20160531

O Woody Allen da canção

Tudo indica que Bob Dylan caminha a passos largos para se tornar o Woody Allen da música. Como o cineasta, ele tem ascendência judia e assina com pseudônimo – inclusive o sobrenome verdadeiro de um é o falso de outro. Também é patrimônio da cultura dos Estados Unidos, daqueles que quando morrer vai gerar longos e laudatórios obituários de costa a costa. E, já em idade avançada, adotou um método de produção que o diretor de Noivo Neurótico, Noiva Nervosa mantém desde jovem: estando inspirado ou não, bota coisa nova na rua ano após ano. No caso, o 37º disco de sua duradoura carreira, Fallen Angels.

O álbum é quase uma continuação do anterior, Shadows in the Night, lançado em 2015. Os dois trabalhos trazem canções populares americanas imortalizadas por Frank Sinatra. O detalhe que faz toda a diferença é o humor ou, em bom português, o mood. Enquanto aquele se arrasta, taciturno, este flana pela faceirice. Mérito do repertório escolhido, pinçado entre os mais conhecidos standards gravados pelo Mr. Blue Eyes. Nem a cor dos olhos e muito menos a voz de Dylan se comparam às do cantor, mas seu timbre peculiar acaba dando uma velha cara simpática a manjadas interpretações.



É o que acontece com as batidíssimas “All the Way” e “Skylark” (a única nunca registrada por Sinatra). Seus arranjos miúdos apenas ressaltam o conforto que os versos soprados no vento pelo menestrel proporciona. A dúzia de baladas como “ It Had to Be You” deixa Fallen Angel com cara de trilha sonora para um jantar a dois com alguém já conquistado ou, em âmbito mais caseiro, para arrumar gavetas em um domingo preguiçoso depois de assistir ao último filme de Allen. A exemplo do diretor, que vem rodando seus longas longe de Hollywood, Dylan poderia continuar nessa toada e se debruçar sobre o cancioneiro de paragens mais distantes. Desde que não se atreva a entoar “A Luz de Tieta”.

Bacana jimais
O nome é sensacional: Joutro Mundo, com o jota pronunciado à inglesa, como em John. Cria do produtor carioca Jonas Rocha, o projeto colide os embalos de sábado à noite com o groove verde e amarelo. A proposta recheia a coletânea Brazilian Boogie & Disco Reworks Vol. 1 com truques como “Panthera” – por cima de uma versão de “Sing to me Mama”, de Karen Cheryl, são jogadas pitadas de ritmos amazônicos e africanos. A melhor faixa é “Paul in Rio”, nada menos do que a deliciosa “Coming Up”, de McCartney, engordada por beats que anunciam palavras de ordem a quem quer felicidade.




 ANÇAMENTOS



Ponto Nulo no Céu, Pintando Quadros do Invisível – Surgida em 2007, a banda catarinense logo se destacou pela bem acabada sonoridade, que conjuga new metal com referências de outros gêneros sem nunca parecer forçada. Este terceiro disco – que terá distribuição digital pela Deckdisc – promete voos mais altos ao grupo. Potencial não falta.



Black Pistol Fire, Don't Wake the Riot – Um na guitarra e vocais, outro na bateria. Você já (ou)viu esse formato nos White Stripes e nos Black Keys. A dupla canadense radicada no Texas não se incomoda com as comparações e oferece um punhado de rock empoeirado pela estradas do Sul dos Estados Unidos e blues garageiros sujos de graxa.



(coluna publicada hoje no Diário Catarinense)

20160524

De farsa em farsa

Em 2007, um colega de São Paulo ligou com uma proposta irrecusável para eu trocar a informalidade jornalística pela fortuna do showbusiness. Ele estava envolvido com a vinda do ex-baixista dos Sex Pistols Glen Matlock para uma série de discotecagens no Brasil e queria incluir Florianópolis no roteiro. Cachê, passagens e estadia correriam por conta de uma multinacional do setor tabagista, só faltava o local para o inglês se apresentar na cidade. Eu teria que descolar esse lugar. Meu pagamento seria o percentual de bilheteria que eu conseguisse negociar com os donos. Topei na hora.

