20080427

Quando música é só um detalhe

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(Reportagem publicada na revista Frente #2, junho de 2002)

Hoje rolou a terceira e última noite da 16
ª edição do Abril Pro Rock. Apropriadamente separados das duas datas anteriores (11 e 12/4), tocaram Helloween e Gamma Ray. Como combinado, segue a terceira e última cobertura que fiz do festival. Na bowa, o evento já foi mais seletivo. Com as bandas que contratava e com os jornalistas que levava para o Recife.

***


Do exterior, viriam os ingleses do Charlatans e The Mission, os americanos Stephen Malkmus e Karsh Kale, o argentino Ataque 77 e o francês Digicay. Do Brasil, Rodolfo em sua estréia pós-Raimundos, Tom Zé voltando ao Recife depois da recepção avassaladora que tivera ali mesmo havia dois anos, Pato Fu exibindo hits para bancar o headliner e Sepultura liderando a tradicional noite do metal. Da cidade, velhos conhecidos (Mundo Livre S/A), remanescentes do ano anterior (Textículos de Mary, Bonsucesso Samba Clube) e a nova geração (Mombojó). A programação do Abril Pro Rock estava praticamente fechada quando seu organizador, Paulo André, foi assistir ao ensaio de uma banda no primeiro sábado de março.

No mês seguinte aconteceria o festival, menção obrigatória na história do pop nacional desde que de seus palcos saíram os tambores que acordaram o resto da nação para a música nova feita na capital pernambucana, no começo da década de 90. Cumprindo seu destino, o evento continuava trazendo artistas estrangeiros pela primeira vez ao País e popstars brasileiros consagrados ou que ali iniciaram sua escalada. Revelar talentos para as gravadoras deixara de ser o atrativo principal, embora o espaço para os artistas desconhecidos locais estivesse assegurado. Às vésperas de sua décima edição, o Abril Pro Rock não era o maior nem o melhor festival do Brasil. Sua fama residia, principalmente, na gênio e na mística de Chico Science; na variedade de seu elenco (de eletrônico a regional e demais rótulos atribuídos pela crítica); e no público, este sim merecedor de todos os superlativos positivos a seu respeito.

O Abril Pro Rock tinha de ser diferente – pense em vibração, energia, astral e outros conceitos abstratos usados para ressaltar (ou salvar) o que sai das caixas de som. Parte desse algo mais passava por aquele sábado. Sonali (irmã de Paulo André), Fred 04 (Mundo Livre S/A) e Luciano Meira (pai de dois integrantes do Mombojó), todos com filhos estudando no Instituto Capiberibe, deram a dica: “Na escola há uma banda formada por uns meninos que você deveria ver”. O organizador chegou no ensaio sem grandes expectativas. “Se esses moleques tocarem direitinho, vou convidá-los para abrir o festival.” Eles tocaram direitinho. O cartaz e as filipetas (com arte de Angeli) podiam ser impressos com a programação definitiva. Entre as atrações do dia 21 de abril, “participação especial: Os Psicopatas”.

Vinte minutos no palco secundário do Centro de Convenções do Recife, sem direito a cachê, para mudar a vida de cinco garotos. Os Psicopatas tocaram cinco músicas pendendo para o hardcore (normal para a idade e a técnica). As duas primeiras, “Ela” e “Azar”, bastaram para atiçar seus fãs. Colegas de classe, crianças de menos de um metro e meio tentando pogar com as letras na ponta da língua, a maioria com camisetas pretas da banda. Os pais, igualmente uniformizados, circulavam nervosos pela frente do palco com câmeras nos ombros a registrar a proeza dos herdeiros. O vocalista anuncia “Escola” e a dedica à professora de matemática. Urros infantis na platéia, amplificados com o verso “equação é coisa de mamão” (mamão = pateta). Confiante, o garoto diz que a próxima é para aqueles que acham que eles não sabem tocar: “Pode Vir Quente Que Eu Estou Fervendo”, de Erasmo Carlos. Para fechar, “Ela” novamente. Marcante para os estranhos, inesquecível para os envolvidos.

Os três acordes que eram encanto nos Psicopatas viraram enfado com Os Subversivos. Não gravassem por um selo chamado Marx Not Dead (Marx Not Dead!), com logotipo trazendo o hirsuto autor de O Capital envolto em estética punk, ou cunhassem o hino “Esmague o PFL” (reivindicação plenamente compreensível, sobretudo em Pernambuco), e não restaria nada para destacar no grupo. Ah, sim: inspiram-se “na construção de uma postura cultural de ação e conscientização aliadas a uma prática politizada que encontre nos movimentos sociais seus maiores ecos e, na música e comportamento, sua maior vanguarda!”. Com esse papo xarope, não é de se espantar que o comunismo foi varrido do mapa. Para serem mais anacrônicos, aos Subversivos só falta o monograma do Partidão bordado nas cuecas.

No palco principal, coube ao The Mission iniciar o Abril Pro Rock. No estágio atual, é impossível escrever sobre a banda do guitarrista e vocalista Wayne Hussey e do baixista Craig Adams sem citar Bacalhau. Por mais esquisito que pareça, o ex-baterista do Rumbora, que substituiu o titular impedido por problemas no visto na vinda anterior do grupo ao Brasil (em 2000), é a alma do grupo. Repetindo a dose, ele esbanjava empolgação - e, em alguns casos, conhecimento das músicas - não mais encontrada nos integrantes originais. Totalmente deslocado do espírito do festival, o Mission cumpriu sua profecia macabra: o evento perdeu mais do que ganhou com a sua presença. Perdeu porque, a despeito do argumento da organização, “pela primeira vez no Nordeste”, não foi para abrigar oitentistas decadentes que criou-se o Abril Pro Rock.

E ganhou pouquíssima coisa, porque pelo menos 90% do público não estava lá motivado por “Wasteland” ou “Beyond The Pale”. Nos bastidores, os Psicopatas resumiam a sensação reinante entre as cerca de 4 mil pessoas. “Quem são esses caras?”, perguntava o vocalista Bernardo. Aos 11 anos, ele não passava de um sonho erótico de seus pais enquanto o Mission já entrava em rota descendente. Maravilhado pela súbita e efêmera fama, o garoto não esboça nenhuma reação com “Severina”, o maior hit do grupo de Bacalhau. “Já dei seis entrevistas hoje”, calcula. À sua volta, Diogo (guitarra, 13 anos), André (baixo, 11 anos), Chico (guitarra, 13 anos) e Arthur (baixo, 11 anos) falam ao mesmo tempo. Com sinceridade desconcertante, contam que já fizeram uns 30 shows, “mas só uns cinco prestaram” e que essa é a primeira vez que vêm a um Abril Pro Rock, “e logo para tocar”, sem nenhum traço de provocação aos milhares de marmanjos que venderiam a alma ao diabo para estar no lugar deles.

