulgado durante a apresentação do sexto modelo de um espertofone, aquele que vem sendo chamado de “o maior lançamento do mundo” estará disponível para ser baixado sem custo pelos 500 milhões de clientes da 119 países da loja digital da fabricante de celulares até amanhã. A partir de domingo, chega ao comércio em versão física e paga. As novidades envolvendo Songs of Innocence, do U2, acabam aí.

Logo no primeiro single, “The Miracle (Of Joe Ramone)”, fica evidente que a única coisa moderna no 13º álbum do grupo irlandês é a estratégia de marketing. As letras relembram suas experiências afetivas, sexuais, políticas e geográficas. A sonoridade vai no embalo com baladas lindamente coxinhas, das quais “Every Breaking Wave” e “Song for Someone” mostram um grande potencial para levantar estádios dispostos a aplaudir o Coldplay. Em time que está ganhando não se mexe, diz o clichê. Bem, o U2 se mexeu – para apenas empatar.

Nem a presença de um nome aclamado pela crítica como Danger Mouse (Black Keys, Broken Bells) entre os produtores salva o disco da mesmice. A intervenção dele é tímida demais para modificar o que tanto fãs quanto detratores acharão de “Sleep Like a Baby Tonight”, “This Is Where You Can Reach Me Now” e “The Troubles”. Com a identidade intacta e o boi na sombra, a banda encara um desafio muito mais difícil do que distribuir seu trabalho de graça para um em cada 14 terráqueos: ter alguma relevância hoje.

Colisão na pista
Uma década depois de causar certo buchicho no circuito alternativo com a guitarreira suja e dançante da estreia You’re a Woman, I’m a Machine, o Death From Above 1979 está de volta. A boa notícia, no caso, é que as batidas gordas, os baixões distorcidos e a os riffs garageiros da dupla canadense não caducaram com o tempo em The Physical Word. Pelo contrário, o disco tem uma pegada mais roqueira em “Trainwreck 1979” e “Government Trash”, com direito a refrão redentor em Crystal Ball para os punks se descabelarem na pista.



Psicodelismo a rigor
É impossível ouvir o autointitulado segundo disco d’O Terno e não lembrar dos Mutantes. Não por causa da formação em trio e da origem paulistana. E sim pela conexão estética: uma psicodelismo vintage diluído em viagens pop que chegam a flertar com o brega. Mas a maior semelhança com a clássica banda vem da ironia sugerida em “Vanguarda” e “Eu Confesso”, com menções ao “estilo indie-hippie-retrô-brasileiro”.

20140905

Plant ostenta a arte de envelhecer

(coluna publicada hoje no Diário Catarinense)



O mundo da música anda ocupado demais com calipígias e fanfarrões descartáveis para prestar atenção em Robert Plant. Não sabe o que está perdendo. O novo disco do cantor, Lullaby... and The Ceaseless Roar, tem os pés na África tanto negra quanto árabe visitada em trabalhos anteriores, o coração na América profunda desbravada após passar os últimos anos no eixo Nashville-Mississippi e a cabeça em sua Inglaterra natal, onde voltou a morar recentemente. Isso é que é ostentação.

A décima incursão solo do ex-Led Zeppelin abre com um kologo, uma espécie de banjo africano. Ao longo de 11 faixas, aparecem outros instrumentos exóticos de corda (ritti, tehardant) e de percussão (bendir, djembe). Só que, em vez de estranhamento étnico, o som executado pela banda The Sensational Space Shifters atrai pela delicadeza. A despeito do título do álbum, as “canções de ninar” imperam sobre o “rugido incessante”, mesmo emolduradas por uma voz que já foi conhecida por trovejar.

Ao contrário de várias divindades de sua geração, Plant preferiu a velhice – física – à morte – criativa. Sua força se alimenta da curiosidade, não da potência. É um senhor de 66 anos que seduz nas ternas “Somebody There”, “Pocketful of Golden” ou “Rainbow” e ainda dá seus pulinhos em “Turn It Up”. Ciente da comparação que sempre lhe será desfavorável, ele vem pilotando veículos diferentes há um tempo muito maior do que o período embarcado no dirigível de chumbo. Errou aqui, acertou ali, mas nunca virou uma caricatura de si próprio.

Pronto para conquistar
Saiu mais um sério candidato às listas de melhores do ano. Mean Love, de Sinkane, parte do soul e do R&B para forjar uma sonoridade fina e envolvente. Com influências que vão de Curtis Mayfield em “How We Be” e “Gallen Boys” a Peter Tosh em “Young Trouble”, o sudanês criado nos Estados Unidos esbanja credenciais para ampliar a base de fãs arrebanhada desde o CD Mars, de 2012. Para arrematar, “Hold Tight” alinha-se entre os ritos de acasalamento chiques que fizeram a fama de Sade.



De lamber os beiços
Depois de dez anos de estrada, o baiano Russo Passapusso estreia em disco com Paraíso da Miragem. A moqueca servida pelo músico e compositor leva MPB, rap, samba, reggae, forró e black music maturados por sua atuação nos grupos Baiana System e Bemba Trio. Curumin, BNegão, Edgard Scandurra, Marcelo Jeneci e Anelis Assunção estão na lista daqueles que acompanham a iguaria, disponível para descarrego legal e gratuito em www.russopassapusso.net.