20141128

De bem com a vida louca



(coluna publicada hoje no Diário Catarinense)

Está embaçado sacar qual é a dos Racionais MC’s em Cores & Valores. Pela demora, parecia que eles viriam com novo Sgt. Pepper’s. Apareceram com um Chinese Democracy. Piadas maldosas à parte, a banda voltou com um disco apropriado depois de doze anos em que o hip hop, a indústria fonográfica, o mercado e os próprios integrantes mudaram demais. Só o fato de o lançamento virtual estar à venda com exclusividade na Google Play Store desde a última terça indica o quanto a situação andou. É, truta, nada como um dia após o outro dia.

Neste período, KL Jay, Edi Rock, Ice Blue e, principalmente, Mano Brown, sobreviveram bem longe do inferno. Ampliaram seu público, assistiram à consolidação de Criolo e Emicida, viram gêneros como o funk ostentação e o trap ganharem terreno, reconsideraram posturas para continuar manipulando a mídia a seu favor, subiram na vida. Não colaria muito deitarem falação apenas sobre as correrias na quebrada em ladainhas de mais de cinco minutos. Então tome 15 faixas em meia hora, ideais para uma geração que se entedia em segundos.

Vencidas as músicas com jeito de vinhetas sinistras da primeira metade de Cores & Valores, a atual realidade dos Racionais vem à tona em raps que celebram a diversão, a camaradagem e até o amor. Treta sempre haverá, como nas tensas “A Escolha Que Eu Fiz” e “A Praça”. Mas o que fica é o retrato de uma classe mais interessada em construir um futuro melhor do que em implodir o sistema, evidente no balanço de “Quanto Vale O Show”, na zoeira de “Você me Deve” ou na ironia de “Eu Compro”. Em vez de reclamar, o “negro drama” agora tira onda.

Tudo como sempre
Com 40 anos de carreira e uma montoeira de clássicos no lombo, o AC/DC não precisa lançar mais nada. Mesmo assim, persiste com o disco Rock or Bust, gravado sem o guitarrista Malcolm Young (afastado para se tratar da demência) e o baterista Phil Rudd (envolvido em acusações de planejar o assassinato de duas pessoas). Os nomes das músicas bastam para descrever o que Angus Young (guitarra), Brian Johnson (vocal), Cliff Richards (baixo) e os substitutos Steve Young e Rob Richards aprontaram no estúdio: “Got Some Rock & Roll Thunder”, “Rock The House”, “Rock The Blues Away”, além da faixa-título. Como se fosse novidade.



Ritmo funcional
Algum historiador desocupado ainda vai determinar o momento em que a música eletrônica igualou-se ao axé, ao pagode, ao sertanejo universitário e ao funk carioca em funcionalidade. A resposta passa por David Guetta. Fica até meio ridículo analisar seu novo disco, Listen, quando o público só quer saber se o negócio serve para dançar. Não esqueça de deixar o senso crítico em casa quando for assisti-lo no dia 2 de janeiro, em Florianópolis.

20141121

O barulhinho bom de Cassim & Barbária

(coluna publicada hoje no Diário Catarinense)

As definições variam. “Mais sombrio”, arrisca o integrante recém-efetivado Manolo K (bateria). “Mais difuso”, despista Eduardo Xuxu (voz, guitarra, sintetizadores e baixo). “Com cores mais ‘desbotadas’, tons mais ‘góticos’, com aquele lado tribal”, enxerga Cassiano Fagundes (voz, violão e guitarra). “No final, acabou sendo um disco bastante curto”, atesta Gabriel Orlandi (guitarra, ruídos e vocais). Mas não importa o adjetivo utilizado: a banda nunca soou tão diferente quanto neste Cassim & Barbária III.



Gravado com recursos do Prêmio Elisabete Anderle de Incentivo à Cultura, o terceiro álbum do quarteto de Florianópolis revela melodias inesperadas para uma carreira notabilizada pelo barulho. As distorções e os andamentos tortos estão presentes, mas o que sobressai em músicas como “Dying” e “Cânion” é a delicadeza lisérgica. Tal faceta chega ao ápice em “The All American Apologies Technique”, um folk solar que enternece tanto quanto os passarinhos que cantam na instrumental “Suas Manhãs Serão Bem Melhores Agora”.

