20170713

O que é música comercial: entenda

No país onde a definição de escândalo precisa de atualizações diárias, quase ninguém se importou com o surgimento da “banda institucional” de uma grife carioca. Para quem está por fora, a tal confecção feminina contratou um grupo – na verdade, uma dupla chamada Flor de Sal – para a representar na música. Antes de gravar, os integrantes receberam orientações do marketing da companhia sobre temas e influências, incluindo uma lista de palavras que traduziriam o lifestyle da marca. Daí resultou um disco com 10 faixas, lançado nos serviços de streaming pelo selo da própria cliente.



Hmmm, interessante. Possíveis reações: um, o público ouve sem saber do que se trata e se sente enganado ao descobrir; dois, o público sabe do que se trata e nem ouve. Em ambas, os responsáveis pela estratégia desprezam uma condição elementar para que a experiência funcione: quando é música que se procura, é música que se deve ouvir, não propaganda. Talvez fosse muito mais eficaz a grife pagar alguma artista com o qual se identifique para associar sua marca a ela. Ou simplesmente vesti-la, uma parceria simpática às claras e sem maiores consequências se velada.

Não é propaganda, é branding, dizem especialistas. Beleza. Música e publicidade sempre andaram juntas mesmo. Via patrocínio. Nos jingles. Em canções vendidas para campanhas. Tudo isso é conhecido e aceito, jogo jogado. Mas a zona cinzenta entre uma e outra tem que ser acessada com muito tato para corresponder. O tosco merchandising em letras desfila elegância ímpar perto da adoção de uma espécie de banda customizada para transformar branded content em música. Ninguém quer que ninguém ganhe dinheiro com o talento que tem, seria injusto demais. A gente só acha que, assim como um tanto de integridade, um pouco de cinismo é fundamental.

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Ah, é. Parabéns, rock.


E por falar em exposição na mídia
Vitrine das boas para a cultura pop em Florianópolis: o sagaz Marcelo Siqueira está com um programa pautado pela música, artes plásticas, cinema, fotografia e demais reinações criativo-comportamentais que brotam do fértil solo local ou aportam na ilha. O negócio atende pelo nome de Emenda, é atualizado toda semana e já chegou à quinta edição. Na terceira, por exemplo, há uma entrevista com o ex-vocalista do Dazaranha, Gazu, que é reveladora pelo que não diz. Em vez de ficar batendo na surrada tecla de por que ele saiu da banda, a conversa gira em torno do presente e do futuro.




 ANÇAMENT
OS


Don L, Roteiro para Aïnouz Vol. 3 – O primeiro (apesar do número) volume da trilogia prometida pelo rapper cearense esbanja letras espertas, calcadas no vocabulário da juventude conectada, e batidas que fogem do lugar comum. O cara é bom, mas falta o hit, como foi “Chapei” no ano passado.



Haim, Something to Tell You – O trio de irmãs californianas goza de uma moral entre certa parcela do circuito hipster que é difícil de entender. No segundo disco predomina um pop radiofônico que, quando dá liga, lembra Sheryl Crow. A mais, senão única, faixa convincente é “You Never Knew”.



(coluna publicada hoje no Diário Catarinense)

20170705

5 discos para lembrar (ou esquecer) da primeira metade deste ano



Como já é tradição, a passagem da primeira metade do ano impõe um balanço do que de bom, de feio, de sujo e de malvado saiu até agora. Quem desponta como favorito para a lista final, quem queimou a largada, quem será ainda lembrado em dezembro é coisa para se preocupar somente se por algum acaso as instituições deixem de funcionar. Por ora, o que importa é sublimar a apatia reinante e saudar a batida contagiante, o refrão afiado, a combinação de notas e timbres que parece já ter sido feita antes, de tão azeitada. Abaixo, cinco exemplos (em ordem alfabética) de discos que se enquadraram nesses parâmetros. Não, não esculache a lista: faça a sua e seja feliz.



Bike, Em Busca da Viagem Eterna | Expoente da renascença psicodélica brasileira, o quarteto paulistano flana bonito no segundo disco. Sol, grão de poeira, brisa, sonho profundo, fumaça roxa, essência, paz celestial, mar, portas da percepção, sapos flamejantes, montanha sagrada e estrelas formam a paisagem do caminho transcendental percorrido pelo ciclista cósmico. O destino é incerto, mas nem tão longe assim. A atmosfera densa é que deixa os movimentos mais lentos. OUÇA “Do Caos ao Cosmos”, “A Divina Máquina Voadora”, “O Retorno de Saturno”.



Curumin, Boca | O quarto álbum do baterista faz-tudo tem conceito, esbanja modernidade, investe em experimentações e talz. Bem da hora. Mas é ao assumir a (inegável) vocação pop já mostrada em 2011 com “Compacto” que o negócio fica facílimo de digerir. O samba pode ser torto; a bossa nova; errada; o reggae; enviesado: quando o refrão pega e o groove flui gostoso, a brisa refresca da cabeça ao baixo ventre, sem escalas. Tão brasileiro, tão universal, como manda a cartilha contemporânea. OUÇA “Terrível”, “Boca Cheia”, “Prata, Ferro, Barro”.



Dan Auerbach, Waiting on a Song | Faz tempo que a metade mais reluzente do Black Keys atingiu um estágio de regularidade que garante no mínimo nota 7 para sua música. Se estiver muito inspirado, porém, é grande a chance de o nível chegar à excelência. A segunda incursão solo do cidadão segue esse padrão. Nas faixas menos brilhantes, desfila como um bailinho retrô. Nos momentos em que recebe a visita das musas, enternece com doçura e atiça com picância. OUÇA “King of a One Horse Town”, “Never in My Wildest Dream”, “Cherrybomb”.



Jesus and Mary Chain, Damage and Joy | Dezenove anos se passaram sem disco novo dos irmãos Jim e William Reid. Neste período, o rock se perdeu, o rap fez fortuna, a eletrônica virou axé. E ninguém superou – ou se interessou em superar – a manha dos manos escoceses em conjugar barulho com melodia. A surpresa é que eles voltaram mais alegres, com uma euforia quase adolescente. Mesmo soando meio datado, ainda exala um frescor capaz de seduzir novas gerações que não estão paradinhas. OUÇA “Amputation”, “All Things Pass”, “Always Sad”.



Sleaford Mods, English Tapas | Que bom que, em meio à afetação generalizada, sempre aparece um bando de desajustados fingindo-se de burros para desvirtuar um ou outro jovem sonhador. No caso, dois ingleses cheios de sotaque e inconformismo, como uma versão reduzida e atualizada dos Sex Pistols. A música é simples, direta, despida de quaisquer adereços que atenuem o nobre propósito de dar uma chacoalhada na apatia reinante. Ou apenas aloprar. O (dedo do) meio é a mensagem. OUÇA “B.H.S.”, “Just Like We Do”, “Moptop”.

(coluna publicada hoje no Diário Catarinense)