Na melhor tradição do rock’n’roll, Bernardo é o sex-symbol (é o mais alto do grupo, quase 1,60m) carismático e comunicativo, e Diogo é o guitar hero caladão, largado (por cima da camiseta, vestia uma camisa rasgada na manga), sempre com a expressão desconfiada no rosto. As descobertas se sucedem. O vocalista e o baixista são irmãos gêmeos nada semelhantes e estão na quinta série, “em salas diferentes”, assim como o baterista, “um pouco atrasado”. Os dois guitarristas estão na sétima. Diogo, André e Bernardo têm aulas de violão com o mesmo professor. A banda surgiu em 2000, mas estabilizou essa formação em 2001. Os cinco espoletas vão posar para fotos e o pai de Diogo, Paulo Roberto Guedes conta que dar instrumentos foi uma idéia para ocupar os moleques hiperativos. “Diogo e Arthur eram os mais atacados.”

Médico dermatologista, Paulo Roberto não vislumbrava a burocracia que enfrentaria para que seu filho tocasse em um festival, apesar de acompanhado pelo pai. Teve de pedir autorização ao Juizado de Menores, álvara dos bombeiros dando conta das providências contra incêndio do Centro de Convenções, descrição das saídas de emergência do local e, por fim, um documento ao Ministério Público comunicando o que os meninos iam vestir durante a apresentação (laconicamente preenchido com “tênis, jeans e camiseta”). “Aí, o escritório de advocacia de uma tia dos gêmeos entrou no circuito”, lembra. “Mesmo assim, da entrada até o deferimento, levou uma semana”, diz ele, que ficou três dias sem trabalhar, em função da papelada. Como troféu, tira do bolso da camisa e brande a autorização do Juizado de Menores gargalhando satisfeito.

Alheios ao drama, os candangos do Prot(o) reativavam o palco 2 com suas guitarras honestas representando o única banda nova do festival que não era do Recife. A tempo de não interromper o gigantesco solo que encerrou o número dos brasilienses, o forró debutou no Abril Pro Rock sob a tenda do Sopa na Cidade, sucessor do saudoso Calcinha Preta - o barraco de dois andares armado em um dos cantos do Centro de Convenções, que servia como boate, consultório sentimental e câmera de vapor. Nesse ano, o negócio estava organizado, com transmissão ao vivo pela FM e terraço onde um Landau sem portas e aberto ao público ficava como sentinela. Não dá para responsabilizar o neon da rádio Cidade, que veicula o programa apresentado por Roger de Renor (o Rogê de “Macô”, de Science), muito menos na zabumba, triângulo e sanfona que animavam os intervalos das bandas, mas o fato é que o espaço não cativou.

Rodolfo fez a atenção retornar para os grandes shows. À tarde, no hotel em Boa Viagem, sua trupe destacava-se pela presença de um jovem senhor, de camisa pólo, calça, sapato e boné, com o rabo de cavalo e uma protuberância abdominal expostos. Misturado àquele bando vestindo roupas XL, tatuados e/ou furados com piercings, o cidadão despertava suspeitas de que talvez fosse um ministro da igreja a qual Rodolfo pertence, caindo na estrada do rock para atestar o comportamento do novo fiel. Prestes a marcar sua volta aos palcos, o vocalista suscitava outras dúvidas. Tocaria músicas de sua ex-banda? Sua empatia com o público seria suficiente para esquentar um show sem hits? Vamos nos acostumar com ele? Não, não e não. Diogo queria mais respostas. “Você, que é jornalista, pode contar que a gente não espalha: ele pirou, né?”

Também não, guri. Quem entrevista Rodolfo desde 1994 nota que ele nunca se mostrou tão convicto e feliz. Se isso vai se traduzir em sucesso são outros quinhentos, mas a coragem de abandonar o posto de símbolo de uma das bandas-símbolo dos anos 90, com bajulação e discos de ouro garantidos, para viver o que acredita não deve ser menosprezada. Rodox, a banda, armou-se do peso necessário para que não se levante a mínima hipótese de que Cristo abomina hardcore ou new metal. Duas guitarras (às vezes uma terceita, a cargo do produtor Tom Capone), baixo (pelo ensandecido Patrick Laplan, ex-Los Hermanos), bateria cavalar (esmurrada por Fernandão, do Pavilhão 9) e DJ. “Quem Dá Mais” introduziu o espetáculo, com o público anestesiado pelo impacto de ver o novo Rodolfo.

Ao contrário do que se cogitava, o tal senhor do lobby do hotel não era um pastor. De bermudão, camiseta e o mesmo boné, ele pulava ao lado do vocalista, fazendo os raps de apoio. Espere aí: é Vágner, ex-Peter Perfeito! Rolou o primeiro discurso da noite. O que nem Diogo, com a camiseta autografada por seu ídolo, nem os fãs e muito menos a imprensa precisavam saber é que as falas de Rodolfo constavam do set list. No papel com a relação da músicas pendurado na mesa de som, um “blá-blá-blá” (sic) escrito antes de “Estreito” e de “Dia Quente” apontavam o momento em que o vocalista se dirigiria ao público. A reação da platéia foi mais de estupor do que de aprovação, exceto na radiofônica “Olhos Abertos”, no “oooô” de “Continuar de Pé” e na versão de “Exodus”, de Bob Marley. Vágner, visivelmente fora de forma, não saía do chão. Sua impulsão atingia, no máximo, 2 centímetros.

Finda a catilinária de Rodolfo, os Textículos de Mary invadiram o palco menor. Mais coeso do que no Abril Pro Rock do ano passado e lançando seu disco no festival, o grupo esclareceu porque havia sido posto por último: seus vocalistas costumam simular coitos anais com o microfone, e fica chato pedir para alguém usar aquele equipamento na seqüência. Durante os preparativos do Pato Fu, Bernardo gabava-se por ter todos os discos do quarteto mineiro. Até o Rotomusic de Liquidificapum, o primeirão, independente, lançado pelo selo Cogumelo? “Não”, decepcionou-se o vocalista dos Psicopatas. Sua coleção não está completa, mas em compensação ele conseguiu entrar no camarim da banda, onde o guitarrista John perguntou quem ali gostava de funk. Ninguém respondeu. “Então como é que vende tanto?”

