20160426

Em paz com o seu tempo

Quase nunca é bom negócio estar à frente do seu tempo na música. Na melhor das hipóteses, o artista morre e acaba sendo reconhecido como visionário. Na pior, termina seus dias pobre e amargurado com a injustiça & ingratidão do mundo. Que o diga o DeFalla. A banda gaúcha costumava antecipar tendências – e presenciou gente depois fazendo as mesmas coisas e ficando com a fama e a fortuna que lhe foram negadas. Por isso, Monstro soa tão oportuno: em seu nono disco de estúdio, o primeiro em 14 anos, o grupo liderado por Edu K finalmente se enquadra na época em que vive.



Sem a imposição de apontar caminhos, o álbum reverbera estilos que o próprio DeFalla já explorou em três décadas de carreira. O funk metal dos primórdios se atualiza em Zen FrankensteinFruit Punch Tears. O pop rock, rótulo que sempre penou para receber o devido valor na mitologia da banda, aparece em Venenoe em Dez Mil Vezes– essa, com vocais de um antigo desafeto, o engenheiro havaiano Humberto Gessinger. Outra participação digna de nota é de Beto Bruno, que traz o Cachorro Grande para a conversa em Timothy Leary.



A homenagem ao grande difusor do LSD é a segunda parte de uma trilogia psicodélica que se completa com Aldous Huxley(autor de Admirável Mundo Novo) e Ken Kesey(autor de Um Estranho no Ninho). Mas Monstro se coloca muito mais competitivo" em termos de apelo comercial do que o oposto sugerido pela reverência a personalidades tortas: o disco acerta as contas com o passado, reúne um punhado de refrãos memoráveis, tem potencial para atrair a molecada e manter os velhos fãs. Após tanto murro em ponta de faca, a formação clássica do DeFalla conseguiu parir seu trabalho mais bem-resolvido. O futuro estava mais perto do que eles pensavam.

Mãos ardentes
Caetano, Gal , Gil, Rita e Jards são alguns que recorreram aos préstimos de Lanny Gordin e sua guitarra endiabrada. Diz a lenda que, já no ostracismo pós-Tropicália, ele chegou a atear fogo nas mãos em uma viagem mal-sucedida. Folclore ou não, o fato é que poucos no país têm uma história tão luzidia nas seis cordas. O lançamento Lanny's Quartet & All Stars recupera um pouco dessa flamejante trajetória em regravações instrumentais de London LondonBack to BahiaMal SecretoPérola Negra, entre outros clássicos de artistas aos quais emprestou seu talento. Não à toa, os colegas de instrumento Sergio Baptista, Luiz Carlini, Pepeu Gomes, Roberto Frejat e Edgar Scandurra fazem fila para acompanhá-lo.




 ANÇAMENTOS



Rashid, A Coragem da Luz – O rapper paulistano estreia com uma pegada em que sobressai o jazz para mandar papos retos sobre a correria do dia a dia. Criolo e Mano Brown tabelam com ele em Homem do Mundoe Ruaterapia, mas é nas ladainhas solitárias de DNASegunda-feiraou Groove do Vilãoque o mano diz a que veio.



New York Noise Dance Music from the New York Underground 1977-82 – Descubra onde LCD Soundsystem, Rapture e toda a moçada nova-iorquina foi buscar inspiração para botar banca no século 21. Está tudo nessa coletânea: o groove empenado dos Bush Tetras, o ritmo invertebrado do Material, as conexões com a eletrônica do Konk.



(coluna publicada hoje no Diário Catarinense)

20160419

Um golpe no coração do rock

Começou como uma possibilidade remota. Era tão acintosa, desprezível e absurda que ninguém botou fé em sua concretização. Eles não seriam capazes de emporcalhar suas biografias em nome de um projeto fadado a dar errado, se não pela ilegitimidade, pela falta de escrúpulos envolvida na decisão. Não teriam o descaramento de ignorar a vontade popular, impondo um substituto que, mais do que desagradar, causa asco à maioria. Não fariam pouco caso de décadas de conquistas – obtidas após muito empenho, muita luta, muito sacrifício – só para satisfazer aos seus interesses. Mas foram. Tiveram. Fizeram.



Na primeira vez que aconteceu, não havia outra alternativa. De forma inapelável, o então titular estava impedido de continuar exercendo a função. Mesmo assim, eles mostraram coragem ao bancar o sucessor, alvo de dúvidas logo que anunciado. A História acabou chancelando a escolha, e aquele que entrou cercado de todas as desconfianças saiu redimido por, no mínimo, ter mantido a roda girando para a frente. Agora, é totalmente diferente. Apesar de todos os sinais inequívocos de reprovação, eles indicam como solução alguém que representa a antítese dos ideais com os quais arregimentaram multidões de seguidores.

