20160726

A verdade não importa

A batida se desenrola nervosa, quebrada. O vocal sai falado, quase agonizante diante das barbaridades que vai cuspindo sem poupar polícia, mídia e governo. O ritmo é trap (uma vertente do rap) para a faixa não ser rotulada de funk proibidão e atrair a mesma violência denunciada na letra, explicou a autora, MC Carol. Em “Delação Premiada”, ela aponta as baterias para o tratamento diferente que pobres – sobretudo negros – e ricos recebem dos agentes pagos pelo contribuinte para zelar pelo cumprimento da lei. O single que antecede o disco Bandida é, desde já, o mais fiel retrato de uma realidade ignorada pela música nacional.



Ao escancarar a cegueira seletiva da Justiça, a niteroiense de 22 anos torna-se exceção em um cenário inebriado pelo coro dos contentes. Um extraterrestre que, por acaso, descesse no Brasil-il-il e tentasse saber como anda o país por meio das paradas de sucesso iria pensar que está tudo normal. Ao contrário dos Estados Unidos, onde até popstars consideradas fúteis como Beyoncé têm nítida noção de seu papel em traduzir as demandas da sociedade, por aqui a situação extrema não comove nenhum cantor ou banda a tomar medida de igual porte, conforme reza o surrado aforismo.

Não que faltem causas para se posicionar. Na corrida presidencial americana, por exemplo, Queen, Neil Young, Rolling Stones, R.E.M., o rapper Everlast e até a doce Adele proibiram o candidato republicano Donald Trump de usar suas canções. Nas micaretas pró-impeachment, movimentos ditos apartidários cometeram paródias grotescas de hits de ícones como Raul Seixas e nenhum herdeiro se manifestou – e nem precisava ser contra, bastava saltar do muro. Ninguém se compromete, e, quando o faz, fica uivando para convertido ou posa para selfie ao lado de juiz. Cada geração e cada escândalo têm o artista de protesto que merecem.

Quando punk e metal se juntam
Não fale em crise, bata com a cabeça na parede. Alheia à oscilação do dólar, à escalada do terror e à onda neoconservadora, a brava Célula recebe a banda The Shrine nesta sexta em Florianópolis. O trio californiano desembarca na cidade como um legítimo representante do “psychedelic violence rock and roll” (yeah!), tendo como inspiração dois Blacks que ninguém ousa contestar: o Flag, pela inegável veia hardcore; e o Sabbath, pela vocação para o lado sombrio do metal. O grupo está na ativa desde 2008 e chega com o repertório burilado por três discos – o mais recente, Rare Breed, saiu no ano passado. Ingressos a R$ 40 no local, na loja Roots Records ou aqui.




 ANÇAMENTOS



Blood Orange, Freetown Sound – Se o terceiro disco do alterego do britânico Dev Hynes fosse mesmo tudo aquilo que a imprensa gringa acha que é, o mundo estaria diante de uma das maiores obras-primas de todos os tempos. Exageros à parte, os falsetes para lá de liberais de “But You”, “Desirée” e “Hands Up” dão uma baita saudade de Prince.



Scarlett – O trio catarinense estreia em disco homônimo sem pedir a bênção a nenhum modismo, apenas confiando no que de melhor tem a oferecer aos incautos: petardos em inglês e em português, executados com o vigor de quem nunca deixa a técnica sobrepujar o veneno. A música de trabalho chama-se “Filhos da Luz” e o álbum está disponível para download gratuito no site da banda.



(coluna publicada hoje no Diário Catarinense)

20160719

Maximalismo para jovens

Na música, nada mais antigo do que o passado recente. Sem história suficiente para serem tachadas de clássicas ou vintage, tendências que até outro dia eram a última palavra em atua­lidade hoje parecem mais velhas do que o charleston. Essa regra inexorável atingiu o MSTRKFT em cheio. A sopa de letrinhas – pronuncia-se “masterkraft” – constante entre os modernos na primeira década deste século caducou tão rápido quanto as batidas de sua eletrônica barulhenta e agressiva. Sete anos depois da última tentativa de não morrer no museu do pop, a dupla canadense propõe um revival precoce do maximalismo com Operator.

Tudo o que fez a glória e a ruína do projeto de Jesse Keeler (também piloto do Death From Above 1979) e Al-P está neste terceiro disco: as rajadas de sintetizadores, o atordoo provocado pela britadeira de ritmos, a pauleira sem trégua. Nem os bebês que ambos tiveram recentemente aliviaram sua visão caótica de futuro. Pelo contrário, a paternidade acentuou o lado violento do dance punk que faziam. Temperatura e pressão têm que estar muito alteradas para que assaltos sônicos como “Party Line” ou “Priceless” abalem alguém a ir para a pista. Em condições normais, é provável que o cansaço vença antes de qualquer movimento.