As perguntas de John continuaram no show. “É verdade que a Tiazinha cantou ‘Eu’ na Casa dos Artistas?” Novamente, ninguém viu – e, se viu, ficou com vergonha de confessar que dava ibope para o reality show do seu Sílvio. Com sucessos que já enchem os dedos de uma mão, o Pato Fu só pecou nas muitas pausas entre uma música e outra, simpatia desnecessária após se permanecer de pé por mais de seis horas. Ao lado do palco, na passagem que dá acesso ao backstage, o pai de um dos Psicopatas batia boca com um segurança para entrar sem a pulseirinha protocolar. “Mas o meu filho é um artista que tocou aí!”, protestava, sem êxito.

No sábado, os Psicopatas não foram vistos circulando pelos bastidores do Centro de Convenções. Perderam de ver Derrick Dorner, o popular Fumaça, vocalista do Sepultura, indo e vindo todo pimpão com a camiseta que liberava o ingresso o camarote da Kaiser. Pela primeira vez, houve um rega-bofe VIP no Abril Pro Rock, no qual a elite recifense divertia-se observando os maus modos da malta roqueira. Na sexta, o papel de “astro-entre-nós” fora desempenhado pelo príncipe das trevas Wayne Hussey. Acompanhado da mulher paulistana, Cíntia (ambos com a camiseta da cervejaria), e de mudança para São Paulo, o líder do Mission habituava-se com os rituais do showbiz silvícola, como acenar para os darks e posar para revistas de celebridades.

Na noite da sutileza zero, coube ao Decomposed God inaugurar as atividades, antes das 6h da tarde. Com 11 anos de carreira consagrados ao death metal, a banda ganhou a primazia por ter tirado o segundo lugar em um concurso promovido no programa Soparia na Cidade para escolher artistas locais. É de se imaginar com o nível dos grupos que não obtiveram classificação. O Ataque 77, no palco principal, por um breve instante deu a pinta que faria o melhor show do dia 22 quando tocou uma versão de “Perfeição” (Legião Urbana), quase um bubblegum diante da podreira dominante. Não eram nem sete da noite e já se contava muito mais gente do que no dia anterior, cerca de 8 mil pessoas. No bis, os argentinos entoaram uma versão ramônica de “Do You Wanna Dance” (“Queres Tu Bailar?”), desfazendo a impressão favorável.

O Prole, vencedor do referido concurso, seguiu a toada com seu choque de guitarras e percussão que (desculpe o trocadilho) não repercutiu. Culpa do Krisiun, um trator que levou a maioria do público para a frente do palco onde ia se apresentar. Os integrantes do Decomposed God, por exemplo, sentiam-se muito mais orgulhosos por tocarem no mesmo evento que o trio gaúcho do que com o Sepultura. Tudo na banda é extremo: os vocais compostos por um constante pigarro; os dois bumbos acionados sem interrupção; o futum com o qual impregnaram o camarim. Com muita moral no exterior, o Krisium (informação relevante: o nome do grupo significa “Mares da Abominação” em latim) revelou que a capital pernambucana também poderia ser chamada de Hellcife (ai!). Que o digam os berros de “Black Force Domain” pedindo pela faixa-título de um disco lançado pela gravadora alemã Gun Records, em 1995.

Os Cachorros encharcaram um pouco mais a camiseta com um pula-pula movido a rap metal e aos temas “skate, violência, atitude e diversão”, como outros 800 grupos que vagam por aí. Mais uma vez, o povo preferia se espremer para esperar o Sepultura. Saudados como heróis, Igor, Andreas, Paulo Jr. e Derrick sacaram “Refuse/Resist” logo de início, para amansar a turba. Um balão com a bandeira de Pernambuco (que virou ícone pop no último Carnaval), jogado pelo público, desviou os olhares do que acontecia no palco. Ia da direita para a esquerda, com investidas para cima de Paulo Jr e Derrick. No fosso, seguranças davam uma de goleiro, impedindo que o balão participasse da banda. Então uns moleques, qual piranhas ensandecidas, agarraram o instruso e o socaram até a morte. Yeah!

Passada meia hora de show, o Sepultura necessitava tocar urgentemente outro hit que até os poseurs conheciam, sob o risco de esfriar o set. Não, não se está falando de “Biotech Is Godzilla” ou da inédita “Corrupted” (quebrada, parecida com as músicas dos imitadores de Sepultura). Finalmente, vêm “Territory” e “Roots Bloody Roots” para exaurir a última reserva de disposição. Chamam o baixista e vocalista do Krisiun, Alex Camargo, para trucidar “Iron Fist”, do Motorhead. Acostumado a berrar empunhando o seu instrumento, ele não sabia onde enfiar as mãos, ora tocando air guitar, ora air bateria, ora simplesmente esmurrando (sem muita firmeza) o ar. No camarote da Kaiser, os convivas deixavam a beirada do mezanino à esquerda do palco, local de visão privilegiada. Cansaram. E, afinal, eram apenas 11h da noite. Ainda dava tempo de se divertir em outro lugar.

Para a última noite, o Abril Pro Rock reservou atrações capazes de espantar o cansaço acumulado de sexta e sábado. Teoricamente, um público não afeito a tribos ou guetos curtiria regionalices pop, engajamento light e gringos com prestígio indie. Na prática, o que se viu foram parcelas distintas para cada segmento. Parte pequena dos cerca de 4 mil pagantes registrados na bilheteria do domingo testemunhou o nativo Bubuska tirar som de um tamborete de madeira, em forma de pirâmide, com dois pedais e uma engrenagem que permitia acionar vários objetos de percussão simultaneamente, o “tamburetom”. Ou o Chá de Zabumba emular seu forró pé-de-serra, com destaque para o sacana hit instantâneo “A Mulé de Tatá” (“Tatá tá aí/ Não, Tatá não tá/ Mas a mulé de Tatá tando/ É o mesmo que Tatá tá”).

Inclua Bernardo, dos Psicopatas, fora dessa: o vocalista perambulava pelas cercanias do famigerado camarote, reproduzindo o clichê do rock’n’roll que reza que só se cai nessa para beber de graça e pegar a mulherada. Dos novatos, menção mais do que honrosa para as experiências do Bonsucesso Samba Clube (não tão novo assim, pois havia tocado no Abril Pro Rock de 2001) com bossa nova com samba com eletrônica discreta, na medida certa. E, realmente novo, o Mombojó, recifenses filhotes de Mundo Livre S/A com DJ Dolores, guitarra e baixo lisérgicos com uma ou outra traquitana digital. Outra fatia da audiência esperava com avidez pelos ícones Stephen Malkmus e Charlatans. O primeiro apresentou-se às 6h, com as pessoas chegando. Ignorou foquinhos pedindo canções de sua ex-banda e privilegiou seu disco-solo. No final, rendeu-se e tocou “In the Mouth a Desert”, do Pavement.

