20211227

A hora tão esperada por ninguém

Leitora do Extrato não fica sem presente!

(Desencavei umas tentativas de contos de Natal que fiz para aquela coluna lembrada aqui. Tive que dar umas mexidas por questões de estilo e/ou referências datadas demais, mas juro que não precisei revisar nada escrito há 20 anos por soar machista, misógino, racista ou homofóbico pelos ditames atuais. Uma pequena alegria para o autor, uma grande conquista para o legado. Os textos a seguir foram publicados em 2001, 2002 e 2004.)

O que vale é o gesto.



O Natal está em todos os lugares

Aquele réveillon prometia. Com mais dois casais, Dilamor e Gina alugaram uma escuna que os levaria de Natal até Fernando de Noronha, onde saudariam o ano vindouro de um jeito doce na Cacimba do Padre. A embarcação deixou a capital do Rio Grande do Norte em 22 de dezembro. Dois dias depois, só os homens estavam curtindo a viagem. As mulheres, enfastiadas, limitavam-se a suspirar e a amaldiçoar o mar.

A noite de lua cheia se insinuava no horizonte quando uma pequena faixa de terra quebrou a monotonia visual. “Aquilo é o Atol das Rocas, a primeira reserva biológica do Brasil, criada em 1979. É formado por uma coroa de coral sobre um pilar vulcânico, em cujo centro está uma lagoa de água salgada. A sede da reserva é utilizada por pesquisadores de peixes e aves”, apontou o capitão do barco, um holandês com a pele rosa, esturricada pelo sol inclemente do litoral potiguar.

“Vamos passar o Natal lá!”, decretou Dilamor, que, embora não reclamasse, também já estava de saco cheio do oceano. Enfiou uma garrafa de uísque e cerca de 70 gramas de maconha em um saco plástico, amarrou a ponta e se atirou na água. A uns 100 metros de distância, ele conseguiu distinguir a silhueta de uma casinha e de três pessoas agitando os braços.

Estimulado pelo que julgava ser uma comemoração pela sua visita, Dilamor apertava os dentes em torno da ponta do saco e aumentava o ritmo das braçadas. Finalmente, chegou à terra, tomando cuidado para que o costão bravio não avariasse as surpresinhas que levava. Mas ele que ficou surpreso com a recepção do trio.

“Não pode entrar aqui, é área militar”, disse-lhe o primeiro, mal terminando a frase para agarrar a garrafa que Dilamor tirou do saco e jogou em sua direção.

“Somos biólogos, estamos de plantão”, explicou o segundo, a quem foi arremessado um torrão escuro e cheiroso do tamanho de um celular.

“Papai Noel!”, abriu os braços o terceiro.

E, naquele instante, Dilamor compreendeu que o espírito de Natal é algo muito poderoso, capaz de suplantar até os mais profundos ressentimentos de quem não ganhou nenhum presente da gente.



Cada um faz o bem como bem entende

Sedentário, relapso e cafajeste, Guido Copertone viu na eleição do pai como deputado a chance de descolar uma boquinha no serviço público. O velho ficou no dilema. Descendente direto dos italianos que desbravaram o Sul do Brasil, uma gente honesta e trabalhadora, que ria das adversidades e acostumada a dizer “obrigado” em vez de “quanto custa?”, não iria permitir que o filho único jogasse sua biografia na lama.

Ao mesmo tempo, movia montanhas se necessário para atender às vontades do herdeiro de 23 anos. Limpou sua consciência arrumando-lhe uma vaga como cozinheiro-chefe da tenebrosa penitenciária conhecida como Cadeião da Boa Morte. Se o jovem sobrevivesse na função, provaria ter a fibra dos antepassados. E aí poderia ser promovido a estafeta em uma repartição qualquer, sem nenhum ônus para a reputação familiar.

E lá se foi Copertone, 1,55 de altura, ser chamado de “mestre” pelos presidiários já domesticados, isto é, que reuniam condições de civilidade suficientes para coexistir entre facas e óleo quente sem pensar besteira. “Trate-os como animais”, ouviu do pai antes de ser abandonado no portão do Cadeião. O conselho foi posto em prática logo no primeiro dia.

Um loiro magro e espichado deixou cair no chão metade do tomate que já tinha picado. “Se liga, polaco! Na próxima, é a casa que vai cair aqui!”, gritou Copertone, do outro lado da cozinha, para que todo mundo ouvisse. O desastrado, condenado por matar com 115 punhaladas o ex-patrão, abaixou a cabeça sem olhar para o cutelo que manejava e murmurou “sim senhor, mestre”. O baixinho se sentiu em casa.