Mais razoável, “Runaway” engana com um resquício de melodia, mas predominam mesmo a saturação e o exagero comuns para um rótulo que investe na linha “mais é mais”. Em tempos de Skrillex e Deadmau5 (significam?) aloprando a molecada, de Justice reaparecendo com “Safe and Sound” e de até as passarelas da moda apostando no luxo, na opulência e nos excessos do maximalismo, talvez o MSTRKRFT é que esteja certo em voltar para faturar o que lhe foi negado quando ainda era novidade. Velho estou eu, incomodada ficava a sua avó.

Superstar do mundo real
Já está rolando o segundo ciclo da incubadora de artistas da Célula, bastião da cultura alternativa em Florianópolis. Com a chancela (e os fundos) da Funarte, desta vez os escolhidos foram Julia Sicone, Casablanca, Gummo e Capitão Bala. Até outubro, eles receberão noções de projetos culturais e de festivais, um panorama geral do universo independente, lições para aproveitar todo o potencial de redes sociais e importância da identidade visual. Além disso, cada artista ganha duas horas semanais de ensaios nos estúdios do local, e assessoria de comunicação durante os meses da atividade, culminando com um show de meia hora na “formatura”. Com capacitação, fica mais fácil sonhar em viver de música. Confira os selecionados abaixo:

Julia Sicone



Casablanca



Gummo



Capitão Bala



 ANÇAMENTOS


Fióti, Gente Bonita – O irmão de Emicida não nega o DNA da família e chega rimando, mas privilegia a MPB como matriz do rap em seu EP de estreia. A participação do “mano” Caetano Veloso em “Obrigado Darcy” quase passa despercebida diante da cadência fundo-de-quintal do samba “Vacilão” e do aroma jamaicano exalado em “Leve Flores”.



Maxwell, Blacksummernight – Em 1996, o cantor americano despontou com Urban Suite como se fosse o messias esperado pelo R&B contemporâneo. Não rolou. Agora sem tanta badalação e muito menos expectativa, ele soltou um disquinho bem decente, com faixas como “1990x” e “Lake by the Ocean” confortando a imaginação.



(coluna publicada hoje no Diário Catarinense)

20160712

Homenagem ao rock

O rock. O rock é aquele tiozão do pavê que causa mais pena do que constrangimento com suas piadas manjadas. Ninguém mais nem finge que presta atenção no que o rock diz. A gente olha o rock e pensa: olha só o que ele se tornou. O rock já foi má companhia e influência pior ainda. O rock tinha fama de falar aquilo que todo mundo só pensava, mas ninguém tinha coragem de dizer. O rock era inconveniente. Lembra daquele vez que o rock jogou umas verdades na cara de todo mundo? Era tão massa, o rock. Tão doido, tão rebelde. Coitado do rock.

Por qualquer ângulo que se analise o rock, o cenário é desesperador. O antigo gênero que escandalizava pais hoje é a trilha sonora dos antros mais reacionários da sociedade. O rock catalisava os anseios da juventude, hoje não serve nem como ritmo para as paródias entoadas nas manifestações conservadoras. O rock era uma ameaça, hoje embala shows para plateias de empresários encharcados de uísque e ávidos para escutar os clássicos de uma banda predileta que não lança nada decente há 40 anos.

O rock era o lugar para onde iam os desajustados, os perturbados, aqueles que se sentiam deslocados em uma rea­lidade encomendada para celebrar os vencedores. O rock era o falso perdedor, o derrotado que contaminava todo o sistema. O rock desafiava a ordem. O rock aliviava o sofrimento e injetava energia para lutar. O rock era libertário. O rock dava tesão. O rock anda tão decadente que tem até um dia em sua homenagem – por acaso, nesta quarta-feira. Vida longa ao rock.

O gosto e o sumo da manga rosa
Depois de revisitar o cancioneiro de Engenheiros do Hawaii, Belchior, Paralamas do Sucesso e Milton Nascimento em coletâneas com artistas independentes, o site Scream & Yell aponta suas baterias para Alceu Valença. O pernambucano de 70 anos – 45 de carreira – e 24 álbuns é o alvo de Ainda Há Coração, tributo em que nomes da nova e da novíssima safra do pop nacional subvertem 14 amostras dos rocks, xotes, maracatus, emboladas e frevos de sua rica obra. Entre os hits, “Tropicana” ganhou delicada roupagem de Nevilton (PR) e “Anunciação” flerta de leve com a psicodelia na voz de Luiza Lian (SP). Já em “Bobo da Corte”, Camila Garófalo (SP) capricha na essência roqueira da versão original. Baixe o álbum gratuitamente aqui.




