20220924

Quando uma ideia basta



Tinha Guns n’ Roses em São José. Tinha Jorge Ben, Planet Hemp, Emicida, Criolo e mais um monte de artistas no Eco Festival em Canasvieiras. Mas o maior nome do final de semana na Grande Florianópolis se apresentou de graça e cheio de graça ao meio-dia de domingo no centro da cidade: Lula, sempre ele. Seu show foi do tamanho da energia que emanava de cada canto da praça Tancredo Neves lotada.

O caminho para o local já indicava uma movimentação atípica. As ruas próximas, tradicionalmente desertas nas manhãs dominicais, estavam tomadas de pessoas trajadas de cidadania. O vermelho intenso do pau-brasil que batizou o país tingia camisetas, bonés e faixas em que predominavam a estrela com a inscrição “meu voto é secreto”, apenas a cara de Lula desenhada ou algum programa social criado no governo dele.

As filas serpenteavam pelo Tribunal de Contas até a frente do Instituto Estadual de Educação, na Mauro Ramos. A revista obrigatória para ultrapassar as grades de contenção que cercavam a praça tornava o escoamento ainda mais devagar. Naquele ritmo, o último só ia conseguir entrar às vésperas de um hipotético segundo turno. Então surgiu um rumor de que os portões haviam sido liberados e eu fui no fluxo.

Quando vi, estava no meio da multidão que se afunilava diante de um corredor gradeado. “Sem garrafas, nem de plástico!”, gritava um segurança. “Homens à esquerda, mulheres à direita”, organizava outro, alheio à frequência não-binária. Depois de ser apalpado pelos homens-de-preto, enfim pisei na arena onde foi montado o palco para Lula – que, como todo headliner, fecharia o evento.

Das muitas atrações que o antecederam, ninguém me tocou como Manuela D’Ávila. Ela falou dos riscos de ser progressista na região mais alinhada com o projeto do atraso, da exclusão, da violência. Dos últimos quatro anos impedidos de vestir nossas cores, defender nossas causas, empunhar nossas bandeiras. Chega de medo, eles que devem temer. Porque nossa vitória nunca esteve tão perto.

A companheira Janja puxou o coro para acompanhar o clipe com a nova versão do jingle histórico exibido no telão. Foi a deixa para Lula pegar o microfone e soltar a voz rouca que o público tanto esperava. O homem é um fenômeno: por mais que seu discurso seja previsível, é impossível não querer se convencer por ele – das conquistas de seus mandatos à garantia de um futuro solidário, próspero e gentil.

Enquanto Lula encantava, eu pensava no quanto o que ele simboliza é mais forte do que qualquer coisa que diga. “Lula é uma ideia” – e não tem como discordar. Quem experimentou sabe. Parecia que nada nem ninguém impediria nosso destino de brilhar. Vivia-se em uma dimensão tão distante do pesadelo atual que inclusive os brutos se fingiam civilizados, porque eram os códigos vigentes.

Ao mesmo tempo, fiquei viajando na “cultura do conforto” que Lula representa para mim. Como uma música, um livro ou um filme que me são familiares, suas palavras me transportam para uma época mais simples, da qual eu já conhecia o final e sempre acabava bem. Além do nada desprezível detalhe de que eu era 20 anos mais jovem e me cegava com uma felicidade que hoje somente olho de soslaio, desconfiado.

Meu presidente se despediu renovando a esperança de todos em dias melhores. À medida que me dispersava com a massa, ainda me lembrei de um artigo em que o filósofo Slavoj Zizek aborda o conceito da psicanálise de Lacan que prega que a verdade tem a estrutura de uma ficção. Em resumo, “a realidade é para aqueles que não podem suportar o sonho”. Lula me faz acreditar que posso.

(Extraído da newsletter Extrato. Assine já e garanta o seu exemplar antecipado todas as terças!)

Nenhum comentário: