Leitora do Extrato não fica sem presente!
(Desencavei umas tentativas de contos de Natal que fiz para aquela coluna lembrada aqui. Tive que dar umas mexidas por questões de estilo e/ou referências datadas demais, mas juro que não precisei revisar nada escrito há 20 anos por soar machista, misógino, racista ou homofóbico pelos ditames atuais. Uma pequena alegria para o autor, uma grande conquista para o legado. Os textos a seguir foram publicados em 2001, 2002 e 2004.)
O que vale é o gesto.
O Natal está em todos os lugares
Aquele réveillon prometia. Com mais dois casais, Dilamor e Gina alugaram uma escuna que os levaria de Natal até Fernando de Noronha, onde saudariam o ano vindouro de um jeito doce na Cacimba do Padre. A embarcação deixou a capital do Rio Grande do Norte em 22 de dezembro. Dois dias depois, só os homens estavam curtindo a viagem. As mulheres, enfastiadas, limitavam-se a suspirar e a amaldiçoar o mar.
A noite de lua cheia se insinuava no horizonte quando uma pequena faixa de terra quebrou a monotonia visual. “Aquilo é o Atol das Rocas, a primeira reserva biológica do Brasil, criada em 1979. É formado por uma coroa de coral sobre um pilar vulcânico, em cujo centro está uma lagoa de água salgada. A sede da reserva é utilizada por pesquisadores de peixes e aves”, apontou o capitão do barco, um holandês com a pele rosa, esturricada pelo sol inclemente do litoral potiguar.
“Vamos passar o Natal lá!”, decretou Dilamor, que, embora não reclamasse, também já estava de saco cheio do oceano. Enfiou uma garrafa de uísque e cerca de 70 gramas de maconha em um saco plástico, amarrou a ponta e se atirou na água. A uns 100 metros de distância, ele conseguiu distinguir a silhueta de uma casinha e de três pessoas agitando os braços.
Estimulado pelo que julgava ser uma comemoração pela sua visita, Dilamor apertava os dentes em torno da ponta do saco e aumentava o ritmo das braçadas. Finalmente, chegou à terra, tomando cuidado para que o costão bravio não avariasse as surpresinhas que levava. Mas ele que ficou surpreso com a recepção do trio.
“Não pode entrar aqui, é área militar”, disse-lhe o primeiro, mal terminando a frase para agarrar a garrafa que Dilamor tirou do saco e jogou em sua direção.
“Somos biólogos, estamos de plantão”, explicou o segundo, a quem foi arremessado um torrão escuro e cheiroso do tamanho de um celular.
“Papai Noel!”, abriu os braços o terceiro.
E, naquele instante, Dilamor compreendeu que o espírito de Natal é algo muito poderoso, capaz de suplantar até os mais profundos ressentimentos de quem não ganhou nenhum presente da gente.
Cada um faz o bem como bem entende
Sedentário, relapso e cafajeste, Guido Copertone viu na eleição do pai como deputado a chance de descolar uma boquinha no serviço público. O velho ficou no dilema. Descendente direto dos italianos que desbravaram o Sul do Brasil, uma gente honesta e trabalhadora, que ria das adversidades e acostumada a dizer “obrigado” em vez de “quanto custa?”, não iria permitir que o filho único jogasse sua biografia na lama.
Ao mesmo tempo, movia montanhas se necessário para atender às vontades do herdeiro de 23 anos. Limpou sua consciência arrumando-lhe uma vaga como cozinheiro-chefe da tenebrosa penitenciária conhecida como Cadeião da Boa Morte. Se o jovem sobrevivesse na função, provaria ter a fibra dos antepassados. E aí poderia ser promovido a estafeta em uma repartição qualquer, sem nenhum ônus para a reputação familiar.
E lá se foi Copertone, 1,55 de altura, ser chamado de “mestre” pelos presidiários já domesticados, isto é, que reuniam condições de civilidade suficientes para coexistir entre facas e óleo quente sem pensar besteira. “Trate-os como animais”, ouviu do pai antes de ser abandonado no portão do Cadeião. O conselho foi posto em prática logo no primeiro dia.
Um loiro magro e espichado deixou cair no chão metade do tomate que já tinha picado. “Se liga, polaco! Na próxima, é a casa que vai cair aqui!”, gritou Copertone, do outro lado da cozinha, para que todo mundo ouvisse. O desastrado, condenado por matar com 115 punhaladas o ex-patrão, abaixou a cabeça sem olhar para o cutelo que manejava e murmurou “sim senhor, mestre”. O baixinho se sentiu em casa.