 ANÇAMENTOS



Metronomy, Summer 08 – O inglês Joseph Mount manteve o nome da banda, mas fez tudo sozinho no quinto álbum. Na concepção do mancebo, verão é época mais propícia para timbres sintéticos, scratches e batidas do que para a pegada indie que acompanhava a descrição do grupo. A estação fica mais quente com “Old Skool”, “16 Beat” e “Miami Logic”.



Maria Luiza, Jazz in Bossa, Bossa in Jazz – Neste EP com quatro faixas, a cantora que tem um pezinho em Florianópolis se arrisca no repertório, com um clássico de Tom Jobim (“Fotografia”) e outro já gravado por gente como Billie Holliday e Marisa Monte (“Speak Low”). A interpretação, porém, investe no seguro, sem tentar reinventar a roda.



(coluna publicada hoje no Diário Catarinense)

20160705

Dupla renasce das cinzas para derreter o gelo

Primeiramente (pigarro), o pressuposto é que quem chega para ler estas mal-tecladas está mais interessada em música do que em ídolos e fofocas. Estabelecida essa premissa, o destaque desta semana é uma dupla que andava sumida – e ninguém sentiu falta porque ela nunca foi popular, exceto por amostras perdidas em playlists indie: The Kills. Cinco anos depois de seu último lançamento, quando nem o indie mais engajado esperava algo digno de nota produzido pelo par, Alison Mosshart e Jamie Hince se atrevem a voltar com o melhor disco de sua irregular carreira, Ash & Ice.

Dois fatos ocorridos durante o período em hibernação foram preponderantes e complementares para formatar o quinto álbum do duo. Um, o rock garageiro que norteou os trabalhos anteriores perdeu força como tendência para a juventude urbana disposta a fazer e a curtir um som. O outro foi que Hince fraturou a mão e teve que reaprender a tocar guitarra. Juntas, a conveniência e a necessidade resultaram em uma direção diferente, escancarada logo na abertura com a arrastada “Doing It to Death”.



A faixa não reflete o resto do trabalho, que se equilibra entre paredões de melodia, refrãos com potencial aderente e levadas quentes. Esse pop envenenado encontra a fórmula perfeita em “Bitter Fruit”, “Whirling Eye” ou “Impossible Tracks”, mas “Hard Habit to Break” e “Siberian Nights” também valem a pena ser ouvidas de novo. Fugindo da regra, “Hum for your Buzz” evoca um gospel profano, com a interpretação de Alison sepultando as comparações que ela tinha que aguentar por ter cantado no Dead Wheater de Jack White. Cinzas e gelo, aqui, só no título.



Avalanche dos anos 2000
A estreia dos Avalanches, Since I Left You, embutia a brincadeira de tentar identificar alguns dos mais de 3,5 mil samples usados no disco. Passados 16 anos, o trio australiano retorna com Wildflower e um novo desafio, muito mais complicado do que a trívia musical proposta no primeiro: mostrar-se relevante em uma época na qual um álbum feito inteiramente de trechos de canções de outros artistas passa longe de ser novidade. Aí é que a porca torce o rabo, porque tudo o que a cornucópia sonora do grupo consegue é soar como uma colcha de retalhos tecida por deslumbrados com as possibilidades de uma tecnologia já consolidada. Nem as presenças de dândis como Toro Y Moi (“It Was a Folkstar”) ou Father John Misty (“Saturday Night Inside Out”) livram o álbum de parecer datadão, tão anos 2000.




 ANÇAMENTOS



Snoop Doog, Coolaid – Os cartuchos do magistral Bush (2015) ainda estão queimando e o cachorrão já volta a latir, rosnando o rap-chinelagem que vinha caracterizando a maioria de sua discografia. O bagulho é tão palha que nem “Kush Ups”, parceria com o fanfarrão Wiz Khalifa – que poderia pelo menos render uma farofa do nível de “Young, Wild and Free” – salva a empreitada.



Trampa, ¡Viva la Evolución! – O quinteto brasiliense celebra uma década com o terceiro disco investindo naquela linha que fez a fama do rock parido na capital federal, com muita crítica social e política; “Farda” mira na violência policial, “Você?” prega contra os pastores picaretas, “Solidão” reclama da companhia do concreto. Alvos nunca vão faltar.



(coluna publicada hoje no Diário Catarinense)