20150227

Revolução nenhuma resiste ao enfado



Certas bandas já fizeram tanta coisa boa que cada manifestação artística sua requer reverência, condescendência e, como não?, paciência. É o caso do grupo inglês Gang of Four, que está lançando o disco What Happens Next. Não se pode recebê-lo sem considerar que o quarteto incendiou o pós-punk com Entertainment!, em 1979. Que a fúria & inspiração da estreia foi arrefecendo nos trabalhos seguintes. E que, 36 anos e oito álbuns depois, a gangue pertence a só um: o guitarrista Andy Gill, único remanescente da formação original.

OK, seria tolice esperar aqueles acordes afiados e dançantes que influenciaram de Nirvana a Franz Ferdinand com mísseis sonoros como “I Found That Essence Rare” e “Damaged Goods” – esta última teve até seus versos aproveitados pelos Titãs em Corações e Mentes (“O teu beijo é tão doce / O teu suor é tão salgado/ Às vezes acho que te amo / Às vezes acho que é só sexo”). Mesmo que não chegue perto dos clássicos do quarteto, o novo disco tem seus momentos. Com a devoção esparramada pelo atual vocalista John Sterry, “Isles of Dogs”, “First World Citizen” e “Stranded” entrariam redondas no repertório do U2.



O diabinho aqui do lado cutuca: justamente por hoje lembrar a empresa de Bono Vox que o Gang of Four merece a danação eterna. Menos, menos. No início da carreira, o discurso político de ambos mirava inimigos em comum, as armas é que eram diferentes. Mas, vendo o que um e outro se tornaram, indignar-se com o que sobrou da “camarilha dos quatro” (nome extraído do termo com que o governo chinês referia-se à facção da viúva de Mao Tse Tung, expurgada do poder após a morte do marido) não deixa de ser a atitude mais sensata.

Camaradas à beira-mar
Em 8 de setembro de 2006, o Gang of Four apareceu em Florianópolis bancado por uma bebida metida a pop para um show com uma banda alienada em um templo da burguesia. A grupo era uma das atrações do Campari Rock, que levou também os Cardigans ao Costão do Santinho. Mas nem a formação histórica (Gill, o vocalista Jon King, o baixista Dave Allen e o baterista Hugo Borhan), nem o espancamento de um micro-ondas no palco comoveu a plateia, que só queria ver a loirinha Nina Persson cantar “Lovefool”. Diante da beleza sueca, não houve engajamento que resistisse.



RÓTULO DA HORA ||||||| RAPSICORDÉLICO
O QUÊ A poesia falada do rap com a métrica dos cordéis.
ONDE Na estreia solo de Gaspar, rapper do grupo paulistano Z’África Brasil.
COMO  Com participações de Zeca Baleiro, Emicida, KL Jay (Racionais MC’s) e Lirinha (Cordel do Fogo Encantado), entre outros.
QUAL É A proposta de apresentar “ritmos sincopados regionais em uma roupagem moderna que se apropria dos timbres eletrônicos em diálogo com instrumentos acústicos” é interessante – na teoria. Na prática, com muito boa vontade salva-se “Rapinbolada”, com Baleiro.



(coluna publicada hoje no Diário Catarinense)

20150220

Cada um sabe onde e como sente prazer



A trilha sonora do filme 50 Tons de Cinza reproduz fielmente a adaptação do best seller levada às telas. Como na relação entre o milionário Christian Grey e a universitária Anastasia Steele, ouvi-la traz muito sofrimento. E pouco prazer. Apesar de abrir com Annie Lennox sensualizando na versão de “I Put a Spell on You”, o empenho da seleção em mexer com a libido é tanto que tira toda a espontaneidade do processo – a menos que você sinta tesão folheando manuais técnicos de anatomia ou considere excitante esperar em fila de motel no Dia dos Namorados.

Um punhado de músicas que se encaixa em um padrão sexy não significa que alguém vá querer copular ao som delas. A maioria dos pretensos ritos de acasalamento não passa, na verdade, de “música de quem não está pegando ninguém (ou não irá pegar até chegar em casa)”, segundo Nick Hornby no livro 31 Canções. Para o escritor inglês, seria impossível não rir se durante uma transa rolasse, por exemplo, “Let’s Get it On”, de Marvin Gaye, com sua abordagem assim tão, hmmm, literal. Cada um com sua perversão.

