20160126

Selvagens do coração para dentro

O primeiro grande disco do ano é de uma banda de garotas falando sobre amor, todo tipo de amor. Ah, que coisa fofa. É porque você não conhece as Savages. Com essas quatro inglesas não tem mimimi. Em Adore Life, dores de cotovelo, DRs e sexo ilustram manifestos que levam o pós-punk de origem do grupo a novas dimensões. Depois da estreia em 2013 mandando o mundo ficar quieto com o furioso Silence Yourself, agora elas miram o coração. Com mais jeito do que força na combinação vocal-guitarra-baixo-bateria-e-só, mas empregando a mesma intensidade para acertar o alvo em seus diferentes estados.



O amor das Savages engloba mudança, evolução, escolhas, entrega, “o seu direito de pensar pensamentos inaceitáveis”, como a própria banda descreve o sentimento que permeia o álbum. No som, essa ciranda de emoções vai emanando Bauhaus aqui, Wire ali, Siouxsie & The Banshees acolá, entre outras boas influências do período que separa o punk da new wave na virada da década de 1970 para a de 1980. Um pouco de cada, jamais em uma música inteira, apenas o suficiente para construir uma identidade: a pulsão de “Evil” ou de “I Need Something New” parece algo já ouvido; a forma como se desenrola, não.



O completo controle dos climas – do desespero à euforia, passando pela placidez e caos – de “The Answer” e de “T.I.W.Y.G.” chega ao ápice em “Adore”. A quase faixa-título ferve em banho-maria até transbordar perguntando se você adora a vida, em uma eloquente demonstração de que o romantismo da banda transcende o papo eu & você, nós dois. É aquele que rima com idealismo. Marketing ou não, o principal atributo das Savages é a crença no poder da Arte. Elas são tão convincentes nisso que, em tempos de despretensão estética e cinismo exacerbado, fazem a gente acreditar também.

O som do verano
Em noite de (nenhum) medo e (pouco) delírio em Balneário Camboriú, este colunista foi exposto ao que os argentinos ouvem no verão. Nada de Ibete Sangalo, tampouco Wesley Safadón, pelo menos para parcela substancial dos hermanos que invadem as areias da Praia Central com um som a tiracolo. Estava na Avenida Atlântica, em algum ponto entre a praça Tamandaré a Rua 1.500, quando o reggaeton começou a bater. Confira os Top 5:

1 | “Fanatica Sensual”, Plan B



2 | “Como Yo le Doy”, Pitbull ft. Don Miguel



3 | “Hasta la Luna”, #TocoParaVos



4 | “Candy”, Plan B



5 | “Cae el Sol”, Los Bonitos



 ANÇAMENTOS



Tartakingdom Reggae Mix Tape Vol. 2 – O advogado (?!) Marcelo Tonelli mais uma vez defende os amantes do reggae contra as tentações da Babilônia com um argumento infalível: uma seleção mundial de artistas do gênero em um disquinho feito em Florianópolis. Dos haoles, destaque para as duas faixas defumadas do jamaicano Perfect Giddimani, “Cyan Cool” e “Where It All Began”. O acento nativo diz presente com o herói local Zabeba dando seus tapinhas solo (“Jah Abençoe”) ou com Jezux Raggaman (“Bem-vindo à Selva”). O serviço completo você encontra aqui.



(coluna publicada hoje no Diário Catarinense)

20160119

Com rigor não há misericórdia

Nos últimos anos, Lobão só foi notícia por conta de suas posições políticas. Os poucos singles que gravou reforçavam a obsessão com o tema, rebatendo alguma crítica aqui, provocando algum desafeto ali. No apagar das luzes de 2015, o artista enfim lançou um álbum de inéditas, algo que não fazia desde 2005. Como é de praxe em tudo o que o envolve, O Rigor e a Misericórdia foi precedido de toda uma retórica promocional. “Meu primeiro disco sem maneirismo algum, sem procurar nada externo, sem medo de ir buscar nas minhas profundezas a minha verdadeira essência”, escreveu sobre o processo solitário de criação e gravação.



Na campanha de financiamento coletivo na internet para viabilizar o trabalho, Lobão anunciou que seria sua resposta aos artistas que duvidam de sua capacidade e de sua indignação, “uma prova categórica de pertencimento a este país, sua história e sua cultura”. Uma das recompensas a quem contribuísse com no mínimo R$ 20 era o convite para um grupo fechado em uma rede social formado por “pessoas renomadas falando sobre política, música e o momento que o Brasil vive”. O nome surgiu de um ensaio do filósofo Olavo de Carvalho, um dos neoamigos cultivados em sua guinada à direita.

