20180325

Miranda, o amigo que fazia qualquer um se sentir especial

E foi-se o Miranda. Tudo o que eu queria dizer sobre ele foi escrito pelo Barcinksi e pelo Matias. Que a música brasileira teria tomado outro rumo na década de 1990, não fosse o Miranda a encampar – tanto como jornalista quanto produtor – a renovação no pop nacional. Que não economizava em distribuir elogios e conseguia fazer cada alvo de sua generosidade se sentir especial de um jeito único. Que qualquer um que teve a graça de conhecê-lo vai lembrar de alguma história vivida com ou por ele para contar.

Em agosto de 1994, o Miranda já era “o” Miranda e eu não passava de um jacu formado há um ano em Jornalismo. Trabalhava em uma entidade patronal e continuava a fazer o fanzine com que havia obtido o diploma na profissão. O emprego pagava as contas. O hobby alimentava a ambição de fazer parte da imprensa musical, renovada a cada vez que eu ia ao correio enviar a nova edição às pessoas das quais eu sonhava em me tornar colega – Miranda incluso.

Foi quando a prefeitura de Belo Horizonte inventou um festival chamado BH Rock Independent Fest (BHRIF). Fiquei muito a fim de ir. Liguei para lá, expliquei que era um representante da “mídia independente” e, como tal, dependia da caridade alheia. Seria possível me ajudarem de algum jeito? Responderam que não tinham como bancar as passagens, apenas a estadia. Já servia. Meti um atestado no serviço, peguei um ônibus de Florianópolis para Curitiba, outro de Curitiba para a capital mineira e, 22 horas depois, desembarquei no terminal rodoviário Governador Israel Pinheiro.

A organização cumpriu o combinado e me alojou em um baita hotel no bairro Savassi, o mesmo em que estavam hospedadas as atrações, gente da indústria fonográfica e repórteres do eixo Rio-São Paulo. Logo no primeiro dia, avistei aquele então cabeludo inconfundível, que eu só conhecia por fotos. Morrendo de medo de levar um gelo, cheguei perto e me identifiquei. “Bah, velhinho, tu é f*! Fica aqui comigo, vou te apresentar para um pessoal”, recebi em troca. O Miranda nunca tinha me visto antes e já me tratava como se fôssemos amigos desde sempre.

E assim foi até o final do festival: eu do lado dele e ele me anunciando a músicos e jornalistas como a última coca-cola do engradado. Na última noite, Miranda perguntou para onde eu ia. Respondi que iria voltar para Florianópolis. “Nada disso”, cortou ele. “Tem um ônibus fretado para a turma de São Paulo, tu vai junto e fica lá em casa.” Foram mais três dias rodando por redações e estúdios, com Miranda exagerando sobre minhas qualidades. Na despedida, o conselho: “Tu tem que vir para cá.”

Seis meses depois, eu estava de mudança para São Paulo – e lá estava Miranda, disposto a ajudar a me estabelecer. Ligava para um, marcava reunião com outro, dizia que um chapa dele de Floripa estava procurando trampo e que quem me desse uma chance não iria se arrepender. Com o tempo, nossos encontros rarearam, mas quando rolavam parecia que não fazia nem uma semana que a gente não se via. Inclusive na Ilha, onde ele vinha com certa frequência visitar a mãe em Jurerê.

Com Miranda, além de uma deliciosa receita de molho de tomate que sigo até hoje, aprendi para que serve dinheiro. “Compra um monte de gibi, disco, livro. Quando tu não tiver grana, fica em casa lendo e ouvindo tudo”, dizia. Também descobri que ser torto não significa preferir a empulhação ao talento. “A gente é maluco, mas gosta de coisa boa”, ensinava ele, com a tranquilidade de quem fez de “só alegria” e “excelente” os seus bordões. Obrigado, velhinho!

(coluna publicada anteontem no Diário Catarinense)

20180310

Novo, vasto & infinito: os 20 anos d'Os The Darma Lóvers

Neste 2018 completam-se 20 anos que Os The Darma Lóvers estão desmanchando o rígido, desfazendo críticas, sendo carregados pelo rio que transforma. Puro pretexto – ou gancho, no jargão do menino Jornalismo – para lembrar de uma das manifestações sônico-espirituais mais preciosas do pop brasileiro desde a piração racional de Tim Maia: um casal embrenhado em um mosteiro budista no interior do interior gaúcho, a viver e meditar e espraiar mensagens simples em melodias bonitas e vice-versa.

Nenung e Irinia viviam como seres urbanos. Raivosos, tristes, calados; um tipo bem estranho de bicho. Ele, na banda A Barata Oriental. Ela, em uma agência de publicidade. Até ouvirem o cara que nasceu da flor e formarem a dupla em 1998. No final de 2000, saiu o homônimo disco de estreia. “Branquinho” era tão minimalista quanto a capa que lhe rendeu o apelido. Violão e voz com sininho aqui, pianinho ali, harmônica e cordas pontuais a irradiar aromas folk e palavras singelas. Foi conversão imediata.

