Em uma de suas músicas mais emblemáticas, David Bowie canta que nós podemos ser heróis apenas por um dia. Mais do que impor uma restrição, o verso embute uma espécie de apelo: que sejamos heróis nem que apenas um dia. Pois o artista morto no domingo foi herói por quase 50 anos. Ou melhor, anti-herói. Desde 1969, ao lançar o single Space Oddity para coincidir com a chegada do homem à lua, ele pautou sua trajetória pela inquietude e pela inadequação. Principalmente, por uma percepção sobre-humana para antecipar o espírito do tempo – e partir para outra direção assim que o mundo embarcasse em sua onda.
Vem daí o clichê de associar Bowie a um camaleão. Só se for às avessas. O réptil, conforme aprendemos no primário, muda de cor para se adaptar ao ambiente. Bowie mudava justamente para destoar do cenário. Em plena conquista espacial, desafiou o coro dos contentes com uma visão sombria (nem por isso menos bela) sobre a posição insignificante da Terra ante o universo. O que parecia somente uma forma de um artista iniciante atrair atenção revelou-se uma vocação natural. Quando a juventude despertou do sonho e viu que o arco-íris era cinza, em vez de gabar da profecia ele preferiu radicalizar.
Em 1972, Bowie Bowie transformou-se em Ziggy Stardust, um alienígena que desconhecia as convenções terrenas: era homem e mulher, gay e hétero, déspota e libertador. Em suma, um estranho que poderia servir de referência a qualquer um que se sentisse à margem. Imagine o efeito devastador dessa abordagem para uma juventude sem nenhuma ilusão à qual se agarrar. Ziggy virou superstar. E então Bowie o retirou de circulação, inaugurando o método com o qual iria manipular o pop: inserindo-se em um contexto que não era a seu, tanto geográfica quanto artisticamente, apropriando-se dele e, em seguida, destruindo o que havia criado no percurso.
Sem limites para a criatividade, Bowie transitou entre Nova York, Los Angeles, Berlim; rock, R&B, música experimental. Foi um cara maluco (“a lad insane”, disfarçado como Alladin Sane em seu disco de 1973) e o magro duque branco (“thin white duke”, persona vinculada ao álbum Station to Station, de 1976) até adentrar pela década de 80 sendo ele próprio. E, mesmo dispensando alter-egos, encarnou novos papéis na pele de um astro radiofônico – vide “Modern Love”, “Let’s Dance”, “Blue Jean” e outros hits dessa época – e como bandleader com o malfadado Tin Machine.
De lá para cá, já consolidado no panteão dos gigantes, Bowie roçou a cibercultura (Outside, de 1995) e se manteve gravando com certa regularidade. Nenhuma obra-prima diante de suas experiências estéticas da década de 70, é verdade; mas também nenhum trabalho que não fosse digno de estampar seu nome na capa. The Next Day, em 2013, sinalizava para uma fase mais contemplativa, quase uma reflexão a respeito do fim inevitável. O recém-lançado Blackstar aprofundava-se por esse caminho, até Bowie atender o chamado para voltar a flutuar acima do azul do mundo sem poder fazer mais nada.
***
(coluna publicada hoje no Diário Catarinense)
Nenhum comentário:
Postar um comentário