20161025

O maestro do Canão vive

Como Sabotage já dizia em 2002, “o nego não para no tempo”. Não para mesmo – nem depois de morto. O rapper paulistano voltou à cena no último dia 17 com um disco homônimo esperado há pelo menos 13 anos, quando sua trajetória foi interrompida com quatro tiros à queima-roupa. A audição das 11 músicas produzidas pelo coletivo Instituto com as rimas que o falecido deixou gravadas provoca tristeza pelo talento que se perdeu cedo demais. Mas também confirma a impressão de que o “maestro do Canão” (favela onde morou) estaria hoje ao lado de Criolo, Emicida e Racionais MC's na linha de frente do hip hop nacional.

Desde que surgiu em 2000 com Rap É Compromisso, Sabotage dialogava tanto com a periferia quanto com o asfalto. Falava a língua dos manos, era entendido pelos playboys, tinha o respeito e a admiração de ambos. Seus raps seguiam os fundamentos do estilo, sem abdicar das conexões com samba e MPB. O álbum póstumo reflete essa gama de interesses e abordagens: enquanto “Superar” desce mais ortodoxa, com cadência clássica do gênero construída sobre um balanço típico de filme policial da década de 1970, “Maloca É Maré” traz aquela batida perfeita de fundo de quintal que enriqueceu Marcelo D2.



Mais na maciota, “O Gatilho” diminui a rotação para acentuar o contraste entre a harmonia da base e a crueza dos versos. “País da Fome: Homens Animais” vai mais fundo e lembra, logo no início, o assassinato do autor em “um crime ainda sem explicação”. Mais tarde, foi descoberto que o homicídio tinha relação com tretas passadas envolvendo disputa de facções rivais por território. Longe de ser santo, aos 29 anos Sabotage estava tentando tocar a vida em paz após um histórico de porte ilegal de armas, tráfico de drogas e execuções. A retaliação foi mais rápida. A renda do disco será revertida aos seus filhos, Wanderson e Tamires.

Tesão de veterana
Presença garantida em qualquer coletânea dos anos 1980 com “Middle of the Road” e “Don't Get me Wrong”, os Pretenders estão de volta com Alone. No primeiro disco desde 2006, o grupo resume-se à líder Chrissie Hynde, que só não está sozinha como diz o título porque a colaboração do geninho Dan Auerbach (Black Keys) equivale a uma banda inteira. Escolada no pop rock, a veterana americana embarca na viagem sessentista do produtor, uma inspiração que ele já explora bem com o projeto paralelo The Arcs. O soul insinua-se por “Roadie Man” e “Never Be Together”, a refrescante “One More Day” saúda os trópicos e “Holy Commotion” cairia como uma luva em um bailinho, não fosse a voz algo grave de lady Hynde a lhe revestir de solenidade. Aos 65 anos, a senhora merece toda a reverência.




 ANÇAMENTOS



Jagwar Ma, Every Now & Then – O segundo disco dos australianos supera a estreia em quaisquer aspectos. De acordo com a faixa escolhida, pode ser mais pop, mais eletrônico, mais psicodélico ou mais denso. Todos esses predicados se condensam no single “Give me a Reason”, embora “Say What You Feel” e “Loose Ends” também cumpram a missão com louvor.



Black Papa, Suor – Apadrinhada pelo soul brother Gerson King Combo, a banda paulistana se define como punk-funk, mas é o segundo rótulo que bate forte neste EP com cinco canções – vide a black music da faixa-título, um convite à pista. Mesmo a politizada “Não Vamos nos Calar” contesta o sistema sem descuidar do movimento. No caso, dos quadris.



