20160329

Mais uma chance para a massa descobrir Céu

Em mentes preguiçosas, prestígio pode significar um salvo-conduto para investir em mais do mesmo. Não para Céu. Em vez de trilhar a estrada pavimentada pelos elogiados trabalhos anteriores, a cantora amplia sua capacidade de absorver influências em Tropix. No quarto disco, a mãe da pequena Rosa Morena – a quem a obra é dedicada – transita por diversos estilos sem nunca perder a naturalidade nem torná-los excludentes. Ela entra e sai de quaisquer ondas, filtrando de cada uma delas somente o suficiente para encorpar sua personalidade artística, jamais para diluí-la.



Produzido por Pupillo (baterista da Nação Zumbi) e pelo francês Hervé Salters (que despontou com o nome de General Elektriks), Tropix é MPB, pop, eletrônico, brega, retrô, futurista. Tais atributos estão mais propensos às sensações sugeridas pelas 12 faixas do que às suas inclinações musicais. Das texturas trip hop da delicada “Perfume do Invisível” à brejeirice de “Varanda Suspensa”, tudo constrói uma unidade que passa longe do ecletismo forçado: totalmente diferentes entre si, mas encaixadas no repertório como se Céu não cantasse outra coisa na vida.



Isso fica muito claro na segunda metade do álbum, a partir da despretensiosa Minhas Bics. A bossa nova torta da versão de “Chico Buarque Song”, do grupo Fellini (adorado pela crítica nos anos 1980), convive com a “sofrência” sutil de “Sangria”. Parceria com Fernando Almeida, dos Boogarins, “Camadas” empresta um pouco da lisergia dos goianos. É uma das duas canções não assinadas apenas pela paulistana – a outra é “A Nave Vai”, de Jorge Du Peixe (também da Nação Zumbi), talvez o hit que esteja faltando para que a massa descubra Céu. Seu Tropix é, disparado, o melhor disco nacional de 2016 até agora.

Vítima do terrorismo
Uma coincidência funesta fez com que o novo disco do Soulwax, a trilha sonora do filme Belgica, saísse na mesma semana que os atentados terroristas em Bruxelas. Na trama, dirigida por Felix Van Groeningen, dois irmãos vivem os excessos e ressacas da noite de Ghent – justamente a cidade-natal dos manos Stephen e David Dewaele. Para a trilha sonora, eles encarnam 16 artistas fictícios, cada um com uma pegada distinta. Sob pseudônimos como Noah’s Dark, White Virgins, Rubber Band e Burning Phlegm, entre outros, os dois vão do indie rock ao reggae, da black music setentista ao R&B. É muita criatividade – se não pelos aspectos musicais, para inventar tanto nome. No momento, The Shitz se candidata ao prêmio de melhor piada.




 ANÇAMENTOS



Marujo Cogumelo, Hiato – Em estado de animação suspensa desde 2011, o grupo de Xanxerê despertou com um belo disco em que tempera seu folk/country com aromas insuspeitos. “Amaralina”, por exemplo, viaja por paisagens da década de 1970, enquanto metais conferem balanço a “Café com Sal”. No lado mais tradicional, destaque para “If I’m Blue”. Baixe gratuitamente no site da banda.



Curtis Knight & The Squires, You Can’t Use My Name – Formação que seria relegada ao rodapé da história, não fosse um certo Jimi Hendrix em seus quadros e a ganância de sua família em explorar o baú do parente famoso. São canções gravadas entre 1965 e 1966, nas quais o futuro gênio da guitarra já mostra do que seria capaz em quatro temas instrumentais. Vale pela curiosidade.



(coluna publicada hoje no Diário Catarinense)

20160322

De laços renovados com a atualidade

O Primal Scream sempre confundiu causa e efeito. Ora o grupo escocês funciona como caixa de ressonância, reverberando o que acontece à sua volta; ora como emissário do rumo que seus pares deverão tomar. Com 30 anos de bons serviços prestados ao pop, não seria agora que a banda iria se despregar dessa conduta. A novidade em seu 11º disco, Chaosmosis, é que o quinteto aponta o radar para a própria carreira, evidenciando os acertos e erros que fizeram com que o líder Bobby Gillespie fosse ungido à condição de visionário ou rebaixado como um reles seguidor de tendências.

