20160830

Terra não tão arrasada

Tão raro haver dois belos discos nacionais de música pop lançados no mesmo dia e, quando acontece, cai exatamente em uma semana funesta para o Brasil. Mas, se você está lendo isso, significa que o verniz institucional empregado àquela palavrinha que começa com “gol” e termina com “pe” manteve o país em sua aparente normalidade. Sendo assim, vamos tapar o nariz e abrir os ouvidos: em meio à farsa generalizada, a excelência de Melhor do que Parece, do grupo O Terno, e Escorrega Mil Vai Três Sobra Sete, de Frank Jorge, ambos disponíveis desta a última sexta, é das poucas coisas que resistem ao escrutínio da verdade.

O terceiro disco dos paulistanos merece de fato todos os elogios que os dois anteriores receberam de direito. Autodefinido como um “power trio de canção-rock'n'roll-pop-experimental”, até então O Terno era daquelas bandas com conceito de mais e resultado de menos. Em Melhor do que Parece, finalmente a relação entre intenção e prática se equilibra. O desafio é descobrir a idade dos integrantes – na casa dos 25 anos – e não se apavorar, tanto com as letras quanto com o som. Com versos dignos de um Cartola indie, ecos da tropicália, Mutantes, MPB e psicodelia se alternam em “Culpa”, “Vamos Assumir” ou “Nó”.



Já o quase cinquentão Frank Jorge é velho parceiro de quem aprecia inteligência na música feita para tocar em rádio. Ex-Graforreia Xilarmônica, em seu quarto disco solo ele deixa de lado a nova jovem guarda gaudéria (Jovem Guasca?) com a qual despontou e investe em formas mais recentes de comover. No caso, o rock dos anos 1990, com seus momentos de fofura (“Turma 8”) e, em maior incidência, distorção (“Hey Hey”, “Sempre Procurando”). De estilos, origens e gerações diferentes, o gaúcho e os paulistas talvez nem se conheçam. Sem querer, tornam o Brasil atual um lugar respirável, apesar da pestilência no ar.



Raiva contra o ódio
Contra o discurso do ódio, os profetas da raiva. Com esse nome singelo, o Prophets of Rage reúne os três integrantes do Rage Against the Machine com Chuck D, do Public Enemy, e B-Real, do Cypress Hill, em substituição ao vocalista Zack de la Rocha. O momento não poderia ser mais oportuno, com uma piada perigosa sendo levada a sério na corrida à Casa Branca. O EP que a banda desovou dá uma ideia da paulada que vem por aí: a faixa homônima e “The Party's Over” carregam o groove com a força e o peso de uma jamanta para atropelar o retrocesso, despertar consciências ou, no mínimo, causar torcicolo na molecada escapista. Se o caos que se insinua se confirmar, a trilha sonora não será menos bombástica, cruel e aterradora.




 ANÇAMENTOS



Victor Biglione, Mercosul – Argentino de 58 anos, dos quais 53 de Brasil, depois de duas décadas compondo para cinema e televisão o guitarrista volta à música autoral com um disco repleto de referências aos variados ritmos da América do Sul. A inspirada viagem pelo continente vai das raízes latinas ao balanço tropical do país que adotou.



Negro Leo, Água Batizada – Representante da “música torta brasileira”, o carioca mais uma vez despreza convenções e estilos com um trabalho experimental que, na falta de uma rótulo que inclua todas as direções sugeridas, é classificado como psicodélico. Ouça com o espírito desarmado e disposição para o inusitado, que essa água vicia.



(coluna publicada hoje no Diário Catarinense)

20160824

Toda a glória do pop genérico

As cantoras pop que os Estados Unidos exportam para as paradas mundiais obedecem a um padrão. Assim como celebridades brasileiras cometem desatinos e depois vão chorar perdão à opinião pública no Fantástico, as divas de lá surgem imaculadas, caem na vida e, conforme o impacto nos negócios, criam o chamado “fato novo”: trocam de produtor, adotam outra postura, anunciam uma reviravolta na carreira. Calejada nas dores e delícas da fama, Britney Spears segue a lição à risca e promete surpreender com seu nono disco, Glory. Até aí, é jogo jogado e acredita quem quiser.