Uma terceira parte da platéia queria panfletar com Tom Zé e Mundo Livre S/A. A banda de Fred 04 cometeu o show de sempre, sem grandes exclamações nem desapontamentos (aliás, por estar em casa, recebeu um calor maior do que o habitual). Por sua vez, o adorado Tom Zé fez exatamente o que dele se esperava: pregou contra o imperialismo, armou seu teatrinho, detonou os ianques e fundiu a cachola do fã dos Charlatans. No público, uma bandeira da Palestina tremulava tranqüila, depois que o baiano mandou parar com “essa porra de balão”. Para delírio coletivo, seu guitarrista tirou “Smoke on the Water”. Tom Zé mandou parar, para esculhambar o Tio Sam – e iniciou uma música que citava o hino do Deep Purple, Stones (“Satisfaction”) e Beatles (“Day Tripper”) com “Meu Limão Meu Limoeiro”. Nem bem acabou o show, sentiu-se mal nos camarins (Emoção? Calor? Macrobiótica? Tudo isso junto?) e foi direto para a UTI, escrevendo mais um capítulo de sua biografia envolvendo Recife.

O nicho indie, encafifado pelas estripulias do tropicalista, enfim veria os Charlatans. O engraçado é que, para essa rapaziada, o clima é uma eterna meia-estação. Faça chuva, faça sol, lá estão eles com seus jeans, camiseta e um casaco por cima. Com menos de três músicas, o vocalista Tim Burgess já abandonara o figurino sufocante, tirando sua jaqueta. Com reflexo no cabelo e um falsete para lá de liberado, o inglês custou para compreender que a única que todo mundo conhecia era “The Only One I Know”. Quando rolou essa, não havia mais nada o que fazer ali, a não ser piadas cretinas. Ao Soup Dragons, ou melhor, Charlatans, faltou um clímax mais duradouro. Ao Stone Roses, ou melhor, Charlatans, faltou a identidade. Ao Oasis, ou melhor, Charlatans, faltou a sinergia com os pernambucanos.

A essa altura, o público não ultrapassava 3 mil pessoas. Burgess declarou que a próxima (“You’re So Pretty, We’re So Pretty”) iria para uma garota que tinha conhecido “ontem à tarde na praia” – a única admiradora que abordou o grupo na areia de Boa Viagem. Veredito: com essa dancinha de ombrinhos arqueados, mãos no bolso e passos desencontrados, ele não vai conquistar ninguém. Diogo teve melhor sorte. Na tenda da Soparia, me apresentou duas tietes dos Psicopatas, ambas com camisetas da banda. “Somos fãs dele”, entregaram-se as candidatas a groupie, beijando-o em cada uma de suas bochechas. Definitivamente, o Abril Pro Rock não se trata apenas de música. Ou se trata de música, sim, mas como um passaporte para prazeres mais profundos. Imagine como foi a segunda-feira no Instituto Capiberibe.

A procrastinação sempre vence no final

“Lamentamos, mas sua conta foi desativada.”

Começava aí mais uma página nebulosa na crônica mundana pós-internet. Eu estava conectado, mas não conseguia enviar ou receber e-mails e – parece perseguição – renovar este blog.

O primeiro impulso foi achar que errei a senha. Repeti o processo. Se fosse caixa automático de banco, teriam cancelado meu cartão, de tanto que tentei. Cliquei na interrogação sob a mensagem estarrecedora. Era um questionário. Marquei uma, duas, três opções até chegar em um campo onde pudesse contar o sucedido. Aleguei que nunca desrespeitei os termos de conduta do serviço, que tinha um monte de coisa arquivada ali e que a responsabilidade por eu receber uma carrada de spans com assuntos como (segue na transcrição fonética para burlar os mecanismos de busca) “tin slãts” ou “iang bãt-fãqued” era deles, não minha.

Recebi a seguinte resposta automática: “Para sua [minha] segurança, nós [eles] podemos desativar temporariamente sua conta se nosso [deles] sistema detectar uso anormal. Pode levar entre um minuto a 24 horas para seu acesso ser reativado, dependendo do comportamento que nosso [deles] sistema encontrar”. Se eu achasse que o acesso não deveria ser desativado, um link ao pé da mensagem apresentava-se como ombro amigo. Acreditei. Marquei uma, duas, três opções (diferentes do primeiro formulário) até chegar em um campo onde pudesse contar o sucedido (igual). Recebi outra resposta automática.

Mandei um e-mail para a minha conta desativada. Voltou, claro: ela estava desativada. Pensei em deixar um comentário aqui explicando o patético da situação. Eu não conseguia publicar nada como “administrador”, mas o que eu escrevesse como “leitor” iria para o ar sem intermediários. Aliás, a proposta poderia ser esta, mesmo quando (e se) tudo voltasse a funcionar nos conformes. O post não importa, o verdadeiro conteúdo está nos comentários. Sei lá, de repente acabava até criando uma subcultura. Atenção, pauteiros.

Pelo MSN, avisei três amigos da minha condição de banido virtual e dei por encerrada a minha missão com aquele login. Teria de fazer tudo de novo. Como a posterior encheção de saco era previsível e inevitável, resolvi não me precipitar. Pró-atividade só serviria para despertar a úlcera velha. Relaxado, contemplei o limbo digital. Não havia tempo, não havia dor, não havia nada. Apenas eu, mergulhando no vazio qual um Gilgamesh binário – e sem Enkidu oferecendo-se para descer ao inferno em meu lugar.

No final da tarde de quinta-feira, tentei de novo, mais por inércia do que na fé. Tinha voltado. Informei os únicos que sabiam. Em termos práticos, o equívoco durou as prometidas 24 horas. Psicologicamente, porém, seus efeitos arrefeceram somente agora, três dias depois. Como eu disse (e o Daureza acompanhou a arenga passo a passo), algo se quebrou na minha relação com o Big G. Daí para a procrastinação, é um tapa. Ou dois tapinhas.

20080426

Camiseta nova para sair no sábado #6

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Um gesto magno para acalmar a malta

Isso aqui anda mais largado do que música do De Leve.

Não, eu não resolvi me manifestar apenas por meio de estampas de camisetas, embora daqui a pouco entre uma novinha para seu deleite.

Depois – se bobear, ainda hoje – eu conto o porquê. Por enquanto, só digo que de vez em quando dá até vontade de apoiar o senador.