No primeiro single, Where the Light Gets in, a cantora americana Sky Ferreira contribui para adicionar um gosto de tecnopop inédito na trajetória dos britânicos. Na faixa que abre o trabalho, Trippin on Your Love, são as minas do trio Haim que colorem uma delícia indie-dance digna de Screamadelica (1991), considerado o melhor álbum da década de 1990 por muita gente respeitável. Embora em posições estratégicas dentro do contexto da obra, as participações especiais param por aí. Nas demais oito faixas, o mérito (ou a culpa) integral é da banda. Aí, depende da expectativa.



Se a intenção for revisitar o punk eletrônico de XTRMNTR (2000), When the Blackout Meets the Falloutcumpre o papel com louvor. O lado Rolling Stones, já explorado pelo grupo em diferentes circunstâncias em sua discografia, diz alô com Golden Ropee seu solo de sax (?!) pontuado pelo coral aleluia (?!?!). E a cara moderninha que não desgruda do Primal Scream aparece em I Can Change(Feeling Like a) Demon AgainAutumn in Paradiseemulando um Gorillaz de carne e osso. Na balança, Chaosmosis está longe de ser uma obra-prima. Mas renova os laços dos fãs com a atualidade.



Nome difícil, apelo fácil
Faça um favor a si mesma e procure pela banda DIIV. O quarteto do Brooklyn nova-iorquino surgiu em 2012 com Oshin, mas é com o segundo disco, Is the Is Are, que vem arrebanhando com um pop afiado e doce. O negócio soa tão familiar que, com a imaginação à solta, é possível associá-lo até a Dois, da Legião Urbana. As cinco primeiras músicas – de Out of MindBlue Boredon (Skys Song)– cativam de cara e enchem a boca de água para o banquete: são 17 canções do mesmo (alto) nível, quantidade rara para um álbum e que mostra o quão inspirado estava o quinteto. Vá atrás o quanto antes.




 ANÇAMENTOS



Africaine 808, Basar – Spiritual jazzfunk nigeriano, cosmic disco e cumbia são tentativas de rotular esta dupla alemã que transcende fronteiras musicais. Ignore as convenções e mergulhe no universo eletrônico dos caras sem medo de se surpreender com a gravidade de Language of the Bassou o delírio sintético de Rhythm is All You Can Dance.




Napkin – Dica do chapa Rubens Herbst, titular da coluna Orelhada do jornal A Notícia, a banda joinvilense já abriu para Far From Alaska (o que dá uma ideia do seu som) e chamou a atenção do selo Coqueiro Verde. Agora, chega ao seu segundo EP disposta a alçar voos mais altos. Já disponível em plataformas de streaming como Spotify e Deezer.



(coluna publicada hoje no Diário Catarinense)

20160315

Das vantagens da alienação

O fã espera. A crítica cobra. O mercado observa. Ainda sob o impacto das últimas micaretas dominicais, a música brasileira tateia em busca de um norte. Aturdida, vasculha o baú da História à procura de exemplos de como agir sem passar vergonha nem causá-la em terceiros. E encontra na maior banda deste pedaço da periferia do mundo – Os Mutantes – um jeito claro e inequívoco de se posicionar em meio à cegueira generalizada, em que quem tem olho é considerado monstro: contra a desinformação e o golpismo, escapismo e alienação.

A militância involuntária do trio paulistano eclodiu com tudo durante o Festival Internacional da Canção de 1968, quando acompanhava Cae­tano Veloso. Vaiado pelo público durante a execução de É Proibido Proibir, o baiano deu um discurso que já nasceu antológico. Vocês são a mesma juventude que vai sempre, sempre, matar amanhã o velhote inimigo que morreu ontem! Vocês não estão entendendo nada, nada, nada, absolutamente nada, bradou (ouça abaixo). Enquanto o bicho pegava, os Mutantes mergulhavam cada vez mais fundo em uma jam interminável, como se aquele situação à beira do surrealismo não afetasse nem um pouco sua energia e loucura.



Em 2000, perguntei a Rita Lee, ex-vocalista do grupo, de que forma eles encaravam o ambiente pesado de então. Estar na contramão de tudo naquela época era fundamental para sobreviver. Expandir a mente nos dava a maior sensação de liberdade possível dentro de repressões vindas de todas as direções. Era necessário ser alienado para não se contaminar com a depressão vigente, valia tudo para furar o bloqueio e partir para o arco-íris, lembrou a cantora. Pode não ser a melhor postura diante da situação atual, que muitas vezes exige atitudes extremas, mas é mais sensato do que pregar o retrocesso.