Em março de 2001, caiu do céu uma viagem de São Paulo a Porto Alegre para cobrir a gravação do disco ao vivo da Tribo de Jah em tributo a Bob Marley no Opinião. Era a oportunidade que eu precisava. Decorei as Quatro Nobres Verdades, vesti uma camiseta com estampa do ideograma do Om e me mandei para Três Coroas. Mais precisamente, para o topo de um dos morros que cercam a cidade a 90 quilômetros da capital gaudéria, onde repousa o Chagdud Gonpa Khadro Ling – lar dos Darma Lóvers.

Caminhões com material de construção não paravam de subir a estrada de terra rumo ao primeiro templo no Brasil erguido nos moldes tradicionais tibetanos. Pedreiros se ocupavam com oito blocos de concreto em frente ao prédio principal. Nenung me explicou que eram as stupas, representações das qualidades da mente iluminada e dos feitos extraordinários do Buda – não o único, mas o histórico, Sidarta Gautama. Forradas de cobre e bronze, elas comportam relíquias e textos sacros.

Mais adiante, enormes cilindros de ferro fizeram com que o músico voltasse a me socorrer. Com paciência milenar, ele disse que se chamavam rodas de oração e guardavam milhares de mantras (combinação de sons que simbolizam e comunicam a natureza de uma deidade e que conduzem à purificação e à realização) escritos e abençoados. Quando giradas em sentido horário, correspondem à recitação de todas as preces ali contidas. Eu não tinha nem entrado no templo e já me sentia pronto para atingir o nirvana (libertação).

Lá dentro, pinturas em padrão tibetano decoravam as paredes e o teto. Ao fundo, havia estantes com os livros sagrados e centenas de taças com água em uma espécie de altar que tomava toda a largura do recinto. Fiéis munidos de sadhanas (guia de meditação) sentavam em posição de lótus em colchonetes espalhados pelo chão para louvar Tara, a bodhisattva (alguém que desenvolveu bodhicitta, a aspiração de alcançar a iluminação em benefício de todos os seres) feminina da compaixão.

O casal morava em um conjunto anexo ao mosteiro e seguia uma rotina de puja (prática conjunta de meditação) às 6h, café da manhã às 7h30, trabalho até as 19h, mais puja para fechar o dia. Nenung recepcionava enxeridos como eu. Irinia ajudava na administração e cozinhava para Rinpoche – nascido no Tibete em 1930 e reconhecido ainda guri como a 16ª reencarnação do abade do monastério de Chagdug, naquele país. Com a ocupação chinesa em 1959, ele deixou a terra natal, rodou pelos EUA e se fixou em Três Coroas em 1995.

Autoridade máxima do mosteiro, foi Rinpoche quem rebatizou Irinia como Yang Zan (“melodiosa”, em tibetano) e Nenung como Pema Gyalpo (“rei do lótus”). Ué, Nenung já não era um nome oriental? “Não, vem de Pedro Verdum, jogador do Internacional na década de 1980. Minha turma começou a tirar sarro. Marcelo virou Marcelum; Marco, Marcum. Como sou Luís Fernando, apelidado de Neno, virei Nenum”, elucidou o dono da alcunha. Aí, bastou trocar o “m” por “ng” para ficar com cara de algo do outro lado do mundo.

Deixei os Darma Lóvers se dedicarem à última puja do dia e fui embora com um mala (espécie de rosário budista) no pescoço e um monte de energia positiva no coração. Voltei a falar com Nenung por telefone em 2002, por ocasião do lançamento do segundo álbum, Básico. Ele me contou que estava se preparando para o “desdobramento natural” de seu “projeto musical/existencial”: o isolamento em um retiro de três anos, três meses e três dias, com término previsto para 7 de setembro de 2005.

Fui reencontrá-los no extinto bar Drakkar, em Florianópolis, no show com base no disco Laranjas do Céu, de 2004. Não lembro se foi naquele ano mesmo (o que significaria que Nenung abortou o período de clausura) ou no seguinte, mas ainda tenho o CD autografado me desejando muita luz. Desfrutei de Simplesmente (2009) e Espaço! (2013), os trabalhos posteriores, mais como fã do que como “profissional da imprensa musical”. Nunca mais tive contato com eles desde então.

Rinpoche desencarnou em 2002.

Os Darma Lóvers permanecem na ativa, não sei se como casal ou apenas parceiros artísticos.

O mantra de Tara – Om Tare Tam Soha – tornou-se a imagem de fundo do meu celular. E é para a música deles que eu sempre me volto quando esqueço que “tudo é miragem e este é um rito de sonho e de passagem”. Até hoje, não encontrei jeito mais sutil de ligar aquele botão.

   (coluna publicada hoje ontem no Diário Catarinense)