Ela está mais madura, saúdam os discípulos. Nota-se: “Eis meu convite, baby. Espero que isso nos liberte para conhecermos melhor um ao outro”, balbucia a outrora Princesa do Pop na abertura, “Invitation”. Nada contra atiçar hormônios adolescentes, principalmente vindo de uma mulher que, com 34 anos e dois filhos, ostenta curvas de dar inveja a muita mocinha. Mas isso é que o Britney sempre fez, desde que saiu do Clube do Mickey para povoar os sonhos eróticos de toda uma geração de jovens eleitores republicanos. Melhor passar para outro quesito, porque esse já está manjado.

Se o apelo sexy que chegou ao ápice com “Toxic” em 2003 não funciona com tanta eficácia, a sonoridade não deixa a desejar em termos de mais do mesmo. A partir do single “Make me”, fica claro que a investida em novos compositores e a produção compartilhada entre profissionais do sucesso não passa de um fim, e não de um meio para oferecer algo diferente de um genérico dançante. Vai ver, Britney é que está certa em fingir que mudou. Como dizia P.T. Barnum, o inventor dos freak shows no século 18, “nunca, na história do showbusiness, alguém perdeu dinheiro por achar que o público é trouxa”.

Quando éramos reis
Morto em janeiro de 2015, aos 60 anos, o produtor Lincoln Olivetti gravou apenas um disco autoral, em 1982. Mas deixou sua marca em alguns dos álbuns mais suingados de Tim Maia, Jorge Ben, Rita Lee e Gilberto Gil, para citar apenas os nomes mais conhecidos do pop brasileiro com quem trabalhou. Como ninguém no mercado nacional ainda se dignou a lançar uma coletânea dele, o site americano Wax Poetics fez a gentileza de compilar singles que retratam as várias fases do mago carioca dos estúdios. O material foi dividido em duas mixtapes – Brazilian Boogie Boss 1978-1984 e Brazilian Disco Don & AOR Ace 1975-1997 –, dissecadas aqui e aqui. Imperdível.






 ANÇAMENTOS



Max Romeo, Horror Zone – Aos 68 anos, o jamaicano é das poucas vozes da era de ouro do reggae que continua na ativa. Seu novo disco retoma a pegada do clássico “War ina Babylon” (1976) muitíssimo bem acompanhado por músicos dos Upsetters e dos Wailers. “Fed Up” e a faixa-título mostram que o veterano nunca deixou de cultivar as raízes.



Bilhão
, Atlântico Lunar – Munidos de duas guitarras e um sintetizador, os cariocas Felipe Vellozo (baixista de Mahmundi) e Gabriel Luz (com quem toca no Crombie) deram vazão ao seu projeto de dream pop com vibração balneária. É música para se escutar largado, como se a vida estivesse ganha em “Horizontalidade” ou “Tô pra Ver o Tempo”.



(coluna publicada ontem no Diário Catarinense)

20160816

Sempre terno e quentinho na zona de conforto

Graças à precipitação da internet, já vazou nos melhores piratas do ramo o novo disco do Teenage Fanclub. Isso quer dizer que não é preciso mais esperar até a data oficial de lançamento, 9 de setembro, para escutar Here de cabo a rabo, familiarizar-se com cada refrão e restaurar a fé na humanidade. Enquanto a banda estiver em atividade, a promessa de um mundo menos descartável nunca deixará de ser cumprida. Pois pouquíssimos representantes da cena atual podem batizar um single de “I’m in Love” sem ironia e não parecer meio bobocas. Esses escoceses podem. E a gente acredita, sofre e sonha com eles.



O Teenage Fanclub é como aquele carinha que, na época da universidade, não era valorizado porque havia concorrentes mais bonitos, mais fortes e/ou mais ricos. Com o passar dos anos, porém, só ele manteve o mesmo manequim e a mesma quantidade de cabelos. Da estreia em 1990 até agora, o grupo viu o grunge surgir, o rap se popularizar, a eletrônica virar axé – e, salvo um ou outro arroubo de guitar band, continuou a beber de The Byrds e Big Star até forjar sua própria concepção de pop. Ora bucólico, ora faceiro, mas sempre naquela cadência que, neste décimo trabalho, desemboca em “Hold on” ou em “I Have Nothing More to Say”.

O que se configura em um problemaço para a maioria dos artistas – parar no tempo –, no Teenage Fanclub funciona como uma bênção. É justamente essa certeza que a torna tão adorada; essa garantia de que, não importa a moda vigente, em qualquer álbum da banda haverá um punhado de canções extemporâneas como “Steady State”. Para Norman Blake, Raymond McGinley e Gerard Love, os três remanescentes da formação original, “zona de conforto” é onde escolheram ficar. Seja qual for, deve ser um lugar imune aos solavancos da indústria da música, terno & quentinho como o mais belo poente.