Mesmo assim, Lobão quer que seu 17º trabalho seja avaliado pela música, não pela postura ideológica. De fato, apenas duas faixas – “A Marcha dos Infames” e “A Posse dos Impostores” – atacam diretamente o governo. As demais filosofam sobre a morte (do pai em “Ação Fantasmagórica”; da cunhada em “A Esperança É a Praia de um Outro Mar”), a vida, o universo e tudo o mais. A rigor, é um disco que revisita sonoridades da década de 1970 e as traduz de um jeito muito peculiar. Tendo misericórdia, o melhor que se pode dizer é que, com seu histrionismo, Lobão lembra um Rogério Skylab sem senso de humor.



3 discos que você não ouviu em 2015

Astronauts, etc., Mind Out Wandering
| Como o patrão Toro Y Moi, em seu projeto solo o tecladista Anthony Ferraro apresenta cadências e timbres influenciados pelo soft rock e soul branco setentista – pense em Steely Dan ou, para citar um colega contemporâneo, Mayer Hawthorne. Embarque na espaçonave com “I Know”, “Shake It Loose”ou “If I Run”.



Frevotron | DJ Dolores, Maestro Spok e Yuri Queiroga encaram o desafio de trazer o ritmo de seu Pernambuco natal – o centenário frevo – para a atualidade. Para ajudá-los na missão, convocam Otto, Jorge do Peixe, Lira e MC sombra, entre outros. Nem sempre dá resultado, mas quando funciona é uma beleza. Disponível para download gratuito aqui.



Frabin, Real | Em paralelo ao Rascal Experience (uma das boas novidades da cena catarinense), o guitarrista e vocalista Victor Fari investe em um indie pop caprichado, no qual há lugar até para duas canções em português, “Em Vão” e “Desabrigo”. Embora peque por uma certa falta de originalidade, isso é a última coisa que incomoda os fãs do estilo.



(coluna publicada hoje no Diário Catarinense)

20160112

Camaleão às avessas (ou Eu tenho uma camiseta escrita ch-ch-ch-ch-changes)


Em uma de suas músicas mais emblemáticas, David Bowie canta que nós podemos ser heróis apenas por um dia. Mais do que impor uma restrição, o verso embute uma espécie de apelo: que sejamos heróis nem que apenas um dia. Pois o artista morto no domingo foi herói por quase 50 anos. Ou melhor, anti-herói. Desde 1969, ao lançar o single Space Oddity para coincidir com a chegada do homem à lua, ele pautou sua trajetória pela inquietude e pela inadequação. Principalmente, por uma percepção sobre-humana para antecipar o espírito do tempo – e partir para outra direção assim que o mundo embarcasse em sua onda.

Vem daí o clichê de associar Bowie a um camaleão. Só se for às avessas. O réptil, conforme aprendemos no primário, muda de cor para se adaptar ao ambiente. Bowie mudava justamente para destoar do cenário. Em plena conquista espacial, desafiou o coro dos contentes com uma visão sombria (nem por isso menos bela) sobre a posição insignificante da Terra ante o universo. O que parecia somente uma forma de um artista iniciante atrair atenção revelou-se uma vocação natural. Quando a juventude despertou do sonho e viu que o arco-íris era cinza, em vez de gabar da profecia ele preferiu radicalizar.

Em 1972, Bowie Bowie transformou-se em Ziggy Stardust, um alienígena que desconhecia as convenções terrenas: era homem e mulher, gay e hétero, déspota e libertador. Em suma, um estranho que poderia servir de referência a qualquer um que se sentisse à margem. Imagine o efeito devastador dessa abordagem para uma juventude sem nenhuma ilusão à qual se agarrar. Ziggy virou superstar. E então Bowie o retirou de circulação, inaugurando o método com o qual iria manipular o pop: inserindo-se em um contexto que não era a seu, tanto geográfica quanto artisticamente, apropriando-se dele e, em seguida, destruindo o que havia criado no percurso.

Sem limites para a criatividade, Bowie transitou entre Nova York, Los Angeles, Berlim; rock, R&B, música experimental. Foi um cara maluco (“a lad insane”, disfarçado como Alladin Sane em seu disco de 1973) e o magro duque branco (“thin white duke”, persona vinculada ao álbum Station to Station, de 1976) até adentrar pela década de 80 sendo ele próprio. E, mesmo dispensando alter-egos, encarnou novos papéis na pele de um astro radiofônico – vide “Modern Love”, “Let’s Dance”, “Blue Jean” e outros hits dessa época – e como bandleader com o malfadado Tin Machine.