O mesmo acontece com Beyoncé suspirando e pedindo tapas e mordidas nos remixes de “Crazy in Love” e “Haunted”. Com a dose dupla de R&B contemporâneo do cantor canadense Weeknd. Com os alternativos californianos do Awolnation cantando “I’m on Fire”, de Bruce Springsteen. Você deveria subir pelas paredes com isso, ficar facinha a ponto de engolir o Jagger chorão de “Beast of Burden” e o Sinatra fanfarrão de “Witchcraft”. Mas tudo o que consegue é achar graça. Certamente, não era esse o conceito de “gozar” que os produtores do disco tinham em mente.

Futuro para trás
Com lançamento previsto somente para abril, o quarto disco de Toro Y Moi, What For?, já circula pela rede. Como no projeto paralelo Les Sins, orientado para as pistas, em sua persona artística titular o americano Chaz Bundick dá sinais claros de que a fase rotulada de chillwave pertence ao passado. A mudança fez bem: o novo álbum está mais solar, com faixas como “Empty Nesters”,“Lilly” e “The Flight” transmitindo uma visão nostálgica e orgânica de pop.



POP POR TABELA ||||||| SUPERGRUPOS
O Rock In Rio confirmou o show do Hollywood Vampires, um supergrupo com Alice Cooper, o ator Johnny Depp e Joe Perry, guitarrista do Aerosmith. Confira outras bandas formadas por astros e o que aconteceu com elas:

Them Crooked Vultures
QUEM John Paul Jones (Led Zeppelin), Dave Grohl (Foo Fighters) e Josh Homme (Queens of the Stone Age)
E AÍ Gravou um disco em 2010 e parou por tempo indeterminado



Atoms for Peace
QUEM Thom Yorke e Nigel Godrich (ambos do Radiohead) e Flea (Red Hot Chili Peppers)
E AÍ Revelou o talento do catarinense Mauro Refosco na percussão



Nove Mil Anjos
QUEM Júnior (irmão de Sandy), Champignon (Charlie Brown Jr.) e Peu Souza (da banda de Pitty)
E AÍ Dois integrantes acabaram cometendo suicídio



(coluna publicada hoje no Diário Catarinense)

20150213

Ser legal demais também atrapalha

Precisamos falar sobre Diogo Strausz. Produtor, compositor, multi-instrumentista, 25 anos. Elogiado pelos trabalhos com figuras da nova cena carioca como Mahmundi, João Capdeville e Alice Caymmi. Apontado por O Globo como um dos artistas para se prestar atenção em 2015. No começo deste ano, ele lançou o disco solo Spectrum Vol.1 – disponível gratuitamente em seu site. Cheio de participações especiais, o álbum reflete a pluralidade de estilos acumulada pelo rapaz.

Desculpe o recalque, mas tem alguma coisa nesse “ciclo virtuoso” que irrita.



Não há nenhum motivo para duvidar que Strausz está sendo verdadeiro na escolha de cada convidado, na definição de cada timbre, no cuidado com cada detalhe. É o mundo dele – o mundo das pessoas interessantes, das citações inteligentes, do bom gosto. Das guitarradas paraenses de “Chibom” ao samba melancólico de “Assombração” (com Danilo Caymmi), da frenética “Me Ama” (com Kassim) à “FCK” (com Apollo), tudo é maneiro, descolado, moderno.

A revista americana Spin o definiu como uma “colisão de tecnobrega com Aphex Twin, Tom Zé e um pouco do estilo da DFA [gravadora nova-iorquina, lar de LCD Soundsystem e The Rapture] na medida certa”. É tanta referência, tanto nome, tanta condição favorável, que os matizes black de “Narcissus” (com os gêmeos Keops e Raoni, da banda Medulla) e “Não Deixe de Alimentar” (com as cantoras Ledjane Motta e Maria Pia) ou a delicadeza de “Se Renda”, parceria de produtor com o pai, Leno (aquele mesmo da Jovem Guarda), quase passam despercebidos. Da próxima vez, Strausz, seja menos cool, por favor.