Ladainha estéril
A nova série do Netflix, The Get Down, parte de um drama fictício tendo como pano de fundo o surgimento do hip hop. Imagine como um enredo desses poderia ser embalado com pioneiros como Grandmaster Flash, Sugarhill Gang, Kurtis Blow e demais bambas do período. Mas nenhum deles aparece na trilha sonora, recheada de nomes irrelevantes. Tirando uma Donna Summer aqui, um Fatback Band ali – exemplos da disco e da black music na transição para o ritmo e poesia das ruas –, impera uma ladainha estéril. Não dava mesmo de se esperar muita coisa de uma coletânea que abre com Jaden, filho de Will Smith.




 ANÇAMENTOS



Thee Oh Sees, A Weird Exists – A guitarreira de garagem faz do grupo de San Francisco um dos mais cults da nova safra. Nova, vírgula: o grupo perambula por aí desde 1997 e, a cada lançamento, reforça sua crença inabalável na zoeira. Ouça o single “Plastic Plant” e descubra que barulho e melodia podem atordoar juntos.



The Outs, Percipere – Em seu primeiro disco cantado totalmente em português, a banda carioca aborda a percepção como tema principal. O conceito, para lá de abstrato, fica bem claro em “Ainda me Lembro”, psicodelia setentista que desarma a mente e prepara o espírito (ou vice-versa) para a diversidade de estilos que vem a seguir.



(coluna publicada hoje no Diário Catarinense)

20160809

A visita cruel do tempo chegou para ficar

Naquelas priscas eras pré-Aids, o Camisa de Vênus escandalizava já a partir do nome, então somente um anticoncepcional vendido com discrição em farmácias. Falar da banda significa lembrar de “bota pra f*”, a saudação que acompanhava seus shows. De como os baianos ridicularizavam o pop feito pelos bem-nascidos e comportados moços do eixo Rio-São Paulo em plena década de 1980. Do desbocado LP ao vivo lançado em 1986 com oito (de um total de 10) faixas censuradas. É com esse crédito de provocação, deboche e virulência que o grupo chega ao sexto disco de estúdio em 35 anos de carreira, Dançando na Lua.



O single que abre o álbum, “A Raça Mansa”, mostra que a velhice não amenizou a verve do vocalista Marcelo Nova. Estão lá a mordacidade, a acidez e a ironia à (re)conhecida hipocrisia brasileira. Na parte musical, idem. Impera o rock honesto, robusto, que dispensa penduricalhos e modismos para honrar as calças que veste. Tudo muito louvável, mas é justamente aí – no fato de, na essência, continuar o mesmo – que o Camisa de Vênus flerta perigosamente com a autoparódia. Não se trata de querer que a banda soe como nos primórdios, e sim de que sua produção atual desperte sensações que não a saudade de seus clássicos.

Para não dizer que não houve mudanças, da formação original permanecem apenas Nova e o baixista Robério Santana. Uma das guitarras é defendida por Drake, filho do vocalista. Mas, por melhores que possam ser, petardos como “O Estrondo do Silêncio” e a canção-título só conseguem remeter ao verso de “Lena” (1984): “Veja o que o tempo faz com as pessoas que não querem perder o gás”. Com uma extensa folha corrida de bons serviços prestados ao controverso rock nacional, o Camisa de Vênus está longe de perder esse gás. O chato é que hoje ele não faz mais efeito em quase ninguém.

Trilha estranha
Os anos 80 registraram a ressaca punk, as cores da new wave, o surgimento do rap, a grandilo­quên­cia do rock de arena. Por isso, sempre que algo se propõe a compilar os hits dessa época, esbarra no dilema: que onda da década irá enfocar? O seriado Stranger Things (Netflix) não esquenta a cabeça com esse detalhe e, fiel à diversidade do período, tece uma colcha de retalhos em sua trilha sonora. Nela cabem de remanescentes hippies (Jefferson Airplane) a hits esquecíveis (Toto), passando por figuras carimbadas como Echo & The Bunnymen, Clash e o Joy Division do suicida Ian Curtis, entre outros.