(coluna publicada hoje no Diário Catarinense)

20161018

Sua arte, suas regras

Durou pouco o envolvimento de Norah Jones com a cultura alternativa – mais precisamente, um disco. Para satisfação de uns, decepção de outros e surpresa de todos, o novo álbum, Day Breaks, traz a cantora de volta ao seu habitat natural. A despeito da merecida repercussão obtida pelo sensacional Little Broken Hearts (2012), no qual o flerte com outras sonoridades avançou pelo visual com a adoção de uma inesquecível franjinha, o sexto lançamento retoma a trilha aberta pela estreia Come Away with me (2002): jazz contemporâneo, tão cômodo quanto a zona de conforto de onde ela quase nunca saiu.



O que a levou a abandonar uma carreira promissora como diva indie e reencontrar o antigo estilo com que despontou é daqueles mistérios que só as idiossincrasias da arte justificam. O fato incontestável é que Norah Jones sente-se em casa martelando doces canções ao piano. Primeiro, porque ninguém estranha quando sua voz abre o trabalho com a suavidade de “Burn”. Segundo, e mais importante, porque enquanto sua incursão anterior contava apenas com o produtor Danger Mouse a lhe respaldar a escolha, em Day Breaks a credibilidade jazzística que ela já tem é reforçada pela presença dos gigantes Wayne Shorter e Lonnie Smith.

Mais do que um “retorno às raízes”, estamos diante de uma artista à vontade para entrar em uma onda e, curtindo ou não, partir para outra. Seu único compromisso é consigo mesma, seja para acenar às rádios adultas com soft pop em “Tragedy”, ensaiar uma acelerada com “Flipside” ou cometer uma versão de Neil Young (“Don't Be Denied”). Musa, dessas de atiçar hormônios adolescentes, ela nunca foi mesmo. Muito menos hipster. Aos 37 anos e mãe de dois filhos, seu melhor papel é o que decidir desempenhar na hora em que bem entender. O jazz sempre estará de braços abertos para recebê-la.

Mulheres de fases
As mulheres estão no comando. Querem mais, querem melhor, querem tudo & querem agora. Portanto, renda-se ao Warpaint, grupo californiano formada por quatro moçoilas no Dia dos Namorados (no calendário dos Estados Unidos, 14 de fevereiro) de 2004. A fofura termina na data de nascimento: o som delas nada tem de delicado ou outro adjetivo automática e preconceituosamente associado à feminilidade. O recém-lançado quarto disco, Heads Up, até dá uma aliviada, embora siga sem concessões ao apelo do pop fácil. “New Song” é a faixa que mais se aproxima de um hit, em meio a um álbum no qual microfonias, ruídos e vazios dispensam peso e/ou velocidade para impressionar. As garotas estão longe de serem perfeitinhas, mas encantam com sua complicação.




 ANÇAMENTOS



Emanuelle Araújo, O Problema É a Velocidade – Conhecida por seu trabalho como atriz, a baiana de 40 anos (também vocalista da banda Moinho e da Orquestra Imperial) estreia em disco no limite entre o pop e a MPB. Como tudo o que se pretende muito eclético, corre grande risco de não agradar os fãs de um nem de outra.



Drugdealer, The End of Comedy – O projeto do americano Michael Collins não tem esse nome à toa. Leve, orgânica e curtida sob o sol de Los Angeles, a psicodelia do “traficante de drogas” vai da pompa ao minimalismo, deixando o ouvinte intrigado com baladas agridoces como “Sud­denly” ou “Easy to Forget”. A participação do não menos experimental Ariel Pink nessa última diz muito sobre a empreitada.



(coluna publicada hoje no Diário Catarinense)

20161011

Retorno ao templo do grunge

No subconsciente do pop, Seattle era apenas a terra natal de Jimi Hendrix quando o furacão grunge varreu o mundo no início da década de 1990. Encabeçado pelo Nirvana, o estouro do estilo musical associado à chuvosa cidade do noroeste dos Estados Unidos deflagrou uma corrida em busca da próxima sensação vinda de lá. Nesse movimento, o mundo acabou desenterrando o Temple of the Dog, que precisou gravar apenas um disco para se colocar entre os maiores daquela cena.