Rush de Amor à Ilha
Prestes a completar 343 anos no próximo dia 23, Florianópolis vai ganhar uma homenagem de artistas locais. Livremente inspirada no hino da cidade, a música chama-se Rush de Amor à Ilhae conta com vocais de ninguém menos do que Gazu, em seu primeiro trabalho depois que deixou o Dazaranha. Os créditos trazem também velhos conhecidos do submundo sônico-manezinho, como Jean Mafra (ex-Samambaia), André Seben (Dr. Jorge & Mr. Seben), Adriano Barvic (outro ex-Dazaranha), Cisso (Casablanca) e Jean Gengnagel (ex-Motoramma). Sou vagabundo do avesso/ Num pedacinho de terra, pago o preço que posso/ Eu vivo o feio e o belo/ Na tela: o riso amarelo; na cara: amor e desgosto, diz o cândido refrão. Mais detalhes daqui a pouco.


 ANÇAMENTOS



Charles Bradley, Changes – No Brasil, traições, desilusões e dores de cotovelo rendem hits sertanejos. Nos EUA, irrigam o soul extemporâneo deste cantor que estreou aos 54 anos, em 2002, e não parou mais de castigar corações com sua voz rascante. O que ele faz com o clássico do Black Sabbath que batiza seu novo disco é de restabelecer a fé na humanidade.



Mexrrissey, No Manchester – Os dilemas que Morrissey cantava nos Smiths sempre tiveram algo de drama mexicano. Isso transparece nos sucessos do grupo e da carreira solo do vocalista vertidas em roupagem mariachi. Por mais inusitado que pareça, o negócio funciona em lamentos como Estuvo Bien(Suedehead) ou Cada Dia És Domingo(Everyday is Like Sunday). ¡Arriba!



(coluna publicada hoje no Diário Catarinense)

20160308

8 mulheres que fazem com que todo dia seja delas



Qualquer dia é dia delas, incluindo (principalmente) as noites. Mas nunca é demais aproveitar a efeméride celebrada hoje para homenagear um seleto clube de mulheres: aquelas artistas que, pela postura, pelo rumo dado à carreira ou pelas consequências de suas escolhas, desafiaram um meio dominado por homens e fizeram a sociedade patriarcal, machista & misógina se dobrar ao seu talento. Todo poder a elas!

BILLIE HOLIDAY | Negra e pobre, comeu o pão que o diabo amassou: foi violentada aos 10 anos, aos 12 fazia faxina em um prostíbulo e aos 15 caiu na prostituição em Nova York. Seu jeito sofrido e sensual de cantar jazz a livrou das ruas, mas nem o sucesso apaziguou seu espírito. Morreu em 1959 de cirrose hepática, reflexo do vício em álcool e drogas.



NINA SIMONE | Já era uma cantora consagrada de jazz quando abraçou o movimento negro na década de 1960, defendendo a luta armada para garantir igualdade de direitos nos EUA. De temperamento complicado, acentuado pela medicação para o transtorno bipolar, nunca levou desaforo para casa – mesmo que tal postura acabasse prejudicando sua carreira.



RITA LEE | Formou com os irmãos Dias Baptista a mais incrível banda brasileira, os Mutantes. Quando o grupo perdeu a graça e partiu para o progressivo, pegou sua espontaneidade e foi ser feliz em outras companhias. Primeiro com a banda Tutti-Frutti, depois com o marido Roberto de Carvalho, protagonizou alguns dos momentos mais inspirados do rock e do pop nacional.



PATTI SMITH | Poeta, cantora, compositora, ativista. Depois de vagar pelos subterrâneos artísticos nova-iorquinos, estreou em disco em 1975 com uma fusão de rock, punk (que nem existia direito ainda) e poesia. Os versos que abrem o álbum, da música Gloria, de Van Morrison, sintetizam sua trajetória: “Jesus morreu pelos pecados de alguém, mas não pelos meus.”



DEBBIE HARRY | De 1978 até meados dos anos 1980, ninguém foi mais sexy e identificada com a sua época. Loira, linda e sem se importar com o que os outros pensavam, a ex-coelhinha da Playboy liderou a banda new wave Blondie, estendendo sua influência para a moda e o comportamento. Eles a cobiçavam, elas elas queriam imitá-la – e muitas também a desejavam.