Procura dali, consulta daqui, acabei convencendo o gerente de uma badalada casa noturna na Lagoa da Conceição a me receber. Eu tinha na manga não apenas uma atração internacional a custo zero: tratava-se de uma figura que havia integrado a banda ícone do movimento punk, uma lenda do rock pela primeira vez em Santa Catarina. Já podia imaginar os cartazes nas ruas com a chamada “um pistol na ilha”, os spots nas rádios ao som de “Anarchy in the UK”, a fila para comprar ingressos. O potencial parceiro enlouqueceria com a oferta.



Mas a reação dele me quebrou as pernas. “Tá, mas o que esse Sex Pistols toca?”, perguntou. Ante meu estupor, completou, cheio de marra: “Porque eu trabalho com música há 20 anos e nunca ouvi falar desses caras, então não devem ser muito famosos”. De tão chocado, nada respondi. Agradeci pela atenção e, na saída, ainda comentei, apontando para um pôster com “a revelação da e-music sul-africana”: “House demais na cabeça dá nisso”, abortando qualquer plano de trazer Matlock para cá. Lembrei dessa história quando um amigo veio falar de política comigo. Se ele não é capaz de reconhecer algumas premissas básicas, nem vou perder meu tempo tentando mudar seu ponto de vista.

Festa para depois
Primeiro disco de inéditas de Fernanda Abreu desde 2004, Amor Geral reflete as transformações na vida da cantora nesse período. O fim de um casamento de 27 anos, a morte da mãe, as duas filhas para criar – tudo isso confere ao álbum um caráter menos festeiro do que o associado à artista. Mesmo em faixas nas quais imperam clichês garota-carioca-suíngue-sangue-bom, como “Tambor” (com participação do pai da matéria Afrika Bambaataa), a rotação está mais baixa e as letras, mais contemplativas. Talvez fosse o trabalho que ela tivesse que fazer agora, servindo de transição para um próximo lançamento.




 ANÇAMENT
OS



Parquet Courts, Human Performance – Ninguém espera que a banda nova-iorquina, já no quinto disco, torne-se “a próxima grande coisa”. Liberto dessa pressão artificial, o grupo se encontra à vontade para desacelerar seu punk rock e caprichar mais na melodia que reveste músicas como “Dust”, “Outside” e “No Man No City”.



John Frusciante, Foregrow – O guitarrista dos Red Hot Chili Peppers largou a banda com o nobre propósito de sobreviver aos demônios interiores. Parte da terapia é desovar, de quando em quando, EPs com sua recente produção calcada na eletrônica. Este é um deles, com quatro faixas em que mescla cordas e beats para tecer paisagens ora oníricas, ora perturbadoras.



(coluna publicada hoje no Diário Catarinense)

20160517

O eterno verão da esperança

Mulher e negra, a carioca Marcela Vale, 29 anos, não teria vez neste governo anômalo que tomou o Brasil de assalto. Mas aqui o espaço de Mahmundi – como ela assina – está garantido. Porque, independentemente de sexo ou cor, a cantora, compositora e multi-instrumentista acaba de estrear com um autointitulado disco alentador. Para enxotar o desânimo, sua arma é o pop sintetizado da década de 1980.

Sem soar datado, o álbum esbanja teclados e batidas programadas como se no país ainda imperassem os novos tempos preconizados pela Nova República. Na praia de Mahmundi, pelo menos, dias felizes resistem em letras que evocam um estilo de vida regido pelo sol, mar e romance. Por mais que os fatos autorizem o contrário, dá para acreditar quando, qual uma Marina Lima rebobinada, a moça canta que “tudo vai melhorar para nós dois” em “Eterno Verão”.



A temporada sem fim em vigor no álbum inclui faixas de EPs anteriores, como “Calor do Amor” e “Desaguar”. Ambas de 2012, já chamavam a atenção para a artista que começou entoando gospel na igreja do subúrbio. Da fornada que veio à luz em 2016, “Hit” faz jus ao título e entrega o espírito do trabalho: “No meu coração, fiz um disco para lembrar você”. O verso não estaria errado caso se referisse à esperança.

