20170117

Amor como ideologia rima com utopia

Em meio à epidemia de indigência que está esvaziando a música brasileira de qualquer significado e função, Marcelo Yuka aparece com um disco que é a antítese da combinação “encher a cara e ir para a balada”. A estreia solo do ex-baterista e letrista dos principais sucessos d’O Rappa quase se chamou O Íntimo Versus o que Intimida (verso da faixa “Até Você”), mas acabou prevalecendo Canções para Depois do Ódio. O título embute uma profissão de fé: dias melhores virão, por mais que a realidade insista em desmentir o futuro.



Pelo menos 744 pessoas embarcaram na proposta de Yuka. A contribuição delas para viabilizar o álbum chegou a R$ 123 mil, 50% a mais do que a quantia almejada em uma plataforma de financiamento coletivo. O resultado de tanto empenho pode ser ouvido nos serviços de streaming desde o último dia 6. Bombas, protestos, ativismo e até o Maracanã dividem os versos com a depressão sofrida pelo artista após ficar paraplégico ao ser baleado na tentativa de impedir um assalto no Rio, em 2000.



Predominam batidas de trip hop e percussão afro, como se o inglês Tricky subisse algum morro carioca. Forjadas em parceria com o produtor Apollo 9 e cantadas por Bukassa Kabengele, Seu Jorge, Céu, Cibelle ou Barbara Mendes, nenhuma das 16 músicas se apresenta como candidata a hit – vide o single, “Movimento da Massa”. A onda aqui é outra, explicitada pela suavidade dub de “Assim É a Água”. Em entrevista, Yuka disse que sonha em fazer canções que possam servir de conforto. Em tempos de trumps e bolsonaros, nada mais necessário.

Na ponta da agulha
Em 1996, a fissura por heroína e suas consequências em Trainspotting – Sem Limites eram embaladas por New Order, Blur, Primal Scream e Pulp, entre outras finas flores do jardim pop inglês. A sequência do filme (baseada no livro Pornô, também de Irvine Welsh), prevista para este ano, mostra que o uso massivo da droga não embotou o gosto musical dos personagens Rent, Sick Boy, Bigbie e Spud. A trilha sonora que andou vazando desenterra clássicos (Queen, Clash, Blondie), repete Iggy Pop e introduz contemporâneos como Young Fathers e Fat White Family. Assim fica mais fácil aguentar a síndrome de abstinência.




 ANÇAMENTOS



Sepultura, Machine Messiah – Claro que a banda nunca fará outro disco tão inovador como Roots (1996), mas os fãs mais ortodoxos não podem se queixar. Inspirado pela “robotização da sociedade”, o metal tradicional de seu 14º disco ainda é capaz de entortar muito pescoço.



Devo, EZ Listening Muzak – As versões “de elevador” de músicas da banda americana que tocavam antes de seus shows na década de 1980 finalmente saem em disco. Bom para aguentar filas e/ou salas de espera, que se tornam menos sacais com “Whip It” ou “That’s Good”.



(coluna publicada hoje no Diário Catarinense)

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