20160927

Revolução sem causa

Com lançamento oficial previsto para o próximo dia 7, o disco novo do Green Day já vazou nos melhores sites do ramo. Revolution Radio foi precedido por três singles – “Bang Bang”, a faixa-título e “Still Breathing” – que oscilam do punk pop de arena ao rock de FM que fez a fortuna da banda a partir de American Idiot (2004). Mesmo assim, os integrantes do trio ainda são vistos e cobrados como certos jogadores de futebol: têm filhos, ganham um dinheirão, fazem suas presepadas e beleza. Afinal, “não passam de meninos”. Para o bem e para o mal, o apelo da juventude os acompanha desde que estouraram com Dookie, há 22 anos.



Naquela época, em plena aurora grunge, o grupo fez a festa da geração MTV com um punhado de hinos descerebrados movidos a guitarras estridentes, refrãos chicletudos e profundidade que uma formiga seria capaz de atravessar com água pelos joelhos (obrigado, Nelson Rodrigues). Os fãs cresceram, a emissora musical minguou e o Green Day renovou seu público-alvo caindo nas graças dos emos. Até, em mais um reposicionamento (involuntário?), virar uma das “vozes da América” na primeira década deste século com letras que acusavam a apatia da molecada. É nessa condição de grande banda de rock do seu tempo que Billy Joe e asseclas assinam o 12º trabalho.



A revolução radiofônica insinuada pelos californianos começa condizente com seu status. Se não em qualidade, pelo menos em potência “Somwhere Now” impressiona, com um sonzão que os Foo Fighters se orgulhariam. O vigor prossegue em “Bouncing Off the Wall”, “Too Dumb to Die”, “Youngblood” ou “Say Goodbye”, amostras da arte de se mover no limite entre o sucesso comercial e alguma credibilidade de rua. O risco, no caso, é não conseguir nem uma coisa nem outra. Mas no mínimo a primeira parte está garantida.

Sertão lisérgico
Na década de 1970, uma alegre & colorida rapaziada agitou a música, o teatro, o cinema e a poesia de Recife. Era o movimento Udigrudi (corruptela de underground), composto por adoráveis malucos como Alceu Valença, Geraldo Azevedo, Flaviola e o Bando do Sol, Ave Sangria, Zé Ramalho e Lula Côrtes – os dois últimos, autores do maior clássico do encontro entre a psicodelia e o agreste nordestino, o disco Paêbiru. Essa gente toda é homenageada por bandas cujos integrantes poderiam ser seus filhos na compilação No Abismo da Alma, que reúne 19 representantes da nova cena lisérgica nacional. Embarque nessa viagem só de ida para o sertão surreal com nomes como Bike, Meneio, Graxa, Supercordas ou Bratislava baixando sua cópia aqui.




 ANÇAMENTOS



Madeleine Peyroux, Secular Hymns – Quem assistiu ao show da canadense em Florianópolis em 2015 sabe que um piano e um baixão acústico bastam para derreter corações. No oitavo álbum, a cantora traz versões intimistas do universo do jazz, blues e até do reggae, mas é na releitura de “Everything I Do Gonh Be Funky” (do mestre do groove Allen Toussaint) que ela se supera.



Blubell, Confissões de Camarim – Bonita, cool e dona de um repertório eclético, é um mistério como Isabel Garcia ainda não foi descoberta por um público maior. Sempre na dela, a paulista chega ao quinto disco mandando beijinho no ombro das inimigas com o skazinho carinhoso de “Vida em Vermelho” ou a brejeirice de “Bolero do Bem”.



(coluna publicada hoje no Diário Catarinense)

20160920

Trilha faz justiça na TV

A trilha sonora de Justiça tem chamado tanto a atenção quanto a realidade crua & cruel retratada nas quatro tramas que se entrelaçam. A série exibida pela RBS TV entra na semana derradeira com pelo menos outra proeza como legado, ao lado do corpinho de Leandra Leal: revelar ao público da emissora artistas até então semidesconhecidos fora do nicho ao qual estão associados. De repente, aquela sua prima pagodeira convertida pelo trip hop do Massive Attack em Verdades Secretas descobriu como é capaz de se comover quando ouve o queridinho indie Rufus Wainwright entoar “Hallelujah”.



Não muito tempo atrás, a definição das músicas que embalavam os folhetins televisivos seguia um padrão. Gravadoras ofereciam músicas, interessadas na exposição diária no horário nobre. Temas eram compostas especialmente para este ou aquele personagem. A canção ia parar no disco oficial, lançado pela gravadora ligada à emissora. A internet bagunçou esse modelo. O consumidor não precisa comprar um CD inteiro atrás da única faixa que gostou. E, com um catálogo quase infinito à disposição nos serviços de streaming, diretores, roteiristas, produtores e atores podem dar suas sugestões para a trilha.