Já que a vida também é feita de som & fúria, nos 37 minutos de duração do disco a reputação anticomercial do grupo é reforçada pela agonizante “Esgar” e pelo paredão de “Laguna Schmoll”. Perto delas, “Stepanek” e “Bargeld” (homenagem a Blixa Bargeld, alemão que tocou com Nick Cave e no Einstürzende Neubauten) descem macias, sem abdicar de sua vocação “difícil”. Nenhuma vai tocar no rádio. E daí? Os caras do Cassim & Barbária não têm esse tipo de preocupação mundana. Seu compromisso é com a Arte.

Só por curiosidade
Nos últimos dez anos, o produtor Ralph Sall vem convencendo artistas de tudo quanto é estilo a gravar alguma música para o que viria a ser The Art of McCartney. O projeto chegou às lojas ontem com 42 faixas dos Beatles e dos Wings interpretadas por nomes do quilate de Bob Dylan (“Things We Said Today”) a Kiss (“Venus and Mars”/“Rock Show”), de Brian Wilson (“Wanderlust”) a The Cure (“Hello Goodbye”). Por melhores que sejam a constelação reunida e o repertório escolhido, o disco não consegue escapar da lógica perversa que acompanha qualquer tributo: interessa muito mais aos fãs de quem está homenageando do que do homenageado. Como nem uns (só gente do primeiro escalão) nem outro (gênio da raça) precisam disso, a serventia da empreitada permanece um mistério.



Burn, baby, burn
Amanhã é dia de Santa Cecília, padroeira da música. Para marcar a efeméride, hoje se “comemora” o Dia sem Música. A data foi criada pelo escocês Bill Drummond em 2005 para protestar contra a banalização do mundo musical. Parece coisa de maluco – e é: em 1994, ele botou fogo em 1 milhão de libras ganho com os sucessos de seu grupo, o KLF (“What Time Is Love?”, “Last Train to Transcentral”, “3am Eternal”). Assista à queima e reflita sobre o que você anda ouvindo.

20141114

O rock como ele deveria ser



(coluna publicada hoje no Diário Catarinense)

Em tempos de roqueiros reacionários promovendo sua concepção estúpida de mundo, nada mais salutar do que o recém-lançado disco de Thiago Pethit. Terceiro álbum do cantor e compositor paulistano, Rock’n’Roll Sugar Darling chega para lembrar como o gênero musical que lhe dá nome conseguia representar os anseios da juventude não conservadora: com rebeldia em vez de respeito, sexo em vez de moralismo, transgressão em vez de reverência, deboche em vez de rancor, liberdade em vez de preconceito. Resumindo, com atitude.

Após flertar com o folk e o glam, o músico mostra que estudou direitinho os preceitos essenciais do estilo a que se propõe agora. Para abrir o trabalho, convocou um dos ícones underground da década de 1960, Joe Dallesandro. “As pessoas precisam de um ídolo com os pés no chão, de um rockstar que batalhe nas mesmas ruas que elas, precisam de um anjo com uma boca suja”, rumina o veterano ator, o “Little Joe” mencionado por Lou Reed em “Walk on the Wild Side”. A partir daí, Pethit encarna esse papel nas mais diversas abordagens.

É Rita Lee com Black Keys na faixa-título, Nick Cave com Chris Isaak em “Romeo”, Iggy Pop com Bo Didley em “Quero Ser Seu Cão”, Elvis com Strokes em “Honey Bi”, Caetano com Nick Drake em “Perdedor”, David Lynch com Radiohead em “Story Blue”. É jaqueta de couro e sensibilidade, selvageria e peito depilado, má companhia e ombro amigo. Mesmo se tudo não passar de pose, já está valendo apenas pela pretensão. Por mais urgente que seja a realidade, um pouco de fantasia – ou cinismo – é fundamental. Nós só queremos ser bem enganados.