20080419

20080412

Abril foi rock

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(Reportagem publicada na revista Bizz #191, junho de 2001)

O Abril Pro Rock inaugurou a sua nona edição envolto em incerteza. Nos anos anteriores, o festival contou com o apoio maciço dos governos estadual e municipal, o que o desobrigava um pouco de ter lucro de qualquer maneira. No dia 20 de abril de 2001, não. Vagava no ar a impressão de que, caso o evento não confirmasse as expectativas, essa poderia ser sua despedida. O problema representava também um teste: afinal, todo mundo não diz que esse é o evento musical mais bacana do país, adorado pelo público e pela mídia? Então, que ande com suas próprias pernas e mostre força como marca possível de sobreviver sem o aporte de dinheiro público.

A falta de grana ficava escancarada nos itens mais prosaicos, como o cenário do palco secundário. Ao fundo da embolada de PINTO & ROUXINOL e da auto-intitulada “primeira banda drum’n’bass do Recife”, o D. URB (que, diga-se, corria como hardcore), o que se via era o mesmo pano alaranjado do ano passado, só que com um “1” pintado sobre o último zero de “2000”. “Até poderíamos trocar, mas preferimos deixar assim para mostrar a situação”, justificou a produtora Melina Hickson. A solução foi cortar as gorduras e concentrar o parco dinheiro para as bandas. Antes que a discussão se alongasse, o festival iniciou de verdade com a NAÇÃO ZUMBI, colocando o remendo no cenário em sua devida proporção, a de um mero detalhe.

O povo (a essa hora, estimado em 7 mil pessoas) ainda estava entrando – no pique e no Centro de Convenções – quando uma das bandas responsáveis pela existência de tudo isso subiu ao palco principal. Pernambucano tocando pernambucano para pernambucano: abriram com “Quando A Maré Encher”, dos olindenses do Eddie, regravada no quarto disco da Nação Zumbi, Radio S.Amb.A. Claro, mandaram hits da lavra de Chico Science, como “Da Lama Ao Caos” e “Manguetown”, mas é importante salientar a nova fase. Sem o carisma do líder, o grupo se embrenhou por uma massa de groove, na qual o tambor continua batendo forte, cada vez mais costurado pela guitarra de Lucio Maia em “Lo Fi Dream” e “Arrancando As Tripas”.

De volta ao palco secundário, o BONSUCESSO SAMBA CLUB fazia as honras da casa. Roger Man (ex-baixista do Eddie) e quatro percussionistas agregados ao trio básico (baixo, guitarra e bateria) tocavam um samba do crioulo doido, daqueles que qualquer tentativa de catalogar vira bobagem, e o pessoal ia chegando. Terminaram o show e o pessoal ia chegando. Dali a poucos minutos, começaria o RAPPA, e o pessoal ia chegando. A banda foi anunciada e o pessoal ia chegando. Calor. Empurra-empurra. Tumulto. Ninguém estava preparado para tanta gente. Ninguém esperava que o primeiro show do grupo no Recife depois do crime cometido contra o baterista Marcelo Yuka teria tanta procura.

O ar pesado só contribuía para que o som do Rappa ficasse mais contundente. “Bum, bum, bum, o homem-bomba”... De uma espécie de sacada à direita do palco, avistava-se três cenários diferentes: primeiro, Yuka na cadeira de rodas, ao lado do fisioterapeuta, com a expressão distante, as pernas esticadas sobre o pedestal da bateria. À frente, a banda, com o tecladista Marcelo Lobato nas baquetas. Finalmente, o vocalista Falcão agitando incansável, sendo acompanhado pela multidão que se aproximava das 15 mil pessoas (recorde do evento) preenchendo todo o local.

A apresentação alternou sucessos com viagens instrumentais que esticavam as músicas com estilingadas nos neurônios. Como se fosse passada a mensagem e, em seguida, permitido um tempo para se pensar, refletir, absorver o impacto. Silêncio. Yuka é levado à cena. Fala contra os políticos e a violência e a favor do MST. A raiva que ele mostra (perfeitamente compreensível, aliás) é mais assimilada que o discurso. Ao lado, os integrantes do ASIAN DUB FOUNDATION sem entender patavina, assustados com a vibração que teriam de segurar.

Sem canções conhecidas no Brasil, eles tentaram contagiar a audiência na base da empolgação. A banda não parou um minuto, conduzida pelas corridas do guitarrista Chandrasonic e pelos pulos do baixista Dr. Das (ao que parece, o dono do pedaço, o Steve Harris deles). Nos vocais, dois moleques saltitantes substituindo Deedar – segundo o grupo, “ele está dando um tempo”. Sun J abandonava os teclados e dançava até a beira do público, só o programador Pandit G permanecia impassível. Tudo em vão: o público nem esperou as músicas mais fáceis do álbum Rafi’s Revenge, como “Buzzin”, “Naxalite” ou “Free Satpal Ram” (leia-se um Rage Against The Machine com batidas eletrônicas) para ir embora.

A metade da lotação que durou foi premiada com uma sessão de dub letal, baseada no repertório do disco Community Music (2000). Na lateral do palco, integrantes do Rappa, Raimundos e Nação Zumbi presenciavam a gravidade em torrente de “Riddim I Like” e “Colour Line”. Não por acaso, Canisso (dos Raimundos) e Lauro (do Rappa), dois baixistas, eram os mais ligados na performance do seu colega anglo-asiático. Já passava das três da manhã para o DJ AMON TOBIN desfilar seu set de drum’n’bass suave, jazzy, como informa o release. Para quase ninguém, ele inverter o processo a ponto de ameaçar as paredes de divisórias da sala de imprensa com suas freqüências.

Finda a noite, a sensação era de que dificilmente algo iria superar o banquete da sexta-feira. A dúvida foi dissipada com os americanos do QUEERS, a segunda banda do sábado (a primeira foi o DOLORES DEL FUEGO), que começaram com “Rockaway Beach”, homenagem a Joe Ramone: sai o congraçamento de estilos, entra o ritmo duro, reto. Veio o INFIERNO, quarteto carioca com a precisão do Helmet e versão cabeçuda de “Construção” (de Chico Buarque), que interessou até enveredar pelas covers de “Pet Semetery”, da banda do falecido no domingo anterior, e “Sabbath Bloody Sabbath”. A partir daí, a grande questão era que músicas dos Ramones seriam tocadas por RATOS DE PORÃO e RAIMUNDOS – “Commando” por um, “Blitzkrieg Bop” e “Surfin’ Bird” pelo outro.

Assim transcorreu o sábado do Abril Pro Rock, tradicionalmente reservado à música pesada e contando com a devoção das hostes nervosas. Exceção à batida quadrada somente no fim, com os Raimundos encerrando com “Reggae Do Manero” e citando “Liberdade Pra Dentro Da Cabeça”, do Natiruts. Às 11, com menos de 10 mil pessoas, já tinha acabado. A festa iria prosseguir no Armazém 14, na zona portuária do Recife. Lá, rolaria discotecagem de Amon Tobin (fraco) e dos membros do Asian Dub Foundation. Inspirados, os dois MCs do grupo esmerilharam rimas em freestyle, culminando com Pandit G exibindo versões tortas de jóias como “Natural Mystic” e “Roots Rock Reggae”, de Bob Marley, até amanhecer.