De lá para cá, já consolidado no panteão dos gigantes, Bowie roçou a cibercultura (Outside, de 1995) e se manteve gravando com certa regularidade. Nenhuma obra-prima diante de suas experiências estéticas da década de 70, é verdade; mas também nenhum trabalho que não fosse digno de estampar seu nome na capa. The Next Day, em 2013, sinalizava para uma fase mais contemplativa, quase uma reflexão a respeito do fim inevitável. O recém-lançado Blackstar aprofundava-se por esse caminho, até Bowie atender o chamado para voltar a flutuar acima do azul do mundo sem poder fazer mais nada.

***
Passei o réveillon vestido com uma camiseta escrita “ch-ch-ch-ch-changes”, em alusão a um dos muitos hinos dele que me acompanham até hoje. Já havia decidido que o primeiro disco sobre o qual falaria na coluna seria Blackstar, seu novo trabalho. O ano começaria sob o signo de Bowie. Só não imaginei que seria desse jeito. Nos vemos na poeira cósmica, Major Tom.

(coluna publicada hoje no Diário Catarinense)

20160105

5 livros que embalaram as estantes em 2015


A retrospectiva do ano continua, desta vez destacando livros relacionados à música. Muitas obras com a trajetória de importantes personagens e fatos do pop nacional foram abortadas ou adiadas por causa da lei que ameçava biógrafos com processos judiciais. Com a derrubada da censura pelo Supremo Tribunal Federal, a tendência é de que venham à tona e tornem a disputa mais acirrada no final de 2016. Por enquanto, além dos cinco títulos listados abaixo (em ordem alfabética), é imperioso destacar a história do Kraftwerk – Publikation, recentemente abordada neste espaço – e conferir menções honrosas a John Lennon em Nova York – Os Anos da Revolução e a Como a Música Ficou Grátis. Boa leitura!

Cowboys do Asfalto – Música Sertaneja e Modernização Brasileira, Gustavo Alonso | Finalmente uma obra à altura do sucesso que o neossertanejo faz entre a juventude. O estilo é inserido na linhagem da música caipira, aproximando dois mundos que possuem raízes em comum, mas alcances diferentes. Para compreender o significado disso no Brasil atual e descobrir como a percepção de bom e mau gosto tem sido construída, o autor analisa a relação do gênero com rock, axé, MPB, pagode, bossa nova e tropicalismo.

Crime Perfeitcho – Rock Anos 1980, Mundo 48, Rodrigo de Souza Mota | Não é porque o rock de Florianópolis (e também de Santa Catarina) seja uma interrogação no mapa musical brasileiro que não mereça ter seus protagonistas lembrados. Esta tese de doutorado que virou livro traz os guerreiros que driblavam a falta de dinheiro e de estrutura para viver a aventura de ter uma banda na provinciana capital de 30 anos atrás. Acompanha CD que desenterra faixas de ícones locais como Decalco Mania, Tubarão e Expresso.

Le Freak – Autobiografia do Maior Hitmaker da Música Pop, Nile Rodgers | Apesar da pretensão do título, não dá para duvidar de um cara que compôs, produziu e/ou tocou com nomes tão díspares como Madonna, David Bowie, Daft Punk e até Jota Quest. Com outros artistas ou à frente da banda Chic, Nile Rodgers conheceu como poucos as recompensas e armadilhas do showbiz. Negro e filho de viciados em heroína, o futuro guitarrista tinha tudo para acabar na sarjeta – até a música transformar seu destino.

A Garota da Banda, Kim Gordon | Com o fim do casamento de 27 anos com Thurston Morre e, por tabela, da história que ambos construiram junto a bordo do Sonic Youth, a metade feminina do ex-grupo olha para trás. Fala da infância, dos pais distantes, da timidez, do irmão esquizofrênico, da paixão pelas artes, da maternidade, da terapia para adiar o divórcio. Entremeadas com passagens relacionadas à cena alternativa do rock nos Estados Unidos, suas memórias e reflexões expandem o interesse do livro.

A Noite do Meu Bem – A História e as Histórias do Samba-Canção, Ruy Castro | O mestre que já escreveu sobre a bossa nova agora se debruça sobre o período anterior, quando a proibição dos cassinos na década de 1940 fez com que os músicos cariocas migrassem para bares e boates menores para apresentações intimistas. Lançado no final do ano e ainda sendo devorado pela coluna, apresenta em ritmo de romance a época em que a música brasileira era muito mais discreta e, nem por isso, menos ambiciosa do que a atual.

(coluna publicada hoje no Diário Catarinense)