Camaleão às avessas
Misto de crítica musical, painel biográfico e análise cultural, O Homem que Vendeu o Mundo – David Bowie e os Anos 70 prega que nenhum outro artista naquela década foi tão criativo, assumiu tantos riscos ou levou a si mesmo e ao público a extremos tão distantes. Para isso, o cartapácio de 570 páginas escrito pelo inglês Peter Doggett (do espetacular A Alma Perdida dos Beatles), explica, música a música, as mutações de um camaleão às avessas: enquanto o réptil muda de cor para se adaptar ao ambiente, o cantor se transformava justamente para destoar.



Só faltava enterrar
Antes de qualquer veredito, a despedida do Pink Floyd, The Endless River, suscita duas dúvidas. A banda ainda existia? Qual o valor das sobras de um disco que já não era lá essas coisas? Feito pelo guitarrista David Gilmour e pelo baterista Nick Mason em cima das mais de 20 horas de jams sessions não aproveitadas em The Division Bell (1993), o álbum é proclamado como um tributo ao tecladista Rick Wright, morto em 2008. Do alto de seu ego, o baixista Roger Waters, o único a não participar da farsa, ri, satisfeito.

20141107

Buda da periferia ilumina a MPB



(coluna publicada hoje no Diário Catarinense)

Poucos discos nacionais eram tão aguardados quanto este Convoque Seu Buda, lançado nesta semana por Criolo. Afinal, trata-se de sucessor do aclamadíssimo Nó na Orelha, que estabeleceu novos parâmetros para o rap brasileiro em 2011 e conquistou proletários e burgueses. Para felicidade da torcida, o álbum – disponiblizado gratuitamente no site do artista paulistano – não apenas confirma as expectativas, como expande a paleta de gêneros musicais atribuídos ao seu autor. A música dele extingue qualquer carma ruim.

Não que o estilo com o qual Criolo virou unanimidade não apareça com força, longe disso. Os irmãos podem ficar sossegados, porque o ritmo e a poesia burilados na periferia sobressaem em “Plano de Voo” (com o rimador Neto, do grupo Síntese) e na faixa-título. Igualmente letal, “Esquiva da Esgrima” traz um refrão memorável, precedido pelo verso que parece um ditado: “Quem toma banho de ódio exala o aroma da morte”. Já “Cartão de Visita” recebe a cantora Tulipa Ruiz para realçar a levada black music do tempo bom que não volta nunca mais.

Como no trabalho anterior, reggae e samba têm lugar cativo em “Pé de Breque” e “Fermento pra Massa”. Pífanos e guitarras transportam “Pegue pra Ela” até o Nordeste, destino identificado também na cadência afrobaiana de “Fio de Prumo”, com vocais de Juçara Marçal e clavinete de Money Mark (colaborador dos Beastie Boys). Diante do ecletismo das referências e da riqueza das direções propostas, continuar chamando Criolo somente de rapper não dá conta de todo o seu talento. O mano está iluminado.

Vibração ambiciosa
Teophilus London pisca no radar desde que Timez Are Weird These Days (2011) apresentou sua fina junção de R&B com rap. Alguns EPs e mixtapes depois, o cantor nascido em Trinidad e Tobago e criado no Brooklyn novaiorquino retorna mais ambicioso com Vibes – como tudo o que leva a marca de Kanye West. O marido de Kim Kardashian solta a voz na melosa “Can’t Stop”, mas o caldo fica melhor quando ele restringe-se à produção, forjando bases electro para “Heartbreaker” e “Need Somebody”. Prince assinaria embaixo.



Sempre tem público
A banda florianopolitana Zumbi Tatuado é destaque no Palco MP3, plataforma virtual de artistas independentes brasileiros. O trio surgiu no final de 2010 e já obteve mais de 80 mil acessos para sua estreia, Agora Eu Quero Roquee (sic), puxada pela canção “A Procura de um Lar”. Como o nome do disco deixa bem claro, a banda trafega por uma sonoridade que, apesar de não primar pela originalidade, ainda encontra bastante fãs por aí.