Domingo, dia internacional da “leseira”. Menos para a organização, que agendou os locais CIRANDA DO BARACHO e SA GRAMA para o fim da tarde. Sem mim, lógico. Eu estava no hotel, trocando impressões com Akshka e Spex, os dois rappers do Asian Dub Foundation. Funk carioca (acharam “básico”), futebol (pensam que o futebol brasileiro ainda é o tal), política (consideram direitista o primeiro-ministro britânico Tony Blair) e curiosidades (não cantaram os petardos “New Way New Life” e “Change A Gonna Come” no show porque não decoraram a letra). No máximo, pensei, perco o Textículos De Mary e garanto o Jon Spencer Blues Explosion.

Ledo engano. No Centro de Convenções, com o sorriso sádico que é peculiar na categoria, jornalistas me avisaram que já estava na vez do MOPHO. Que a viadagem do TEXTÍCULOS DE MARY foi “uó” (no afã de me impressionar, disseram que cortaram o som da banda abruptamente, só para criar um hype). Que JON SPENCER arrasou. Enfim, que perdi os dois melhores shows de todos os tempos e deveria me amaldiçoar até a sétima geração por isso. Não me deixei abater, embalado pelos peixes hidráulicos e som dos alagoanos. Onde está o teclado que enfeita o disco de cores astrais? Senti sua falta.

Bom, hora do MUNDO LIVRE S/A, lançando seu magistral Por Pouco (só agora, é mole?) em seu torrão natal para o menor público do Abril Pro Rock, 5 mil pessoas. Espaço de sobra para dançar com “Mexe Mexe”, “Melô Das Musas” e “Meu Esquema”. E não se fala mais nisso nem no BRASOV, um Karnak carioca. Pois LOBÃO está à espreita, prestes a surtar. Após 15 minutos de mansidão, um encosto baixou no homem. Ele tropeçou nas caixas de som. Cantou “Help” à capela, para ver se acalmava. Nada. Atirou o pedestal do microfone no fosso dos fotógrafos. Jogou longe a garrafa de vinho que estava em um isopor sobre o pedestal da bateria. Tomou distância, correu e chutou o isopor.

Por falar em universo paralelo, havia ARNALDO BAPTISTA. De camisa rosa com as mangas desfiadas, Arnaldo sentou no teclado e “Sanguinho Novo”, “Sexy Sua”, “Sr. Empresário” e “Ando Meio Desligado”. O lobo, que após o exorcismo buscou a paz com as conhecidas “Rádio Blá”, “Vida Louca Vida” e “Decadence Avec Elegance”, voltou a sorrir com o mutante. Voltaram todos, ao ver a lenda ali, tocando e cantando, um sentimento recíproco para quem estava no palco. Satisfação.

Sim, o festival mudou (não tem nem mais som no Calcinha Preta, o barraco-boate psicodélica que transformou-se na coqueluche do ano passado...). O tumulto no primeiro dia serviu para os organizadores perceberem o tamanho do monstro que criaram – e decidiram enfrentar, recorrendo a bandas que não prometem nada além de música. Eu estava convencido de que o Abril Pro Rock não é mais aquele, quando lembrei do serviço de café da manhã do hotel 7 Colinas, em Olinda, que abrigou o circo do rock. A lesma lerda de sempre.

Camiseta nova para sair no sábado #4

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20080411

Pergunte ao Pau (do Índio)

Começa hoje a 16ª edição do Abril Pro Rock. Fui três vezes a Pernambuco cobrir o festival, que neste ano desmembrou-se em dois blocos: o primeiro até amanhã, o outro no próximo dia 27. Aproveito o embalo para desencavar as reportagens que escrevi a respeito e prestar o devido tributo ao a) maltado no Recife Antigo, b) Pau do Índio nas ladeiras de Olinda e c) caldinho de aratu na praia de Maracaípe.

***


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(Reportagem publicada na revista Bizz #178, maio de 2000)

Philippe Seabra, da Plebe Rude, vem vindo da piscina, chinelo e toalhinha no ombro. Redson, do Cólera, arrisca seus mergulhos e nada feliz nas águas do hotel 7 Colinas, em Olinda. Como de hábito, a oitava edição do Abril Pro Rock – um feito e tanto para um festival no Brasil – foi fértil em revelações. A da tarde desta sexta-feira, 6 de abril, é a seguinte: estes são os punks. Os popstars, Paralamas do Sucesso e Soulfly, hospedam-se em um cinco estrelas no Recife. Até o dia 9, a oitava edição do evento ainda iria revelar que a) os anos 80 resistem bravamente na preferência popular; b) há coisas que só o metal pode proporcionar a você e c) a variedade é o molho da vida.

Como se pode ver, nada de muito inusitado. Mas que garantiu a diversão das cerca de 13 mil pessoas que estiveram nas três noites do Centro de Convenções de Pernambuco, na divisa de Recife com Olinda. Na primeira, por exemplo, a audiência ansiava pelos Paralamas. Enquanto Herbert Vianna e banda não reproduziam mais um show da turnê do disco acústico do grupo, o CIDADÃO INSTIGADO tratava de inaugurar as atividades no palco secundário. Os cearenses viajaram bonito, apostando em improvisos regados a guitarras estilo Santana, lamentos regionais e elementos eletrônicos. O público, nem aí para a ausência de algum refrão cantável, curtiu.

Os PARALAMAS DO SUCESSO vieram em seguida (mesmo) no palco principal, todos de vermelho e acompanhados dele, o sem-banda mais popular do Brasil, Dado Villa-Lobos. A homenagem a Chico Science, “Manguetown”, só encontrou páreo na gritaria com “Que País É Esse?”. Berros de “Chico, Chico” ecoavam no local, e essa foi só a quarta música do show. Entre um sucesso e outro, a apresentação foi durando, durando a ponto de estimular uma exploração pelas dependências do festival com a Feira de Arte e Comportamento, com 29 estandes vendendo de incenso a skatewear, de tambores a tatuagens. O mais inusitado, porém, estava guardado em uma casinha de dois andares em um canto do fundo do centro de convenções, a discoteca Pomba Gira. Ali funcionava um evento paralelo (veja box).

