20170425

Os ciclistas estão chegando, estão chegando os ciclistas

“Quando as coisas ficam estranhas, os estranhos viram profissionais”
Hunter S. Thompson (1937-2005), jornalista e escritor norte-americano

Que mané Kendrick Lamar o quê! O rapper angeleno que se contente com a aclamação generalizada, porque há experiências inadiáveis se manifestando no Brasil. O disco novo do Bike, por exemplo. Representante da renascença psicodélica nacional, a banda paulistana embarca em uma aventura sem saber onde vai parar, mas aproveitando cada lampejo para expandir a consciência com Em Busca da Viagem Eterna. Os ciclistas estão chegando, estão chegando os ciclistas. Primeiro mais perto, depois mais alto do que o céu.



Além do título do álbum, músicas com nomes como “Do Caos ao Cosmos”, “Psicomagia”, “A Divina Máquina Voadora” ou “O Retorno de Saturno” deixam evidente a dimensão perseguida pelo quarteto. Pelas nove faixas reluz todo o vocabulário – ou, como prefere a realidade linear, clichês – do almanaque extrassensorial: sol, grão de poeira, estrada iluminada, brisa, caminho transcendental, sonho profundo, fumaça roxa, essência, paz celestial, mar, portas da percepção, sapos flamejantes, sonhos e estrelas.

A natureza, o universo, a vida & tudo mais são embalados por uma atmosfera densa, onde o lado escuro da lua é apenas uma escala de uma jornada em que não falta nem a tradicional ponte com o Oriente, erguida em “A Montanha Sagrada”. No lado prático, o arco-íris que se formou com o trabalho de estreia, 1943 (incluído entre os melhores de 2015 por esta coluna, aliás), agora estende-se também por shows na Espanha, Portugal e Inglaterra. O que leva à questão: aqui e alhures, será por acaso a ascensão de grupos como o Bike, que propõem o escapismo?

Tramas sutis
A gente que associa o som do Pará ao tecnobrega precisa rever seus conceitos e conhecer (Leonardo) Pratagy. O segundo disco do rapaz, Búfalo, envereda pelo pop adulto com uma fineza ímpar. Mesmo os esparsos acenos à influência local – como a batida da faixa-título – contribuem para a delicadeza do conjunto. Dos vocais aos timbres das guitarras e dos sintetizadores, o trabalho flui em velocidade de cruzeiro na leveza de “Tramas Sutis”, “De Repente” ou “(Music) Make me Feel”.




 ANÇAMENT
OS



Resistance Radio: The Man in the High Castle Album – Inspirada na série homônima exibida pelo canal HBO e ambientada nos anos 1960, a compilação reúne interpretações de 18 artistas para clássicos da época. Só por trazer “Can’t Help Falling in Love” cantada por Beck e “Love Hurts” pelo Grandaddy já vale a conferida, mas ainda tem “The End of the World” (Sharon van Etten) e “Unchained Melody” (Norah Jones) para dobrar os espíritos mais teimosos.



Laetitia Sadier Source Ensemble, Find me Finding You – Em seu projeto solo, a vocalista do cultuado Stereolab não inventa moda e trafega pelo ambiente seguro já explorado pela banda. “Love Captive” (dueto com Alexis Taylor, do Hot Chip) e “Double Voice, Extra Voice” confortam com texturas retrofuturistas nas quais se identifica bossa nova, lounge music e um vago ar indie, entre outros elementos que proporcionam bem-estar.



(coluna publicada hoje no Diário Catarinense)

20170411

Jamiroquai se moderniza avançando para trás

Na capa e no clipe de Automaton, Jay Kay aparece com um chapéu futurista. O adereço predileto do vocalista que... Informação tem prioridade: o Urbana Legion ultrapassou 1 milhão de views no YouTube com o clipe de “Apóstolo São João”. A banda-tributo – adivinhe a quem – é formada por integrantes (atuais ou ex) de Tihuana, Charlie Brown Jr. A letra, inédita, é de Renato Russo. O vídeo foi gravado no apartamento do finado cantor, no Rio de Janeiro. Tudo com o beneplácito do filho do artista, o herdeiro Giuliano. Os fãs adoraram.

Então. O chapéu do vocalista que se confunde com a banda Jamiroquai (vai dizer que você nunca achou que ele fosse o Jamiroquai) não foi a única coisa que mudou no oitavo disco de estúdio dos ingleses. Entre se perpetuar como genérico da inspiração-mor, Stevie Wonder, ou refém do estilo com que ganhou dinheiro, o acid jazz, o grupo encontrou uma terceira via. Como fica manifesto no faixa-título, primeiro single de seu oitavo disco, o baú de referências rejuvenesceu o suficiente para se conectar com o que é considerado moderno.



A recauchutagem turbina também “Superfresh” e “Hot Property”, prontas para ganhar remixes e bombar nas pistas. Para o saudoso daquele Jamiroquai confortável, com um baita bom gosto nos timbres e nas levadas, “Cloud 9”, “Summer Girl” e “Dr. Buzz” cumprem a função. O Daft Punk foi muito lembrado para descrever a atual onda de Jay Kay e trupe. Mas as músicas que realmente marcam se encaixariam bem logo depois de Bruno Mars em uma playlist. Ah: “Apóstolo São João” é emocionante, atual e chata por demais.



(coluna publicada hoje no
Diário Catarinense)

20170404

Depeche Mode e o espírito (de porco) da época

Não satisfeito em levar um soco nas fuças durante uma transmissão ao vivo para a TV, o neonazista americano Richard Spencer aproveitou a repentina e fugaz fama virtual para falar de música. Segundo o assumido apoiador de Donald Trump, o Depeche Mode seria “a banda oficial da direita alternativa”, por conter “elementos fascistas” em letras como a do single Master and Servants, de 1984. A reação do grupo não poderia ser mais contundente: Spirit, um disco que prega o oposto do conservadorismo tão em voga no mundo hodierno.



Claro que as opiniões da supracitada criatura não tiveram influência nenhuma no novo trabalho do agora trio. Surgido na década de 1980, o Depeche Mode sempre empunhou a bandeira da música dançante como principal plataforma política. Mas, ainda que identificado com um gênero considerado fútil – o synthpop, assim chamado pelo farto uso de sintetizadores –, foi estendendo o foco dos quadris até os neurônios. Daí para criticar o estado das coisas em seu 14º álbum, bastou olhar ao redor.



“Estamos indo para trás, rumo a uma mentalidade de homens da caverna”, canta Martin Gahan em “Going Backwards”. Em “Where’s the Revolution”, o alvo é a indiferença geral ante a supressão de direitos, a manipulação e a opressão. Tanto engajamento acaba cansando, é verdade. Como discurso não diverte ninguém, logo surgem “You Move” e “So Much Love” para resolver quaisquer divergências. Quanto a Spencer, a resposta da banda foi lacônica: “He’s a cunt” (expressão tipicamente familiar inglesa que não será traduzida porque esta é uma coluna lida por cidadãos de bem).

(coluna publicada hoje no Diário Catarinense)