Criolo revisita tempo de doido
Dez anos depois do lançamento, Criolo reedita seu primeiro disco, Ainda Há Tempo. Da época em que o rapper atendia por “doido” e ainda não tinha caído nas graças do mainstream, o álbum ganhou capa chique e teve recauchutadas oito das 22 faixas da versão original. Claro que hoje o mano tem a sabedoria de quem não precisa mais resolver no tiro, mas as sementes do que ele iria se tornar já estavam presentes nesta estreia. Tanto no discurso, aliando contundência e poesia em faixas como “É o Teste”, “Tô pra Ver” e “Até me Emocionei”, quanto nas batidas, expandindo os horizontes do hip hop nacional. Baixe-o legal e gratuitamente aqui.




 ANÇAMENTOS



Electric Citizen, Higher Time – Em seu segundo disco, o quarteto vindo de Ohio que o parta continua fazendo rock pauleira às vezes arrastado, eventualmente acelerado e sempre barulhento. Seu diferencial – vocal feminino – é também sua maldição: há momentos em que as melodias de Laura Dolan destoam de riffs promissores como em “Social Phobia” e “Natural Law”.



Vinolimbo, Emerge – Tema da primeira aparição desta coluna (no longínquo agosto de 2014), Murilo Mattei persevera com as colagens sonoras que emana de Florianópolis para o mundo. Neste EP composto por quatro faixas (é só pegar) com a duração de vinhetas ampliadas, ele não dispensa os habituais flertes com jazz e bossa nova para forrar as texturas ambient que chegam ao ápice em “Extrovert Loner”.



(coluna publicada hoje no Diário Catarinense)

20160510

O lado claro da (piscina em forma de) lua

Existe uma expressão em inglês – acquired taste – usada para descrever a capacidade de se aprender a apreciar algo que, à primeira impressão, não desce bem. Tipo aquela iguaria com aspecto repugnante que você sentiu nojo quando viu, estranhou ao provar e, depois de insistir algumas vezes, passou a adorar. O novo disco do Radiohead precisa desse (literalmente) gosto adquirido para ser fruído na plenitude. Lançado neste domingo, A Moon Shaped Pool exige toda uma bagagem prévia do jeito que a banda encara a carreira para não soçobrar como apenas mais um trabalho difícil de um grupo que não se esforça para agradar.

Das 11 faixas dispostas em ordem alfabética, a rigor somente quatro podem ser consideradas inéditas. Destas, “Deck’s Dark“ e sua melodia doce por trás da suposta cabecice reforça a sensação de placidez que permeia o álbum – a ponto de soar quase acessível a ouvidos pouco afeitos à obra do Radiohead, principalmente diante dos experimentos anteriores. Mas são as músicas já apresentadas há anos em shows ou registradas em projetos paralelos ou colaborações, porém até então ausentes na discografia do grupo, que tornam irresistível o mergulho na “piscina em forma de lua”.



Executada ao vivo desde 2012, “Identikit” ameça explodir, levando essa expectativa em banho-maria até esvanecer. “Present Tense” (da safra 2008), “The Numbers” (conhecida pelos fãs como “Silent Spring”) e “True Love Waits” (de 1995, gravada no EP I Might Be Wrong, em 2001) partem do folk para construir uma paisagem tão bela quanto devastadora. “Ful Stop”, por sua vez, traz pontuação eletrônica na medida para trafegar entre o trip hop e algum rótulo ainda a ser inventado. Acostumado a surpreender sempre, o Radiohead nem assusta muito neste nono disco. Daí vem seu maior encanto.

Marisa aos montes
Mas é uma coletânea?! É essa reação – que não esconde um pouco de decepção – que provoca o “novo” disco de Marisa Monte, Coleção. Para sorte da cantora, porém, o baú que ela se propõe a resgatar guarda alguns tesouros. “Nu com a Minha Música” é de Caetano, mas poderia ser dos Los Hermanos – e você acharia isso mesmo se Rodrigo Amarante não dividisse os vocais. “É Doce Morrer no Mar”, de Dorival Caymmi, ganha em dramaticidade com o sotaque delicioso da cabo-verdiana Cesaria Evora – o fado também abençoa “Chuva no Mar”, acompanhada pela portuguesa Carminho. As demais faixas preenchem a fissura dos fãs da diva, incluindo aí uma versão moderninha de “Águas de Março” (com David Byrne) e “Alta Noite”, dueto com Arnaldo Antunes emulando um Tribalistas redux.