O rumor virou fato neste domingo infame: Axl Rose será o vocalista do AC/DC pelo restante da turnê Rock or Bust. Diz o comunicado oficial que, a princípio, o vocalista do Guns n’ Roses irá se juntar aos australianos para os shows na Europa e para as 10 apresentações adiadas nos Estados Unidos. O coração do fã, porém, não se engana. Brian Johnson, que chegou à banda depois da morte do inigualável Bon Scott em 1980 e está saindo devido ao risco de perder a audição, não voltará mais. Com mais de 40 anos de rock de verdade nas costas, bem que o grupo poderia se aposentar sem esse golpe.

Macaco de pelúcia
Quando estreou em 2008, o Last Shadow Puppets era só um projeto paralelo reunindo figurinhas do indie rock. O tempo passou e, hoje, pelo menos um de seus artífices viu sua banda principal tornar-se tão grande a ponto de o segundo disco da empreitada chegar com o carimbo de “o outro grupo de Alex Turner, dos Arctic Monkeys”. Com o ônus da comparação e bônus da exposição que essa pecha implica, Everything You’ve Come to Expect funciona para Turner como o The Arcs para Dan Auerbach, dos Black Keys: é ali que ele extravasa facetas que talvez não tivessem vez entre os macacos. Comece pela faixa-título, “Miracle Aligner” e “Dracula Teeth” e deixe o talento do moço fluir à vontade.




 ANÇAMENTOS



Fumaça Preta, Impuros Fanáticos – Aqui, o papo é loucura da pesada, fornecida por um trio radicado na Europa que não esconde sua predileção pelo lado mais sombrio da Tropicália. Distorção, ecos e gritaria (em português, cortesia do vocalista e baterista Alex Ferreira) dão o tom, anunciando uma viagem doentia pelos confins da mente.



Leo Mayer, Guitar in My Hand – Neste segundo EP, o guitarrista de Blumenau faz do rio Itajaí-Açu o seu Mississippi particular, esmerilhando blues regados à cerveja em vez de uísque. Como na estreia, Cristiano Ferreira (referência no estilo no Brasil) participa assinando três das seis faixas: “You’ve Been Goofing”, “Drivin’ with the Band” e “Jazzin’ the Blues”.



(coluna publicada hoje no Diário Catarinense)

20160412

Sem pressa de conquistar você

Na dimensão paralela habitada por Mayer Hawthorne, o mundo ainda acredita no amor embalado pelo soul da década de 1960. A presença de elementos dessa época no som e no visual é tão forte na trajetória do americano que a gente nunca sabe se é para levá-lo a sério ou se tudo não passa de uma grande tiração de sarro com a onda vintage. Branco, com cara de nerd e dono de um falsete de espremer os olhos, ele apresenta o quarto disco sem fazer nenhum esforço para acabar com a dúvida – que, a essa altura, já se tornou uma questão irrelevante diante do deleite proporcionado por Man About Town.

Caso o público catarinense não esteja associando o nome ao artista, trata-se daquele magrão estiloso que em janeiro de 2011 fez um dos shows de abertura para Amy Winehouse no Summer Soul Festival, em Florianópolis. De lá para cá, além da carreira solo Haw­thorne apareceu em álbuns de projetos como Jaded Incorporated (2014) e Tuxedo (2015), sempre calcado em vertentes da black music. Mas é sob a própria assinatura que ele reserva o melhor de sua obra: uma inegável vocação para, literalmente retrô ou com pontuais concessões a uma pegada mais atual, cunhar canções que balançam em velocidade de cruzeiro.



Da lavra mais tradicional, não dá para ignorar a sofisticação sem afetação de Cosmic Lovee os corinhos enternecidos de Breakfast in Bed. Como de costume, há também um reggae de gravata borboleta (Fancy Clothes) e um soft rock que emula de Wings a Steely Dan (The Valley). A novidade, se é que se pode chamá-la assim, vem da canastrice assumida em Lingerie & Candlewax, em que uma batida safada desperta os instintos mais primitivos. O figura chega a engrossar a voz para convencer na milenar arte de conquistar, apontando um caminho diferente para futuros trabalhos. Afinal, a variedade é o molho da vida.



