Adoro quando meus pais vão visitar o tio Emerson. A casa dele tem disco em tudo quanto é lugar, até na cozinha. Minha mãe me disse que a maioria ele ganhou porque era jornalista de uma revista de música. Deve ser por isso que ele é tão revoltado: não existem mais jornalistas nem revistas. Música é claro que ainda existe, mas ninguém usa mais disco.
O meu tio, depois de juntar aquele monte de CDs, se recusou a comprar tudo de novo em vinil só porque virou modinha. Em acessos de fúria que já fazem parte do folclore da família, ele prometeu que vai se matar assim que o seu tocador de CDs estragar, pois o moço da loja já avisou que não fabricam mais a pecinha que sempre quebra. Não entendo por que ele teria que comprar tudo de novo, hoje a gente só ouve música pelo celular.
Mesmo sendo meio esquisitão, eu gosto dele. E acho que ele também gosta de mim, porque além de ser sua sobrinha, sou a única pessoa que presta atenção nas suas histórias. Ele estava até me ensinando a escrever, para eu parar de tirar notas baixas em redação no colégio. Disse para eu começar colocando uma ideia por frase. Estou tentando seguir a dica dele, não sei se funciona.
Na última vez em que a gente foi na casa do tio Emerson, ele jurou para mim que é mentira que ganhou todos os discos que tem. Muitos foram conseguidos em trocas e alguns ele até comprou. Sorte que minha mãe avisou que quando meu tio começa com esses surtos, a gente deve falar de música do tempo dele que ele amansa. Daí eu me lembrei de Stranger Things e do Batman.
Toda contente, comentei com ele que tinha conhecido Kate Bush e Metallica na série e Nirvana no filme. Nem são muito o tipo de som que eu curto, citei mais para agradar ele. O tio Emerson reagiu com um suspiro e foi na estante onde guarda os discos. Parou na frente de uma prateleira com uma etiqueta escrita “M-P”, pegou uns CDs e voltou na minha direção.
Ao se aproximar de mim, deu outro suspiro. Com o olhar fixo no meu, ele apontou para um disco com uns raios azuis na capa que trazia na mão e me contou que tinha a minha idade quando ouviu aquilo pela primeira vez. Do outro, com um bebê embaixo d’água, garantiu que nada se comparava ao impacto que teve no lançamento, trocentos anos atrás. “Depois deles eu nunca mais fui o mesmo”, confessou.
Então colocou os dois para tocar. À medida que ia me mostrando as músicas, o tio Emerson chegava a fechar os olhos e cantava baixinho, como se estivesse em transe. O dos raios eu ri da força que o vocalista fazia para berrar. O do bebê não tinha uma música inteira legal, só partes que duravam bem pouco. Não dei um pio sobre isso para ele, não queria que ele ficasse decepcionado comigo.
Para disfarçar, perguntei se ele não tinha nenhum disco da mulher com a voz superaguda. O tio Emerson baixou a cabeça e começou a soluçar. Eu ia comentar que o professor de história sugeriu que a nossa turma assistisse a um doc de um tal de Beatles, mas achei melhor deixar ele sozinho. Antes de ir embora, ainda ouvi ele resmungando um papo maluco de “online” e “offline”, como se houvesse diferença entre uma coisa e outra.
(Extraído da newsletter Extrato. Assine já e garanta o seu exemplar antecipado todas as terças!)
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