 ANÇAMENTOS



Cachorro Grande, Electromod – A matilha gaúcha volta a latir sob os auspícios da produção esperta de Edu K (o mesmo de Costa do Marfim), disposta a se livrar do estigma de banda retrô. Nesse sentido, vale até tirar sarro de militantes de esquerda, como na faixa-título. Afinal nada mais moderno do que o conservadorismo da juventude.



Hellbenders, Peyote – O cerrado do Centro-Oeste não é o deserto californiano, mas a banda goiana não deixa nada a desejar ao stoner rock empoeirado, viscoso e nocivo das matrizes do gênero. São oito doses urgentes de pauleira condizentes com as propriedades mágicas do cacto que batiza o disco. Consuma sem moderação.



(coluna publicada hoje no Diário Catarinense)

20160802

Insondáveis são os desígnios do pop

O cantor catarinense Marco Audino tira o CD de uma caixa do bagageiro do carro. Antes de trocá-lo de mãos, ele conta que o show de lançamento será às 21h do próximo dia 11, no Teatro Álvaro de Carvalho (TAC), em Florianópolis. Só então entrega o disco, chamado Renova-me, acompanhado da ressalva:

– Não te contei, mas meu trabalho é gospel – informa, preparado para alguma eventual resistência.



Ei, devagar com o andor que o santo é de barro. De Tim Maia fase Racional a Rodolfo, que largou os Raimundos após encontrar Jesus; de Bob Marley e sua pregação rastafári a Cat Stevens, rebatizado Yusuf Islam ao virar muçulmano, a história do pop está cheia de artistas que fizeram da música um meio de professar a bem-aventurança que lhes invadia o coração. Marco está passando pelo mesmo processo. Com a diferença de que nenhum problema na cabeça, ziquizira ou mau olhado cercou sua conversão.

– Eu simplesmente fui a um churrasco com os irmãos da igreja e me identifiquei com a palavra, com o louvor. Me converti por amor – confessa.

A igreja em questão é a Sara Nossa Terra, que conheceu em 2003, levado pela futura esposa, quando ambos ainda moravam no Rio de Janeiro. O casal mudou-se para a Ilha em 2013 e Marco deu seguimento à sua arte, atuando e cantando. Até que a religião falou mais alto.

– Mas é para ser ouvido como um disco de pop – avisa.

Ex-vocalista do finado grupo Stryx, quarteto local que sentiu o cheiro do sucesso no final da década de 1980 com “Nu de Corpo e Alma”, ele nunca se despiu tanto como em Renova-me. Das 12 faixas, oito trazem Deus, Senhor ou fé no título. Tirando o discurso, é rock-pop feito com cacoete e capricho tipicamente oitentistas (“Senhor do Universo”, “Armas pra Viver”). É nessa pegada que o artista se fia para conquistar seu espaço. Mas o verdadeiro milagre será se conseguir ser ouvido por algum não fiel.

Sem escalas até os anos 80
O primeiro disco da banda Metrô, Olhar, vai ganhar uma reedição comemorativa de 30 anos. Dito assim, sem vaselina, parece que todo mundo sabe do que se trata. Um pouco do contexto: o grupo liderado pela mimosa Virginie Boataud abalou a parada brasileira na década de 1980 com hits adoçicados como “Beat Acelerado”, “Sândalo de Dândi”, “Tudo Pode Mudar” e “Johnny Love”. O atraso no lançamento (a efeméride se completou em 2015) é compensado pelas demos de 1984 e registros ao vivo que compõem o material. Vale lembrar que, no passado, a formação original se reuniu e soltou a inédita “Dando Voltas no Mundo” na internet. Não aconteceu nada, mas, conforme a receptividade que a estreia rediviva atingir, nada impede que o quinteto volte para valer.




 ANÇAMENTOS



Nice as Fuck, Nice as F*#k – Eis um caso de banda com pedigree e nome mais legal do que a música. O trio feminino americano tem bagagem (suas integrantes tem currículo na cena indie) e atende por uma alcunha feita para chocar. Pena que a som não está à altura, com apenas o rock primário de “Runaway” e “Door” funcionando e olhe lá.



Massive Attack, The Spoils – Em mais um espasmo, a instituição inglesa de trip hop desova duas músicas que só aumentam a expectativa quanto ao prometido disco completo. A faixa-título, cantada por Hope Sandoval, traz aqueles climões que ela imprimia no Mazzy Star. Na outra, “Come Near me”, desponta Ghostpoet e suas rimas das profundezas.



(coluna publicada hoje no Diário Catarinense)