CHRISSIE HYNDE | Poderia estar nessa lista exclusivamente pelos méritos musicais à frente dos Pretenders, grupo inglês que emplacou hits na década de 1980. No entanto, entra aqui por ser autora da frase que, em poucas palavras, expressa a diferença entre pop e rock e dispensa tradução para ser entendida: “Pop is about saying ‘fuck me’. Rock is about saying ‘fuck you’.”



MADONNA | A material girl talvez já se desse por satisfeita se a música apenas a tirasse do anonimato. Com o tempo, porém, soube estabelecer uma via de mão dupla com o sucesso, absorvendo novas tendências e lançando tantas outras. Tornou-se rainha do pop e, em 30 anos, já viu muitas ameaçarem seu trono. Nenhuma, porém, capaz de tirar sua coroa.



LAURYN HILL | Muitas rappers vieram antes, como Queen Latifah e Lil’ Kim. A proeza da ex-Fugees foi, graças à falta de educação de seu disco solo, ter se tornado a mulher com mais indicações ao Grammy, em 1999 – das 11, levou cinco, entre os quais melhor álbum e melhor cantora. E, mais importante do que prêmios: abriu o mercado para outras colegas do estilo.



(coluna publicada hoje no Diário Catarinense)

20160301

À vontade com suas escolhas

Tanto aprontou Ed Motta para não ser confundido com os conterrâneos feios e mal-educados que até outro dia lhe pagavam as contas que seu 12º disco não tem qualquer vínculo com o Brasil e com os brasileiros. Lançado em fevereiro na Europa e no Japão, Perpetual Gateways foi gravado nos Estados Unidos com instrumentistas americanos e é todo em inglês. A previsão é de que a edição nacional saia em 11 de março, mas as dez faixas autorais divididas entre soul e jazz deixam bem claro o público-alvo do trabalho: o culto & sofisticado consumidor estrangeiro do primeiro mundo.



Como já vinha fazendo antes mesmo de AOR (2013), batizado com a classificação do mercado gringo para adult oriented rock, o cantor investe em uma musicalidade muito mais relacionada à madureza do que ao estilo expresso na sigla. Na primeira metade do álbum, é inegável a influência de Steely Dan. Os timbres elegantes e o groove suave de “Hyponcodriac's Fun”, “Good Intentions” e “Heritage Déjà Vu” têm tudo a ver com a dupla americana que brilhou na década de 1970 cunhando um pop no qual imperava o requinte do jazz – se você não conhece, vá atrás, por favor.

A segunda parte traz o artista em faceta jazzista mais ortodoxa, puxando-se para ficar pelo menos à altura dos craques que o acompanham. A concorrência é forte, com a banda quebrando tudo e extrapolando as convenções do gênero em “Forgotten Nickname”, “The Owner” e “A Town in Flames”. São os músicos – todos com extensa folha de serviços prestados ao ritmo – que respaldam o caminho adotado por Motta. Pois, em vez de viver de hits radiofônicos, coisa em que já provou que tem a manha, ele preferiu se aventurar em um nicho impopular, onde muitas vezes suas pretensões são encaradas como piada. Que seja feliz com suas escolhas.

Vinil arranhado
Produzida por Martin Scorcese e Mick Jagger, a incensada série Vinyl, sobre as entranhas da indústria da música nos anos 1970, esbarra em um problema mais inacreditável do que o preço do pacote da operadora de TV a cabo com o canal que a exibe: a trilha sonora. Pela temática e pela época, o conjunto de canções que embala a trama tinha tudo para ser épico. Mas passa longe disso – e a resposta para o nanismo dos artistas escalados está no altíssimo valor do licenciamento de canções originais. Salva-se a racha-assoalho “It's Just Begun”, de Jimmy Castor Bunch, e olhe lá.




 ANÇAMENTOS



Quilt, Plaza – Em seu terceiro disco, o quarteto de Boston borra as fronteiras entre psicodelismo e indie rock. Descobrir onde termina um e começa outro é a última coisa com a qual se preocupar para se deleitar com pepitas como “Eliot St” e “Passersby”. Com alguma sorte e um pouco de justiça, talvez a gente ainda ouça falar muito dessa rapaziada.



TEEN, Love Yes – Como é que ninguém nunca pensou nesse nome antes? A frescura de ser todo em maiúsculas estende-se pelo terceiro trabalho dessa banda formada por três irmãs e uma amiga radicadas em Nova York. Coloque “Free Time”, “All About us” ou “Tokyo” para rolar e brinque de buscar referências, que vão de Madonna fase oitentista a Cocteau Twins.



(coluna publicada hoje no Diário Catarinense)