Hora de voltar à realidade, pois BIA GRABOIS já exibia sua guitarra com raiva e antipatia estudadas. Tem personalidade, a garota. Respeitando o revezamento de palcos, agora era o REPLICANTES que ocupava o maior. Com o ex-baterista Carlos Gerbase nos vocais, o quarteto gaúcho ligou o “um, dois, três, quatro” e despejou uma saraivada de hardcore sem interrupções (“Nicotina”, “Festa Punk”, “Surfista Calhorda”). Como se não bastasse o figurino de Gerbase, um macaquinho de gosto duvidoso, a banda ainda teve a audácia de cometer uma esdrúxula versão de “Killing Moon”, do Echo & The Bunnymen, que não fugiu da roda de pogo. Bem, não deixa de ser punk.

O grupo carioca VULGUE TOSTOI se apresentou na seqüência, mostrando um pop sofisticado, com guitarras pesadas, programações e “Vapor Barato” como nunca se ouviu. Para muitos, a revelação que os olheiros de gravadora estavam procurando. Um bom antepasto para a PLEBE RUDE, divulgando contrariada o disco da reunião da banda, Enquanto A Trégua Não Vem - Ao Vivo. Bastaram os primeiros acordes de “Brasília” para Philippe Seabra perceber que estava errado ao dizer, no hotel, que iria com uma camiseta da Plebe por baixo para ser reconhecido. Redson, o nadador, participou em “Luzes”, do grupo brasiliense Escola de Escândalo e em “Medo”, do repertório do Cólera.

Na tenda eletrônica, AD fazia o balanço com graves sinuosos, preparando a pista para o drum & bass mais calmo, com pitadas de jazz, do DJ PATIFE. Os cabeçudos que não estavam na Pomba Gira chacoalhavam o que restava de energia no corpo. Quase cinco da manhã e, na chegada ao hotel, somente os integrantes do Aterciopelados estão acordados, caminhando da piscina ao bar e vice-versa. Eles são colombianos.

Metaleiros no tecno
Amanheceu chovendo no sábado, o que acabou com a algazarra dos punks na piscina. A água atrasou a entrada do SISTEMA X no centro de convenções para pouco depois das 18h30. Pelo menos, se o rap não animasse, já se sabia da existência da Pomba Gira (sempre um refúgio) e da tenda eletrônica, que, desativada, servia para um descanso rápido. No entanto, a fi
delidade dos metaleiros fez com que as dois recantos só ganhassem atenção nos curtos intervalos dos shows. Sem contar que dois heróis da cena local estavam escalados para essa noite, SHEIK TOSADO e Devotos (ex-do Ódio).

O primeiro pôs o povo para pular, incentivado pela performance aeróbica do vocalista China, que não parou um minuto. No palco, a banda ganha força não ouvida em seu disco, Som De Caráter Urbano E De Salão, com todas as músicas cantadas pelo público. O DEVOTOS, bem, basta dizer que foi o único momento, em todo o Abril Pro Rock, em que todos correram para a frente do palco. Em oito edições do festival, essa era a sétima em que o trio do Alto José do Pinho se apresentava. Como se seu hardcore, da qual não escapou nem a versão de “Alagados”, do Paralamas, fosse insuficiente para levantar os menos exaltados, o vocalista Canibal mandou uns gritos de “Nação Zumbi”, novamente homenageando o principal nome do mangue beat.

A empolgação que invadiu a frente do palco principal não encontrou recepção no espaço menor. SUPERSONIQUES, guitar band, estava triste demais, ficando ainda mais deprimente com a falha no som. ATAQUE SUICIDA, com brados como “políticos merecem porrada”, só conseguiu tornar mais longa a espera pelo SOULFLY. Que demorou.... Um silêncio maior do que o problema que afetou o Supersoniques, inexplicável porque a Soufly teve tempo de sobre se arrumar no palco principal.

Ah, mas é Max Cavalera! O homem que chegou no Abril Pro Rock, tocou e foi embora, superprofissional. Mostrou em primeira mão músicas do novo álbum e estreou a nova formação do grupo. Soulfly à parte, é imperioso dizer que o momento alto foi “Roots”, do Sepultura e que Chico Science, presente até na camiseta do mestre-de-cerimônia Rogê (“cadê Rogê...”), ganhou outra homenagem. Enfim, simpatia.

Findo o exorcismo de Max Cavalera, o grande dilema: será que os metaleiros vão quebrar tudo na tenda eletrônica? Mas metaleiro do Recife é from heaven. Metaleiro do Recife dança tecno vestido com camiseta do Nuclear Assault. O ANVIL FX também não deu mole para o azar, surgindo com um batidão que se converteu em baião digital. Quando se nota, a banda transformou-se em SHIVA LAS VEGAS, com o vocalista Lex Lilith encarnando um xamã e espantando os diabinhos com berros como “me segura que eu vou ter um troço”.

Espere aí: aquele cara altão ali no meio da pista tem a maior pinta de gringo, todo desengonçado com uma caipirinha na mão. É algum maluco do Bloco Vomit. Dá licença, deixa um dos Aterciopelados passar, ligadão no movimento. A cantora ANDREA MARQUEE vai acalmando a onda, mas a essa hora, quase duas, todos os roqueiros brasileiros que não estão pairando já estão dormindo. Menos os que se arriscaram até o Recife antigo para dar um pulo no Pina de Copacabana, o bar de Rogê. Na jukebox, “Stairway To Heaven”. Toca para o hotel.

Ciranda de estilos
Domingão e a chuva que cai desde ontem alagou parte do acesso ao centro de convenções. A noite mais despretensiosa do festival, a mais eclética, a mais “new wave”, foi a que teve menor público. Em compensação, foi a melhor, trazendo uma riqueza musical condizente com as tradições reveladoras do Abril Pro Rock. Artistas conhecidos, como Otto e Los Hermanos, mostraram que ao vivo são outros quinhentos. Estranhos na programação, Aterciopelados, Paulo Diniz e Bloco Vomit conquistaram a platéia.

Dos nativos, destaque absoluto para o CABRUÊRA, o único grupo capaz de rivalizar com o Vulgue Tostoi no quesito surpresa do Abril Pro Rock. OK, o papo de influências regionais para fazer um som moderno já foi explorado até dizer chega, mas estes paraibanos estão em ponto de bala. Eles regendo uma grande ciranda de roda na platéia ficou como uma das cenas memoráveis deste festival. COMADRE FLORZINHA e BATE O MANCÁ (de Silvério Pessoa, do Cascabulho, dedicado à obra de Jacinto Silva) investiram nas raízes forrozeiras da região e comoveram, enquanto à STELLA CAMPOS coube a dura tarefa de abrir a balada com seu trip hop para chamar as pessoas.

