20170131

Uma volta necessária em tempos tão estranhos

Ti.Po.Ta é, literalmente, nada. Tudo. Um vírus. A cura. Um diplodoco (espécie de dinossauro) vindo do centro da Terra, comendo flores do seu jardim. Um alien. É, também, um acrônimo para transe indie, progressiv organik e trash amor. A definição (?) aparece no site de Manu Chao para explicar (?!) o projeto em parceria com a atriz grega Klelia Renesi, seu primeiro registro inédito desde La Radiolina, de 2007. São apenas três faixas – uma creditada à dupla, duas ao franco-espanhol, todas disponíveis para download gratuito –, mas não deixam de representar um alento em dias tão estranhos.



A tal canção, “Moonlight Avenue”, exprime aquela melancolia típica de Manu Chao, independentemente do estilo adotado. Pode ser uma balada, um ritmo étnico, um reggaezinho caipira; o clima sempre é de tristeza maleza, de malegria. As demais vão pelo mesmo caminho. “No Solo en China Hay Futuro”, mais tradicionalista, alude ao pensamento único que leva a conclusões tão equivocadas. A outra, “Words of Truth”, reveste-se de significado extra diante da inclusão de expressões como “pós-verdade” ou “fatos alternativos” no noticiário.



É emblemático Manu Chao reaparecer justamente nesta época de retrocesso e medo. Ex-líder da politizada banda Mano Negra entre os anos 1980 e 1990, viveu o auge na virada do século, quando já em carreira solo festejava a possibilidade de uma realidade menos injusta em fóruns sociais mundiais. Com o naufrágio do sonho, ele continuou fazendo shows e abraçando causas – a mais recente é a participação em um disco contra a tecnologia transgênica da Monsanto. Seu retorno, via Ti.Po.Ta ou do jeito que for, é mais do que necessário.



Traidor do movimento
Sucesso na década de 1990, o Molejo tinha uma gaiatice que o fazia se distinguir no pagode pasteurizado de então. Para tristeza do público infantil, o disco Molejo Club evidencia que boa parte da espontaneidade foi embora junto com o sorriso irregular do vocalista Anderson Leonardo. Apesar da zoeira generalizada, o primeiro lançamento desde Voltei (2010) recorre a arrocha (“Desculpe por Tudo”) e ostentação (“Incendiou”), ciladas nas quais a banda não caía em cilada e tudo o que queria era apenas (se) divertir com brincadeira de criança.




 ANÇAMENTOS



Foxygen, Hang – A dupla californiana esbanja no quinto disco, gravado com a presença de uma orquestra de 40 integrantes no estúdio. O acompanhamento luxuoso produz uma sonoridade que lembra Bowie fase Young Americans e soft rock da década de 1970 em “Follow the Leader” e “America”.



Felipe S, Cabeça de Felipe – Vocalista do Mombojó, o pernambucano sai solo com pretensões menos cabeçudas do que na banda-mãe, como no samba “Santo Forte” e na afro “Calçada Proibida”. Mas, para não perder o costume, “Fio Tigre Palhaço” desafia o ouvinte com suas experimentações.



(coluna publicada hoje no Diário Catarinense)

20170124

O melhor disco que você não ouviu em 2016

O ano mal raiou no horizonte e um monte de lançamentos já se insinuam com a promessa da Boa Nova. Mas The xx, Sampha, Lambchop, Foxygen e outros quitutes serão degustados com a devida atenção no tempo apropriado. O que não dá mais para continuar fingindo é que um dos grandes discos de 2016 passou batido por esta coluna – e, provavelmente, por você também. Desde que saiu, em outubro, Pineal, o segundo álbum da banda pernambucana Tagore, fica melhor a cada audição.



Em uma palavra, a definição para o som do grupo seria psicodélico. A influência principal é tão evidente que uma das canções chama-se “Apocalipse Jeans”, referência escancarada a “Apocalypse Dreams”, do Tame Impala. No entanto, reduzi-lo a uma versão agreste dos australianos não contempla todas as vibrações emanadas pelo Tagore. Por trás de delírios lisérgicos como “Ilha Yoshimi” ou “Cabelo” há uma rica tradição de nordestinos loucos, de Ave Sangria a Alceu Valença.



E tem a diferença fundamental: uma dose de brega que entra na equação como elemento pop. Os gringos podem encher a cabeça do que for que nunca conseguirão reproduzir essa estética com tanta fidelidade nem com tanto apelo popular. Não é preciso nenhum conhecimento prévio ou gosto adquirido para “entender” a faixa-título, “Mudo” ou “Mar Alado”. O que as letras não explicam, a música – envolvente, densa, terna – resolve. Pare de ler isso e vá o quanto antes descobrir, como sugere a magistral “Reflexo”, “de onde vem essa vontade”.