A jornada na cozinha do presídio começava às quatro da tarde e durava 24 horas, com folga nos dois dias seguintes. Nesse esquema de três turmas se revezando, Copertone entrou na escala de 24 de dezembro. Chegou mal-humorado, mais porque iria dormir sem TV a cabo do que por virar o Natal naquele muquifo.

Às duas da manhã, com todos dormindo no cubículo anexo aos fogões, ele se levantou, decidido. Ligou para o amigo Cabelo e implorou por vodka. Em menos de meia hora, o chapa conseguiu atravessar três garrafas. Em silêncio, Copertone tomou uma dose. Duas. Na terceira, acordou a rapaziada dizendo que era o Papai Noel. Mandou os detentos fazerem fila, que iria distribuir o mel.

Dezesseis homens, um atrás do outro, pacientemente esperavam pelo seu quinhão, a tampinha da garrafa com um gole de bebida. Ao amanhecer, eles riam e choravam e abraçavam Copertone, soluçando que aquele fora o melhor Natal que passaram no Cadeião. Um deles, emocionado, desmanchou-se em gratidão. “Para proteger o senhor, mestre”, garantiu, oferecendo-lhe um pingente de São Dimas.

O tempo passou e Copertone encontrou sua vocação, tornando-se policial. Certa noite, atendeu uma ocorrência de furto na casa um empresário graúdo. Segurando o ladrão pelo cangote, reconheceu-o. Lembrou-se da cozinha do Cadeião, da cumplicidade alcoólica, da medalhinha. Deu apenas um tiro no joelho direito dele. Com o butim, chamou Cabelo e enfiaram o pé na jaca.



Natal reserva o papel que cada um faz por merecer

A escolha de Idiomar foi praticamente por aclamação. Afinal, entre os homens da família, era o único com condições para encarar tamanha responsabilidade sem frustrar as expectativas da parentada. O sogro não tinha mais estrutura mental para suportar o desafio. O cunhado desmoralizou-se na última vez em que desempenhou a função. Sobrou ele para atuar como Papai Noel na comemoração da noite de 24 de dezembro.

O figurino ficou a cargo da mulher, Dioneia. Achou o tradicional uniforme vermelho e branco no camelódromo por R$ 19,90, incluídos o cinto preto e a barba postiça. O preço baixo embutia um senão: o traje, de feltro vagabundo, era quente como o inferno. Idiomar experimentou a peça, notou que o manequim tinha uma bunda enorme e, já suando, pensou na felicidade da filha de três anos ao receber o triciclo tão desejado diretamente das mãos do bom velhinho.

A pantomima envolvia toda uma logística. Idiomar começaria a ceia à paisana, representando os papéis de marido, pai e genro. Em determinado momento, ele alegaria ter que sair para comprar qualquer coisa – “um elmo”, cogitou – e sumiria, reaparecendo fantasiado e com a indefectível risada. O que o deixava ressabiado era o sobrinho e afilhado Maiolo. O peste de oito anos não iria cair na lorota e, com certeza, faria de tudo para sabotar o plano.

Chegou a noite derradeira e tudo ia correndo surpreendentemente bem. A caçula, Jaqueline, ficou maravilhada ao descobrir que a cartinha que mandara três meses antes com o seu pedido funcionara. A sobrinha Aline, de quatro anos, não se importou com mais nada depois que ganhou sua casinha de boneca. Maiolo, que ameaçou desmascará-lo ao puxar sua barba, foi domado com beliscões dados na surdina e um jogo do Ben 10.

Os adultos só não planejaram a retirada do Papai Noel. É claro que Maiolo quis acompanhá-lo até o portão do quintal. Sem alternativa, Idiomar acabou no meio da rua. A ideia dele era esperar a poeira baixar, tirar aquela roupa insuportável e voltar dizendo que não achara o elmo que procurava. Mas outras famílias o viram caracterizado e o chamaram para encantar também os seus natais.

Idiomar passou a noite toda levando alegria e bem-aventurança de casa em casa. Quando terminou, o dia raiava. Ao entrar no seu quarto, por pouco não foi atingido por um vidro de perfume. “Canalha, nem no Natal abandona a farra!, berrava a mulher. “Deixa de noia, Neia!”, argumentou – e caiu na cama, exausto. No dia 26, ela saiu depois do almoço para trocar o liquidificador novo da mãe por uma cor que combinasse melhor com a geladeira e voltou no final de tarde com o cabelo molhado.

(Extraído da newsletter Extrato. Assine já e garanta o seu exemplar antecipado todas as terças!)

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