20170822

Chico Buarque continua igual, mas nunca o mesmo

Chico participa de manifesto em defesa da democracia. Chico é hostilizado por coxinhas. Chico estreia conta oficial no Instagram. Chico isso, Chico aquilo. Nos últimos anos, Chico Buarque tem aparecido graças às posições políticas que professa (e as consequentes reações que desperta), aos memes que inspira, aos livros que escreve, à cor de seus olhos, a qualquer pretexto. Caravanas, disco inédito a ser lançado na sexta-feira (25), coloca as coisas na devida dimensão: um dos maiores nomes da música brasileira é notícia por causa de um novo álbum, o primeiro desde 2011.



A volta de Chico Buarque ao habitat natural chega precedido pela controvérsia causada pelo single “Tua Cantiga”. O adultério assumido em versos como “largo mulher e filhos e de joelhos vou te seguir” teria um viés machista, desconectado dos anseios da mulher contemporânea. O debate a respeito ajudou a promover o trabalho (como se fosse necessário), arranhou um pouco a imagem de “muso” do artista e relegou a música a segundo plano. Mas limitar Caravanas a discussões sobre a intenção do autor é muito desconhecimento de sua história, desonestidade intelectual ou simples despeito.

As nove faixas não destoam de nada do que Chico Buarque já apresentou ao longo da carreira. Durante cerca de meia hora, desfilam sambas em diversas cadências, boleros, blues; puros ou forjando o gênero que se convencionou chamar de MPB. As eventuais inovações adotadas só consolidam a certeza de que ele continua igual, nunca o mesmo. Das sete canções compostas e registradas em estúdio a partir do final de 2015, pelo menos duas calam fundo logo de cara. Uma, a carioquíssima “As Caravanas”, insinua um funk para retratar um Rio onde “suburbanos tipo muçulmanos do Jacarezinho” apavoram a classe média. Outra, “Casualmente”, tem a pegada latina que a envolve legitimada pela letra em espanhol.



Do baú vem mais um destaque, “Dueto”, com a neta Clara desempenhando o papel que era de Nara Leão na versão original, contida no LP Com Açúcar, com Afeto (1980). Sucessivas audições acabam por revelar também delicadeza e achados poéticos em “Desaforos”, “Massarandupió” ou “Blues para Bia”. Irão se tornar clássicos? Provavelmente, não. No entanto, devem servir para alimentar o culto que cerca tudo o que Chico Buarque faz – até o próximo arremedo de polêmica.

(coluna publicada no Diário Catarinense)

20170808

Otto, de novo tão bom como no tempo do Bob

Por mais invertida e desanimadora que esteja a realidade, tem duas coisas rolando que não deixam a gente desistir do Brasil. Uma é Ottomatopeia, o disco novo de Otto. Lançado sem o fuzuê nem a pretensão dos anteriores, o sexto álbum de inéditas do pernambucano não se perde em elucubrações & afins. Pelo contrário: tanto em forma quanto em conteúdo, pelas 11 faixas emana uma vibração, um frescor, uma leveza que ele parecia ter abandonado no mesmo recôndito onde mofavam os elogios recebidos no começo de carreira.



Apesar da pretensa isenção, a verdade é que gosto de Otto. Se já era difícil não simpatizar com aquele galego maluquete que tocava percussão no Mundo Livre S/A, ficou impossível quando ele estreou solo com Samba pra Burro, em 1998. Além das múltiplas razões musicais para admirá-lo, ganhei uns trocados o entrevistando para a revista Mercado Mundo Mix (extinta) e – o que não se faz para pagar o aluguel – com um texto para o CD que acompanhava a edição da Trip, narrado pelo próprio publisher Paulo Lima.

Dessas ocasiões resultou um vínculo pequeno para ser chamado de amizade, mas suficiente para que nos cumprimentássemos por aí. Como na vez em que o encontrei no supermercado, em pleno carnaval paulistano. A mídia já tinha escolhido Tiazinha (performer sadomasô de algum malfadado programa de Luciano Huck) e o padre Marcelo Rossi (o Fábio de Melo de então) como as estrelas da folia. Ambos estampavam todas as capas de revistas na fila do caixa. Apontei para Otto a contradição entre o chicote e a batina.

— Mas isso é a cara do brasileiro: o cristão de pau duro! — respondeu ele, conquistando um fã para sempre.



O figura me sai com uma pérola de sabedoria desse quilate, depois engata um romance com Alessandra Negrini e eu agora vou ficar falando que a música dele é assim ou assado? De jeito nenhum! Ouvi Ottomatopeia como torcedor. Não foi esforço nenhum, principalmente se comparado à fossa suprema de Certa Manhã Acordei de Sonhos Intranquilos (2009) ou à barafunda de conceitos e ideias de seu último trabalho, The Moon 1111 (2012). O pop domina, travestido de rock, brega, latinagens e nordestices.

Ensaiei cair na umbigada com “Bala” e “Teorema”, suspirei com “Carinhosa”, decorei “É Certo o Amor Imaginar?” e “Caminho do Sol”. Desconfiei que fosse Roberta Miranda em “Meu Dengo” (confirmada), refleti em “Soprei”, repeti “Atrás de Você”. Independentemente do que você ache, não dá para negar que Otto se entrega em cada música. Em tempos de indiferença, ele investe na paixão. Ah: a outra coisa que não deixa a gente desistir do Brasil é que, a despeito de todos os descalabros, as instituições continuam funcionando.


 
(coluna publicada hoje no Diário Catarinense)