A jornada na cozinha do presídio começava às quatro da tarde e durava 24 horas, com folga nos dois dias seguintes. Nesse esquema de três turmas se revezando, Copertone entrou na escala de 24 de dezembro. Chegou mal-humorado, mais porque iria dormir sem TV a cabo do que por virar o Natal naquele muquifo.
Às duas da manhã, com todos dormindo no cubículo anexo aos fogões, ele se levantou, decidido. Ligou para o amigo Cabelo e implorou por vodka. Em menos de meia hora, o chapa conseguiu atravessar três garrafas. Em silêncio, Copertone tomou uma dose. Duas. Na terceira, acordou a rapaziada dizendo que era o Papai Noel. Mandou os detentos fazerem fila, que iria distribuir o mel.
Dezesseis homens, um atrás do outro, pacientemente esperavam pelo seu quinhão, a tampinha da garrafa com um gole de bebida. Ao amanhecer, eles riam e choravam e abraçavam Copertone, soluçando que aquele fora o melhor Natal que passaram no Cadeião. Um deles, emocionado, desmanchou-se em gratidão. “Para proteger o senhor, mestre”, garantiu, oferecendo-lhe um pingente de São Dimas.
O tempo passou e Copertone encontrou sua vocação, tornando-se policial. Certa noite, atendeu uma ocorrência de furto na casa um empresário graúdo. Segurando o ladrão pelo cangote, reconheceu-o. Lembrou-se da cozinha do Cadeião, da cumplicidade alcoólica, da medalhinha. Deu apenas um tiro no joelho direito dele. Com o butim, chamou Cabelo e enfiaram o pé na jaca.
Natal reserva o papel que cada um faz por merecer
A escolha de Idiomar foi praticamente por aclamação. Afinal, entre os homens da família, era o único com condições para encarar tamanha responsabilidade sem frustrar as expectativas da parentada. O sogro não tinha mais estrutura mental para suportar o desafio. O cunhado desmoralizou-se na última vez em que desempenhou a função. Sobrou ele para atuar como Papai Noel na comemoração da noite de 24 de dezembro.
O figurino ficou a cargo da mulher, Dioneia. Achou o tradicional uniforme vermelho e branco no camelódromo por R$ 19,90, incluídos o cinto preto e a barba postiça. O preço baixo embutia um senão: o traje, de feltro vagabundo, era quente como o inferno. Idiomar experimentou a peça, notou que o manequim tinha uma bunda enorme e, já suando, pensou na felicidade da filha de três anos ao receber o triciclo tão desejado diretamente das mãos do bom velhinho.
A pantomima envolvia toda uma logística. Idiomar começaria a ceia à paisana, representando os papéis de marido, pai e genro. Em determinado momento, ele alegaria ter que sair para comprar qualquer coisa – “um elmo”, cogitou – e sumiria, reaparecendo fantasiado e com a indefectível risada. O que o deixava ressabiado era o sobrinho e afilhado Maiolo. O peste de oito anos não iria cair na lorota e, com certeza, faria de tudo para sabotar o plano.
Chegou a noite derradeira e tudo ia correndo surpreendentemente bem. A caçula, Jaqueline, ficou maravilhada ao descobrir que a cartinha que mandara três meses antes com o seu pedido funcionara. A sobrinha Aline, de quatro anos, não se importou com mais nada depois que ganhou sua casinha de boneca. Maiolo, que ameaçou desmascará-lo ao puxar sua barba, foi domado com beliscões dados na surdina e um jogo do Ben 10.
Os adultos só não planejaram a retirada do Papai Noel. É claro que Maiolo quis acompanhá-lo até o portão do quintal. Sem alternativa, Idiomar acabou no meio da rua. A ideia dele era esperar a poeira baixar, tirar aquela roupa insuportável e voltar dizendo que não achara o elmo que procurava. Mas outras famílias o viram caracterizado e o chamaram para encantar também os seus natais.
Idiomar passou a noite toda levando alegria e bem-aventurança de casa em casa. Quando terminou, o dia raiava. Ao entrar no seu quarto, por pouco não foi atingido por um vidro de perfume. “Canalha, nem no Natal abandona a farra!, berrava a mulher. “Deixa de noia, Neia!”, argumentou – e caiu na cama, exausto. No dia 26, ela saiu depois do almoço para trocar o liquidificador novo da mãe por uma cor que combinasse melhor com a geladeira e voltou no final de tarde com o cabelo molhado.
(Extraído da newsletter Extrato. Assine já e garanta o seu exemplar antecipado todas as terças!)
Nenhum comentário:
Postar um comentário