Cauã Raymond, por exemplo, construiu Maurício na onda do jazz revolucionário de Miles Davis (“Bitches Brew”) e da melancolia do alternativo Citizen Cope (“Sideways”). A Vânia de Drica Moraes já cantou “O que Será”, de Chico Buarque, que aparece ainda em “Pedaço de Mim”, com Zizi Possi. Os nordestinos Elba Ramalho (“Risoflora”), Fagner (“Revelação”), Geraldo Azevedo (“Dona da Minha Cabeça”) e Johnny Hooker (com uma versão brega cool de “Pense em Mim”) dão cor local às histórias, ambientadas em Recife. Sobra até para Los Hermanos, que emplacaram a bonita “Último Romance”. Não é nada, não é nada, é do que vamos lembrar depois do último capítulo, na sexta. Além de Kellen só de lingerie, lógico.

Causa e efeito
A britânica de origem cingalesa MIA despontou para o mundo em 2005, agregando o pancadão do funk carioca aos ritmos da globalização. Quatro discos depois, o pop eletrônico e étnico da cantora volta a bombar com Aim. Os bailões do Rio são coisa do passado perto da exploração que ela faz de estilos mais identificados com suas raízes no Sul asiático. Menos pretensiosa, ela bota o povo para chacoalhar com as nervosas “Borders”, “Go Off”, “Swords” ou “Visa”. A política continua um elemento vital em sua obra, mas parece que o ensinamento da anarquista lituana Emma Goldman (1869-1940) foi aprendido na marra: “Se eu não puder dançar, não é a minha revolução”.




 ANÇAMENTOS



Marcapágina, Sexto Grau – Uma das promessas do pop rock de Florianópolis, o quarteto empacota mais cinco músicas neste segundo EP. Maturidade e identidade à parte, o que sobressai é o cuidado com que o grupo trabalha cada elemento de sua música, evidente em “Lei dos Três Segundos”, “Elas” e “Motivos de um Fim”.



Real Rio – Na esteira dos Jogos Olímpicos, o selo inglês de música brasileira Mais Um Discos encomendou a Chico Dub uma compilação dos novos sons da cena carioca. O produtor não se fez de rogado e, em 30 faixas, teceu um panorama que vai das loucuras neotropicalistas de Ava Rocha à psicodelia do Supercordas. O Rio continua lindo.



(coluna publicada hoje no Diário Catarinense)

20160913

Dez anos depois, o que foi feito de nós

No lugar do ringue, um palco. Em vez de combates que acabavam quando alguém dissesse “pare” ou perdesse os sentidos, shows de 40 minutos que terminavam aos gritos de “mais um” e com a sensação de noite ganha. Tyler Durden nem sonhava, mas Florianópolis também teve o seu Clube da Luta. Era uma espécie de cooperativa surgida em 2006 que organizava, bancava e promovia shows de bandas locais. Enquanto a estranha confraria do filme homônimo mantinha sigilo sobre sua existência, na versão manezinha a principal regra ressaltava o caráter autoral dos desafiantes: “Você não faz músicas que não são suas”.



Os “combates” ocorriam duas vezes por mês, sempre com dois ou três grupos, para cerca de 200 pessoas geralmente em uma casa sob a cabeceira insular da ponte Hercílio Luz. Não demorou para o movimento se consolidar como uma alternativa viável para artistas que preferiam se mexer a reclamar da falta de apoio – e para gente interessada em conhecê-los por sua música, não para “dar uma forcinha”. A impressão era de, finalmente, a cidade comportava uma cena de verdade, com talento suficiente para seus representantes competirem em outras praças do país e ninguém esperar por um novo Dazaranha.

Foi nessa expectativa que o Clube da Luta comemorou o primeiro aniversário com apresentações de dez associados: Maltines, Coletivo Operante, Luciano Bilu, Aerocirco, Os Berbigão, Tijuquera, Rufus, Gubas & Os Possíveis Budas, Andrey e a Baba do Dragão de Komodo, Ilha de Nós, Kratera e Samambaia Sound Club. Passados dez anos, mudaram formações, nomes e pretensões. Mas ficaram os registros fotográficos de Cassiano Ferraz [no impresso saiu Fagundes, o Cassim que toca com Barbaria – tremenda babada pela qual só resta pedir desculpa]. Até 16 de outubro, o Museu da Imagem e do Som (MIS) lembra aquele breve período em que foi possível acreditar que Florianópolis deixaria de ser um ponto de interrogação no mapa musical brasileiro.

