Em sua coluna do último dia do ano passado, Julián Fuks contou que em 2022 nada escreveu e, ao mesmo tempo, nunca escreveu tanto. Entendo o que ele quis dizer. É tanta infâmia, tanto esquema, tanta chinelagem que também me senti “refém de um presente que reclama atenções e aniquila pensamentos”. Diante da danação institucionalizada, o premiado romancista não conseguiu se dedicar à literatura. Eu, à groselha com a frequência que gostaria.
Quantas vezes sentei na frente desta tela em branco a fim de falar de outra coisa e falhei com louvor. A realidade se impôs com tal vigor que fingir que não era comigo e mudar de assunto beirava a irresponsabilidade, quando não o ridículo. Tornou-se inadiável registrar, criticar, debochar da sucessão de disparates para não me achar (mais) indigno comentando sobre o disco do fulano – e até para reafirmar alguma sanidade – enquanto a estupidez avançava.
Acreditei que, Lula empossado, essa fase seria superada e me preparei para respirar novos ares, mais leves, lúdicos, mais afeitos à utopia. Mas fui sufocado pelos fatos. O que aconteceu no domingo acabou com qualquer tentativa diplomática de conviver com quem ainda compactua com o horror personificado pelo ex-presidente covarde. Não por falta de boa vontade: desde pelo menos 2018 o limite da tolerância vem sendo reajustado para acomodar a extrema direita sem que ninguém se sinta derrotado.
Certas condições, contudo, são inegociáveis. Cada um que avalie a flexibilidade de seu esfíncter retórico e decida quais concessões topa fazer em nome da coexistência pacífica (ou da sobrevivência), contanto que a prega-rainha seja preservada: com essa gentalha não tem conversa. Já não deveria ter com os golpistas de 2016, não deve ter agora. Como todos os que derrubaram Dilma saíram impunes e muitos hoje são aliados do governo progressista, só resta lamentar e exigir a aplicação da lei sobre os conspiradores atuais.
Chame-os de fanáticos, bandidos, fascistas, vândalos, terroristas, radicais, do que for. Para mim sempre serão uma cambada de feios, burros & cafonas que se assumiram e se empoderaram com a chegada de um semelhante ao comando do país. Ignorantes que se escoram nas lorotas mais primárias para confirmar sua visão distorcida de mundo. Machos-alfafa inseguros, preconceituosos e ressentidos que encontraram na estupidez uma sensação de pertencimento inédita em suas deploráveis existências.
A filósofa alemã Hannah Arendt criou a expressão “banalidade do mal” para designar a postura dos oficiais nazistas que cometeram os mais tenebrosos crimes sem entrar em dilemas éticos, como se cumprissem meras ordens burocráticas. Os patriotários que invadiram e deixaram um rastro de horror e imundície nas sedes dos Poderes em Brasília inverteram o conceito. Todos ali se consideravam heróis, ninguém mediu as consequências.
Todos tinham noção da gravidade do que estavam fazendo, ninguém parou para pensar se aquilo lhe traria algum benefício. Todos nutriam um ódio cego ao inimigo, ninguém enxergou que combatia instalações, móveis, relíquias e obras de arte. Todos esperavam protagonizar uma revolução, ninguém imaginava que choraria ao ser preso. A única preocupação, fora destruir tudo o que viam pela frente, era filmar e publicar nas redes sociais para ganhar curtidas entre dancinhas e memes idiotas.
Nascia assim, sob os escombros da República ultrajada, a maldade do banal.
(Extraído da newsletter Extrato. Assine já e garanta o seu exemplar antecipado todas as terças!)
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