Monte de versões

O músico, multi-instrumentista e produtor capixaba com o mais brasileiro dos sobrenomes segue sua caminhada lenta, segura e gradual rumo ao mainstream com Silva Canta Marisa. Se os três discos anteriores (o mais recente, Júpiter, é de 2015) já mostraram seu potencial e lhe renderam trabalhos com Lulu Santos e Fernanda Takai, neste ele se debruça sobre o repertório de Marisa Monte. Ambos se conheceram há dois anos e já compuseram juntos – a inédita “Noturno (Nada de Novo na Noite)” é fruto da parceria e tem participação da própria. Hits da cantora, como “Ainda Lembro”, “Não É Fácil” e “Beija Eu”, também aparecem em versões reverentes ou um tanto desvirtuadas.




 ANÇAMENTOS



Flaming Lips, Oczy Mlody – A banda de Oklahoma desfila sua habitual estranheza em mais um disco, o 14º de uma trajetória pontuada por muita rebordosa em nome da experimentação. Quem tiver disposição para relevar excessos do passado e encarar a viagem da vez vai perceber que o negócio está mais contido. Nem por isso, menos torto.



Blitz, Aventuras II – Em 1982, As Aventuras da Blitz abriu as portas do mercado para o incipiente pop rock nacional. Hoje, por mais que traga convidados da época (Frejat, Paralamas, George Israel) e novos parceiros como Seu Jorge e Andreas Kisser, o maior feito do segundo volume é revelar que a banda ainda existe.



(coluna publicada hoje no Diário Catarinense)

20170117

Amor como ideologia rima com utopia

Em meio à epidemia de indigência que está esvaziando a música brasileira de qualquer significado e função, Marcelo Yuka aparece com um disco que é a antítese da combinação “encher a cara e ir para a balada”. A estreia solo do ex-baterista e letrista dos principais sucessos d’O Rappa quase se chamou O Íntimo Versus o que Intimida (verso da faixa “Até Você”), mas acabou prevalecendo Canções para Depois do Ódio. O título embute uma profissão de fé: dias melhores virão, por mais que a realidade insista em desmentir o futuro.



Pelo menos 744 pessoas embarcaram na proposta de Yuka. A contribuição delas para viabilizar o álbum chegou a R$ 123 mil, 50% a mais do que a quantia almejada em uma plataforma de financiamento coletivo. O resultado de tanto empenho pode ser ouvido nos serviços de streaming desde o último dia 6. Bombas, protestos, ativismo e até o Maracanã dividem os versos com a depressão sofrida pelo artista após ficar paraplégico ao ser baleado na tentativa de impedir um assalto no Rio, em 2000.



Predominam batidas de trip hop e percussão afro, como se o inglês Tricky subisse algum morro carioca. Forjadas em parceria com o produtor Apollo 9 e cantadas por Bukassa Kabengele, Seu Jorge, Céu, Cibelle ou Barbara Mendes, nenhuma das 16 músicas se apresenta como candidata a hit – vide o single, “Movimento da Massa”. A onda aqui é outra, explicitada pela suavidade dub de “Assim É a Água”. Em entrevista, Yuka disse que sonha em fazer canções que possam servir de conforto. Em tempos de trumps e bolsonaros, nada mais necessário.

Na ponta da agulha
Em 1996, a fissura por heroína e suas consequências em Trainspotting – Sem Limites eram embaladas por New Order, Blur, Primal Scream e Pulp, entre outras finas flores do jardim pop inglês. A sequência do filme (baseada no livro Pornô, também de Irvine Welsh), prevista para este ano, mostra que o uso massivo da droga não embotou o gosto musical dos personagens Rent, Sick Boy, Bigbie e Spud. A trilha sonora que andou vazando desenterra clássicos (Queen, Clash, Blondie), repete Iggy Pop e introduz contemporâneos como Young Fathers e Fat White Family. Assim fica mais fácil aguentar a síndrome de abstinência.




 ANÇAMENTOS



Sepultura, Machine Messiah – Claro que a banda nunca fará outro disco tão inovador como Roots (1996), mas os fãs mais ortodoxos não podem se queixar. Inspirado pela “robotização da sociedade”, o metal tradicional de seu 14º disco ainda é capaz de entortar muito pescoço.



Devo, EZ Listening Muzak – As versões “de elevador” de músicas da banda americana que tocavam antes de seus shows na década de 1980 finalmente saem em disco. Bom para aguentar filas e/ou salas de espera, que se tornam menos sacais com “Whip It” ou “That’s Good”.



(coluna publicada hoje no Diário Catarinense)