Hormônios em ebulição
A volta das Sleater-Kinney depois de 10 anos, com No Cities to Love, lembra outro trio de mulheres que está com um disquinho simpático na praça. É o Ex Hex, da guitarrista e vocalista Mary Timony (que toca com duas integrantes do Sleater-Kinney no grupo Wild Flag). A banda estreou no final do ano passado com o urgente Rips, uma coleção de 12 músicas que exalam o melhor dos Ramones – a vocação chicletuda por trás da tosqueira. Essa inclinação rende delícias como “Beast”, “How You Got that Girl” e “New Kid”, entre outras joias do power pop movido a progesterona no talo.



DATAS QUADRADAS ||||||| 27 ANOS
O QUÊ O fim da banda The Cars, anunciado em fevereiro de 1988, após 11 anos de carreira e seis álbuns de estúdio.
QUEM Grupo liderado pelo vocalista Ric Ocasek, nunca teve tanto prestígio quanto seus pares da new wave americana como Blondie ou B-52’s, mas forjou uma identidade própria e empilhou um sucesso atrás do outro.
POR QUÊ Sem influências intelectualoides, a única pretensão dos Cars era fazer pop para tocar na rádio. E conseguiam.
LEGADO “Just What I Needed”, “Best Friend’s Girl”, “You Might Think”, “Shake it Up”, “Drive”.



(coluna publicada hoje no Diário Catarinense)

20150206

Nivelados pela velhice



A ideia de Bob Dylan cantando Frank Sinatra era tão insólita que dava até medo. Ambos simbolizam polos opostos na cultura pop. Um, jovem, proletário, oposição. Outro, coroa, burguês, situação. Mas a velhice os nivelou. Aos 73 anos, Dylan tornou-se uma instituição tão americana quanto a torta de maçã, as fraternidades universitárias e Sinatra, morto em 1998, aos 82. Por isso, o recém-lançado Shadows in the Night não tem nada de bizarro. É só um disco de um tiozinho interpretando músicas gravadas por outro tiozinho.

O que evitou maiores constrangimentos foi a decisão sensata de Dylan de não tentar parecer Sinatra. Em vez de clichês, o bardo selecionou canções registradas entre as décadas de 1940 e 1960 pelo artista que imortalizou “New York, New York”, “My Way” e “Strangers in the Night”. Também não quis bancar o crooner – e nem poderia, com sua voz, digamos, peculiar. Por fim, trocou as orquestrações originais por arranjos enxutos, com guitarra steel (tocada com um cilindro nas cordas), baixo acústico e percussão de leve.

Essas escolhas forjaram um álbum de uma placidez quase bovina. A banda engata uma toada na primeira faixa “I’m a Fool to Want You”, e segue na mesma pelas nove seguintes, sem nenhum pico que lembre por que Dylan é tão grande. As músicas dele já abasteceram revoluções e influenciaram meio mundo. No entanto, como o próprio já bradava em 1964, os tempos estão mudando. Em Shadows in the Night, viraram a trilha sonora perfeita para aquele domingo preguiçoso em que a gente inventa de arrumar as gavetas.

Só piora
O CD duplo Chacrinha - O Musical, com canções que inspiraram o espetáculo teatral escrito por Pedro Bial, mostra como o mainstream brasileiro empobreceu. O programa do “velho guerreiro” na TV sempre foi uma vitrine do que de mais popular rolava nas rádios. Em mais de 30 anos no ar, pela sua discoteca e, depois, cassino, passaram de tropicalistas (Gil, Caetano) a bregas (Waldick Soriano, Wando), de roqueiros (Raul Seixas, Legião Urbana) a sambistas (Clara Nunes, Elza Soares), de rebolativas (Gretchen, Lady Zu) a cinturas-duras (Nelson Ned, Gonzaguinha). Qualquer comparação com as paradas atuais, monopolizadas pelo gosto duvidoso, é pedir para se aborrecer.



TEM QUE CONHECER ||||||| WALTER WANDERLEY
O pernambucano Walter Wanderley fez parte da leva de brasileiros que, motivada pelo boom da bossa nova nos Estados Unidos, mudou-se para lá nos anos 1960. Naquele país, sua música, puramente instrumental, recebeu o devido valor. A partir do disco que gravou com Astrud Gilberto, A Certain Smile, A Certain Sadness (1966), o organista se consolidou na cena do brazilian jazz e seus timbres passaram a ser cada vez mais reconhecidos e requisitados – como pelo catarinense Luiz Henrique, com quem dividiu o álbum Popcorn em 1968. Morreu em 1986.



(coluna publicada hoje no Diário Catarinense)