Oceano de emoções
Mais do que pelos hits escritos para Justin Bieber e John Legend, Frank Ocean tornou-se conhecido por ser o primeiro rapper a ter coragem de se assumir como homossexual em um estilo dominado por machos-alfa e biatches. Para o bem de si próprio, porém, sua carreira não depende das preferências afetivas e vem sendo construída por discos acima da média. O último deles chama-se Blond, lançado quase que simultaneamente ao álbum visual Endless. É uma coleção de canções contemplativas entre o rap e o R&B, em que a força dos beats abre es­paço para a delicadeza das melodias. Se você não se co­mover com “Pink + White”, talvez esteja precisando de um cardio­lo­gista.




 ANÇAMENTOS



Aíla, Em cada Verso um Contra-Ataque – Mais uma revelação que o Pará esfrega na nossa cara, a cantora faz de seu segundo disco uma profissão de fé no poder feminino. A causa é embalada por um pop que agrega MPB, ritmos regionais e modernidades, resultando em um caldo que entretém e conscientiza com libelos como “Lesbigay” ou “Será”. Baixe-o gratuitamente aqui.



Faith No More, We Care a Lot – Lançada em 1985, a estreia da banda já continha os elementos do funk metal que conquistaria o mundo (sobretudo o Brasil) nos anos 1990. Além da disposição do então vocalista Chuck Mosely, esta reedição traz demos, remixes e faixas ao vivo. Pena que o sucesso posterior deixou tudo muito datado.



(coluna publicada hoje no Diário Catarinense)

20160906

Muito orgulho, muito amor

Independência isso, independência aquilo, mas independente mesmo é o Infrasound Fuzztival. Como o nome denuncia, trata-se de um minifestival que ocorre hoje a partir das 19h no Taliesyn Rock Bar, em Florianópolis. A escalação é encabeçada pelo Muñoz Duo, que está lançando o disco Smokestack. A nova manifestação do rock chapado dos mineiros serve de pretexto para uma rapaziada nervosa promover “a noite mais brutal da Terra” no acanhado palco do local: Red Mess, Pantanum, Cattarse, Ruí­nas de Sade e Katss. Apelo comercial, zero. Mesmo assim, tudo é feito na raça, sem promessas vazias para cativar adeptos.



Amanhã, é a vez da banda Boogarins se apresentar – em Sevilha. A perna ibérica da turnê dos goianos pela Europa começou no dia 1º, na portuguesa Coimbra. Na Espanha, tocarão também em Madri, Barcelona, Oviedo e Santiago de Compostela. Antes de cruzar o oceano, haviam mostrado a psicodelia caipira de seu Manual ou Guia Livre de Dissolução de Sonhos pelos Estados Unidos. Cantando em português um gênero dominado pelos gringos, o grupo está conquistando o que muita estrelinha venderia a alma ao diabo para obter. A proeza torna-se mais legítima quando se sabe que não há esquemas por trás, apenas receptividade natural.



As pretensões de Sammliz são mais modestas. Longe dos comparsas da banda em que defendeu os vocais por 11 anos – a metálica Madame Saatan –, a cantora paraense revela uma insuspeita versatilidade na estreia solo, Mamba. Há espaço para pós-punk, eletrônica e até alguma brasilidade, representada pelo arremedo de brega oitentista em “Quando o Amanhã Chegar”. Para viabilizar o trabalho, ela inscreveu-se no edital de uma marca de cosméticos e, como vários outros concorrentes, seguiu as regras. Simples e transparente, sem subterfúgio que a beneficiasse. Viva a música brasileira!



Alma intacta
Bancado por US$ 600 mil arrecadados via financiamento coletivo, And the Anonymous Nobody marca a volta do De La Soul após 12 anos. A novidade é que neste disco o trio de rappers nova-iorquino reaparece escorado por uma banda “convencional”, e não pelos samples e colagens típicos do gênero. A pegada, porém, continua entre o experimental e o old school, com uma lista de participações estelares. E vem dos convidados os melhores momentos, como a infalível “Pain”, com Snoop Dogg, e a alternativa “Here in After”, com Damon Albarn.




 ANÇAMENTOS



Baleia, Atlas – O sexteto carioca vem com um conceito ousado, reunindo disco e livro de 32 páginas assinado por Lisa Akerman. O abstracionismo das ilustrações traduz o caráter da música, afinada com as modernidades e de digestão que requer mais de uma audição. “Hiato” ou “Estrangeiro” estimulam a insistência.



Stars Ah Shine – Coletânea com as produções do jamaicano Tapper Zukie para a Star Records entre 1976 e 1988. Sim, reggae do prensado, ideal para aqueles momentos em que a atitude mais coerente é abandonar o pensamento cartesiano. Feche os olhos e deixe a alma passear levada pelos aromas de “Bosra” (Prince Alla) e “Morgan the Pirate” (The Mighty Diamonds).



(coluna publicada hoje no Diário Catarinense)