A cantora tocou antes do BLOCO VOMIT, que invadiu o palco secundário com 11 escoceses vestidos de mulher, interpretando clássicos do punk em ritmo de batucada. É o típico caso de algo tão bizarro que se torna bom. No palco principal, PAULO DINIZ ilustrou o momento James Taylor do festival, com quase todo mundo sentado balançando ao som de “Pingos De Amor” e “I Want To Go Back To Bahia”. O tiozinho deu lugar aos ATERCIOPELADOS, imediatamente traduzidos por “aveludados” pela carismática vocalista Andréa Echeverry. A moça deu uma aula de como seduzir uma platéia desconhecida. Ensinou refrões, distribuiu apitos e pirulitos, sorriu direto. Como recompensa, o pop meio oitentista, meio moderninho da banda recebeu mais aplausos do que o previsto. Showzão.

OTTO, lá na frente, rebateu quaisquer críticas sobre suas apresentações, consideradas irregulares. Com uma banda de primeira, mesclou seus cult hits (“Bob”, “Renault/Peugeot”, “TV A Cabo”) com músicas de seu próximo disco, desfilando grooves irresistíveis. “É a Jambro Band. ‘Jam’ de improviso, ‘bro’ de brother. E jambro é uma fruta da região”, explicou o sempre enigmático Otto.

Para fechar o festival, LOS HERMANOS, a revelação do Abril Pro Rock do ano passado, agora do tamanho de uma grande atração. OK, o vocalista Marcelo Camelo fala coisas bonitas entre uma canção e outra – “esta é para quem está apaixonado”, “esta é para quem já se apaixonou em um show” –, mas o negócio aqui é hardcore, com todo o sotaque carioca a que tem direito. Tremenda injustiça esses caras serem louvados apenas por “Anna Julia”. Como mais tarde diria Camelo, no micro-ônibus de volta ao hotel, “não entendo porque no Brasil uma banda não pode tocar uma música romântica e depois fazer a maior barulheira”.

No festival, GUIZZMO e MAD MUD encerravam a tenda eletrônica, exigindo forças de quem não tinha. Uma canseira que nem a generosa porção de macaxeira com carne de sol servida no barzinho ao lado da Pomba Gira teve a moral de acabar.

BOX: Cubículo de emoções
Bendita a hora em que a organização do Abril Pro Rock teve a idéia de armar um barraquinho com dois andares no cantinho do festival. Durante três noites, rolou uma versão paralela do evento naqueles 16 metros quadrados. No térreo, uma pista de dança na qual se revezavam forrós, black music, rap e mangue beat. No andar de cima (o lounge Calcinha Preta), os roqueiros mais afoitos encontravam uma cama de casal com mosquiteiro, um sofá, roupeiro, criado e telefone (ambos mudos).

Não demorou muito para os mais agitados descobrirem que ali era um porto seguro para levar um papo, defumar as roupas ou, simplesmente, desopilar. Subindo-se pela íngreme escadinha acarpetada de vermelho, não era difícil encontrar um sósia de Lee Perry, elmo (!) na cabeça regulando o movimento para a bagaça não desabar em cima da pista de dança – preocupação pertinente, pois tinha hora que umas 15 pessoas se espremiam no cubículo e o chão não parava de balançar. De repente, Manu Chao irrompe nos alto-falantes e transforma tudo em Tijuana. Quero ver agora para descer...

20080407

Ganhe R$ 15 mil em barras de ouro – de tolo


Saquei que estava desesperado atrás de grana quando me flagrei participando de um negócio que eu tinha certeza que era falcatrua. Não sei nem o nome do programa, só que passava na madrugada na Rede TV. Ao lado do triângulo aí de cima, duas mulheres andavam de um lado para outro no estúdio, berrando com quatro caras instalados em uma bancada com computadores e telefones. O rodapé da tela exibia o motivo de tanto histerismo: “Acerte a soma do(s) triângulo(s) e ganhe R$ 15 mil em barras de ouro”, acompanhado da inscrição “R$ 500 para qualquer resposta” e um número de celular (com DDD de Curitiba) para participar do “concurso cultural”.

Em menos de 10 minutos, foram atendidas ligações de gente de todo o Brasil com seus palpites furados. Felipe, de Santo André: 196. Teresa, do Recife: 16. Paulo, do Rio de Janeiro: 42.938.82. A histrionice das apresentadoras aumentava à medida que as respostas erradas se sucediam. Para aumentar a pressão, surgiu um relógio cronometrando os dois minutos que faltavam para o programa acabar, seguido do anúncio. Findo o prazo, a gritaria continuou, informando que haveria mais dois minutos, seguido do anúncio “R$ 1000 para qualquer resposta”. Esses dois minutos, que já era quatro, viraram seis, oito, dez, e nada de alguém acertar o enigma.

Foi aí que resolvi tomar uma atitude, mesmo sem entender de onde viria o dinheiro, já que não havia nenhum intervalo comercial ou merchandising. Na pior das hipóteses, pensei, levo milzão. Na melhor, viro o mais novo partidão da ilha. Munido de minhas parcas recordações matemáticas do primário, peguei a pegadinha: o segredo estava no plural. Desmembrei todos os triângulos e comecei a somar um por um.


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Contando com o 196 resultante do triângulo cheio, deu 992. SÓ PODIA SER 992 (196 + 145 + 155 + 116 + 104 + 80 + 41 + 75 + 29 + 51). Já imaginando o estrago que faria com os 15 paus em ouro, corri para o telefone. No outro lado da linha, uma voz feminina me disse que eu precisaria responder algumas perguntas. “Tecle 1 para ‘verdadeiro’, 2 para ‘falso’, explicou. Depois de dez questões do nível de “Sérgio Reis é cantor de rap” e “Xuxa é loura” respondidas corretamente, comecei a ficar impaciente. Mas continuei no jogo.

Quando cheguei na vigésima (“Silvio Santos é jogador de futebol”), resolvi acessar o site que aparecia em letras miúdas no canto inferior direito da TV. Sem desligar (“O Brasil fica na América do Sul”), li o regulamento do concurso. Cada pergunta (“Manaus é a capital do Amazonas”) vale um ponto, e quanto mais pontos (“Baleia é um mamífero”) o candidato fizer, maiores suas chances de conseguir ser posto no ar, ao vivo, para tentar decifrar a charada.

Então é daí que vem o dinheiro, das ligações dos trouxas – por isso o interminável questionário. Desliguei o telefone, ainda a tempo de ver uma das mulheres exibir um cartaz com a resposta correta antes de encerrar o programa: 970. Embora não faça idéia de como obtiveram esse número, me conformei. Eu não levaria nem o milzão. E também não conheço ninguém que derreta ouro, mesmo.

20080405

20080401

Primeiro de abril

Hoje eu comecei a trabalhar fora.