Milonga moderna
Anunciado como um dos destaques da programação do Jurerê Jazz Festival, Philippe Cohen Solal desembarca em Florianópolis como uma incógnita. A referência imediata é o Gotan Project, trio em que ele ajudou a formatar o tango com investidura eletrônica. A ideia se materializou no excelente disco de estreia do grupo em 2001, inspirou um sem número de imitadores e, desgraçadamente, virou sinônino de música de coxinha (na acepção janota do termo, nada a ver com política). O francês se apresenta na cidade no dia 22 como DJ, trazendo um set que privilegia ritmos étnicos – leia-se não anglo-saxônicos – revestidos com batidas moderninhas. A promessa é de uma noite adulta, chique e, conforme a disposição etílica, sensual. Vá de táxi.




 ANÇAMENTOS



Balthazar, Encantamento – O quarteto de Criciúma se define como uma banda de rock clássico com um fundo místico. A proposta musical fica bem clara com as guitarras setentistas e/ou psicodélicas que envenenam as 10 faixas do disco. Já o lado espiritual deve ser creditado a petardos com títulos como Jung e o TarôO Magoou Ouroboros. Melhor não mexer com eles!



Alceu Valença, A Luneta do Tempo – Para a trilha sonora de sua estreia como cineasta, o pernambucano revisita os sons da infância, buscando influências na literatura de cordel e nas emboladas do sertão. São 28 temas distribuídos em dois CDs e entremeados por diálogos da trama, em que o pop da carreira de Valença dá lugar às suas raízes.



(coluna publicada hoje no Diário Catarinense)

20160405

O novo som de Salvador pede passagem

Muito além dos abadás berrantes, das coreografias duvidosas e da alegria ensaiada, algo de novo está acontecendo na cena pop de Salvador. Surgido em 2009 com a pretensão assumida de “modernizar o passado amplificando as tradições populares”, o coletivo BaianaSystem chega ao segundo disco pronto para seduzir corações, mentes e quadris da metade meridional do país. Você já ouviu esse papo de unir regional com universal antes com Chico Science, mas Duas Cidades se difere do mangue beat pela origem, pelas matrizes empregadas para atingir seu intento e por introduzir no menu sonoro nacional o “bahia bass”.



O BaianaSystem é um dos expoentes desse movimento, estética, gênero ou seja lá o que for, criado para ressignificar a música urbana soteropolitana. Como os sound sys­tems jamaicanos nos quais se inspira, a configuração do grupo gira em torno de Roberto Barreto (guitarra), Russo Passapusso (vocais) e SekoBass (baixo). Os demais integrantes variam conforme a ocasião, incluindo percussionistas, DJs e produtores. Essa combinação acaba resultando em um som livre para beber de qualquer fonte de qualquer lugar de qualquer época, desde que seja dançante.

As duas músicas que precederam o lançamento do álbum – o reggae nervoso “Playsom” e a cumbia “Lucro (Descomprimindo)”– dão uma noção do banquete que aguarda o ouvinte. Aqui e ali, em doses generosas ou pin­celadas sutis, aparecem frevo, kuduro, pagode, samba-reg­gae, ijexá e ritmos afro-latinos, embalados por letras em sua maioria políticas e batidões de levantar defunto. É tanta informação que fica até difícil apontar algum destaque. Por enquanto, as frenéticas “Calamatraca” e “Bala na Agulha” despontam como favoritas. Nada impede, porém, que essa lista mude na próxima audição de Duas Cidades.

Clube punk-brega
Produzido via financiamento coletivo, Wanclub desenterra e rearranja pepitas do repertório de Wander Wildner. Para satisfação da posteridade, clássicos dos Replicantes (antiga banda do bardo punk-brega) como “Astronauta” e “Surfista Calhorda” foram mantidos quase irretocáveis – o mesmo não se pode dizer de “Sandina”, que ganhou uma roupagem tosca no mau sentido. De sua carreira solo, “Eu Não Consigo Ser Alegre o Tempo Inteiro” e “Um Lugar do Caralho” funcionam sempre, não importa a releitura. A versão física conta com 14 faixas e a digital traz seis a mais (incluindo a inédita “Colonos em Chamas”), disponíveis também para download àqueles que ajudaram a bancar o disco.




 ANÇAMENTOS



João Donato, Donato Elétrico – Um trabalho cheio de ideias novas, produzido à moda antiga. É assim que o acreano de 81 anos, quase 70 de carreira, define este disco. No repertório, o artista parte de seus álbuns da década de 1970, como A Bad Donato e Donato/Deodato, para explorar abordagens contemporâneas com piano elétrico, sintetizadores e teclados analógicos.



The 1975, I Like It When You Sleep, for You Are So Beautiful Yet So Unaware of It – Por trás do nome quilométrico está o segundo disco da banda inglesa que, em seus melhores momentos, lembra um Duran Duran alternativo. Sintonize “Love me”, “UGH” ou “The Sound” e comprove que a história sempre se repete como farsa.



(coluna publicada hoje no Diário Catarinense)