 ANÇAMENTOS



Santana, IV – O terceiro disco do guitarrista, III, saiu em 1971. Agora, parece que ele retoma justalmente de onde parou nesta época, esmerilhando nas seis cordas como se entre um e outro não tivesse flertado com o pop mais deslavado. Aqui, a onda é rock cucaracha, movido a delírios latinos como em “Fillmore East” e “Freedom in Your Mind”.



Victor Rice e Bixiga 70, The Copan Connection – O maestro do dub radicado em São Paulo encontra a banda de afrobeat paulistana e o resultado não poderia ser outro: o ritmo puro do grupo tem sua espinha dorsal dissecada no estúdio, realçando graves, cadências e efeitos prontos para entortar ainda mais a coluna.



(coluna publicada hoje no Diário Catarinense)

20160503

Limão bem espremido

Um “álbum visual”, acompanhado de um filme de uma hora que o traduz em imagens. A estreia direto no topo da parada dos Estados Unidos, repetindo a façanha dos cinco trabalhos anteriores. As mais de 650 mil cópias vendidas na primeira semana, superando inclusive um Prince redivivo pela morte. O lançamento exclusivo no Tidal, a plataforma digital com que o marido Jay-Z disputa o acirrado mercado de streamings. As letras sobre desafios e conquistas de negros e mulheres. O corpo, cada vez mais escultural. Sério mesmo que você quer ler sobre a música do novo disco de Beyoncé, Lemonade?



Pois são tantas marcas expressivas, tantos factoides, que o lado musical dela às vezes fica em segundo plano na percepção da mídia. Não deveria: para além dos clipes ultraproduzidos, das estratégias de marketing e dos flagras dos paparazzi há uma artista que, independentemente do que você e eu achemos, procurou renovar sua sonoridade na mesma medida em que passou a falar de temas mais sérios. A rainha não estava brincando quando fez referências aos radicais Panteras Negras em seu show no intervalo do Super Bowl, em fevereiro.

Em Lemonade, o R&B que pavimentou a milionária carreira da cantora divide espaço com soul, gospel, funk, rap, rock e até country (“Daddy Lessons”). As participações especiais dão um indicativo do que esperar: o tagarela Kendrick Lamar (na emblemática “Freedom”), os rouxinóis The Weeknd (“6 Inch”) e James Blake (“Forward”) e o infalível Jack White acrescentando um bocado de ruído e distorção ao universo de Beyoncé em “Don’t Hurt Yourself”. Pode não render mais aquelas filmagens caseiras com fãs pagando mico ao tentar reproduzir suas coreografias, mas periga ser ouvida por mais tempo.

Frevo no salão
Neste dia 6, a pedida é esquecer o frio com o show da SpokFrevo Orquestra em Florianópolis. A big band pernambucana ocupa o Teatro Pedro Ivo a partir das 21h para lançar o terceiro disco, Frevo Sanfonado – que, como o título sugere, leva metais, percussão, baixo e guitarra do gênero característico do carnaval recifense a dialogar com o acordeão. Entre os destaques do repertório regido pelo maestro Spok estão “Sax Sanfona”, “Saudade de Seu Domingos” e “Frevo pra Ela”. Uma das poucas faixas não inéditas é o clássico “Gostosão”, de Nelson Farreira (1902-1976), rearranjado com direito a solo de Waldonys, famoso sanfoneiro e piloto de avião cearense (!). Ingressos à venda no BlueTicket.



 ANÇAMENTOS



Holy Ghost!, Crime Cutz – Enquanto não solta o sucessor do ótimo Dynamics (2013), a dupla indie eletrônica nova-iorquina esquenta as turbinas com este EP. São quatro faixas que acentuam a vocação dos bacanas em cumprir com os fundamentos da pista, desta vez à base de disco funk com um quê de espacial.



Tee Mac, Nepa Oh Nepa – O nigeriano alcançou sucesso global com sua flauta mágica nos hits “Fly Robin Fly” e “Get Up & Boogie” na década de 1970. Esta coletânea reúne músicas menos famosas dos álbuns Party Fever (1980), Mixed Grill (1979) e Night Illusion (1980), prestando o devido tributo a um obscuro mestre do groove da fase clássica do estilo.



(coluna publicada hoje no Diário Catarinense)