20220918

Nossa vitória não será por acidente



Está tudo tão virado do avesso, tudo sendo considerado tão normal por mais atípico que seja, que fica difícil resistir à vontade de ligar aquele botão com nome feio. Mas não reclamo. Há sempre uma razão para encarar com otimismo os percalços que o carma espalha pelo caminho. Nem que seja para continuar do único jeito concebível de ser: do contra.

Em maio fui cobrir um festival de música em Natal e conheci atrações que mal apareciam nos guias turísticos. No bairro da Ribeira, na parte antiga da capital potiguar, a organização montou dois palcos com o rio Potengi ao fundo e cercou a rua Chile, anexando bares, restaurantes e o casario. Para entrar naquele pedaço (público) da cidade e ver os shows de mais de 20 artistas, só pagando ingresso.

O que eu sequer desconfiava é que o valor desembolsado – não por mim, um deformador de opinião credenciado como tal – dava acesso também a uma TAZ, sigla em inglês para Zona Autônoma Temporária. O conceito foi criado por Hakim Bey, supostamente um poeta de algum lugar do norte da Índia que fugiu para a Inglaterra e, quando a barra pesou, atravessou o Atlântico rumo a Nova York.

O livro dele traz exemplos de situações que, por ações ou alterações da percepção, desafiam a caretice oficial, a opressão institucionalizada e o livre arbítrio mentiroso patrocinado pelo Estado. Pelas suas páginas desfilam desde piratas que fundaram na costa da África comunidades muito mais tolerantes do que os reinos da Europa feudal até as raves que levam jovens a celebrar um hedonismo com hora para acabar.

De acordo com Bey, não é necessário arregimentar um grupo, tramar uma revolução ou ter ideais muito sólidos para experimentar essa sensação na plenitude. A partir do momento em que o medo, o temor, o pânico diante do que pode acontecer perde importância e tudo o que se pensa é “fodam-se as leis e todas as regras, eu não me agrego a nenhuma delas”, uma TAZ está pronta para nascer.

Foi nesse clima que o Planet Hemp fechou a primeira noite do festival. O vocalista Marcelo D2 pulava no palco e a massa pogava no chão, às vezes de costas para ele, trocando a idolatria bovina pela plena assimilação da mensagem. O auge veio com “Stab”, cheia de significados difusos insinuados pelos versos “esperem sentados a rendição, nossa vitória não será por acidente”.

Ato reflexo, jovens, coroas, brancos, negros, pardos, ninfetas, putas, militantes, alienados, nerds, malacos, pobres, remediados e um bebum em uma cadeira de rodas soltaram, cada um a seu modo, uma torrente de sentimentos represados pela acomodação quase invisível que faz a gente murchar. A banda ainda promoveria mais meia hora de contestação e dedo na cara. Para mim, estava suficiente.

Olhei para o meu amigo de infância, que saiu da catarinense Laguna para passar férias em Natal e nunca mais voltou, casou com uma nativa, comprou um bugue e uma casa na Ponta Negra e vive de frila de publicidade, e não precisei falar nada. Naquele instante, tanto eu quanto ele tivemos a nítida certeza de que o nosso candidato seria eleito. Aquela Zona foi Autônoma, mas não haveria de ser Temporária.

***

Desencavei o texto acima, publicado em 2002, porque ando ansioso tentando encontrar algum sinal que me dê o mesmo alívio. Pode ser uma declaração, um gesto, qualquer banalidade. Será que já rolou e eu nem me toquei? Será que em outubro, ao olhar em retrospecto, vou identificá-lo e rir de como fui tolo em não sacar? Será que desta vez vai ter todo um processo, não um marco definidor? Aceito sugestões, por favor.

(Extraído da newsletter Extrato. Assine já e garanta o seu exemplar antecipado todas as terças!)

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