Para regozijo dos saudosistas e deleite da juventude interessada, os 25 anos do lançamento da autointitulada estreia da banda não passaram em branco. O álbum ganhou nova edição, acrescida de demos e takes alternativos, e seus integrantes se reuniram para uma série de shows, todos já com os ingressos esgotados. Hoje é fácil chamá-lo de supergrupo devido à fama de seus integrantes, egressos do Soundgarden e do Pearl Jam. Mas, na época, não passava de uma singela forma de homenagear um amigo morto por overdose de heroína.



O falecido era Andrew Wood, vocalista do Mother Love Bone – uma das matrizes do “som de Seattle” –, que havia sucumbido à droga em 1990. Precedido pelo single “Hunger Strike”, o trabalho mesclava baladas na voz pungente de Chris Cornell (“Call Me a Dog”, “Times of Trouble”, “Say Hello 2 Hea­ven”) com peso setentista sem prazo de validade (“Pushin' Forward Back”, “Your Savior”). Enfim, um discaço-aço-aço. Não espere mais 25 anos para conhecê-lo ou ouvi-lo outra vez.



O noise nosso de cada dia
A véspera de feriado abre uma minitemporada intensa para as hostes roqueiras de Florianópolis. Hoje, a Célula recebe o finlandês The Vintage Caravan para o Abraxas Fest, convescote metálico-lisérgico que também conta com a alegreportense Cattarse e a brusquense Ruínas de Sade. E, a partir da próxima segunda, o já tradicional Floripa Noise espalha seu esplendor por diversos palcos da Capital. Até domingo, a programação do festival prevê shows de Orquestra Manancial da Alvorada, Mukeka di Rato, Walwerdes, Tom Bloch e Cochabambas, entre outras atrações recomendadas para toda a família. Mais detalhes – incluindo um insuspeito “churrasco do Zimmer” – aqui.




 ANÇAMENTOS



Pixies, Head Carrier – Faixa-título berrando no talo, “Um Chagga Lagga” em velocidade punk, “Oona” e “Plaster of Paris” brincando com o pop, “All I Think About Now” evocando o hit “Where's My Mind”: que bênção Frank Black e cia recusarem-se a envelhecer. Como uma amiga disse sobre o grupo, “é sempre bom”.



Douglas Germano, Golpe de Vista – O segundo disco do sambista paulistano não se compromete com nenhuma bandeira que não a celebração do próprio estilo. Na malandragem torta feita de caixa de fósforo, percussão e violão, não tem como não se deixar levar por “Maria de Vila Matilde” ou “Guia Cruzada”.



(coluna publicada hoje no Diário Catarinense)

20161004

Não era amor, era só falsidade

As mulheres estão dominando o planeta. Presidem países, comandam empresas, lideram movimentos. Cada vez mais, desfilam sua superioridade em áreas tradicionalmente regidas pelos homens e não saem mais do topo. Não seria a música neossertaneja, sempre tão aberta às tendências contemporâneas, que resistiria ao empoderamento feminino: como demonstra a compilação Agora É que São Elas, os cowboys urbanos que cavalgavam solitários na crista do sucesso agora enfrentam a concorrência de prendas dispostas a tomar as rédeas desse importante filão do mercado fonográfico.



O disco reúne nomes como Marília Mendonça, Maiara & Maraisa, Simone & Simaria, Paula Fernandes e até a decana Roberta Miranda. Elas sofreram preconceito por preferir a viola às bonecas. Eram vistas com desconfiança. Talentosas, não desistiram. E conseguiram, depois de décadas de luta por direitos iguais, um lugar de destaque no clube do bolinha do sertanejo nacional – para falar das mesmas coisas do mesmo jeito que seus pares masculinos e usar calças tão apertadas quanto. Pense em balada, bebedeira, romance, sexo e traição, só que com voz mais aguda e letras com gênero trocado.



Não por acaso, o material de divulgação da coletânea limita-se a apresentar números. A cantora posicionada entre os 20 artistas mais acessados no YouTube em todo o mundo. A compositora na lista dos maiores arrecadadores em direitos autorais no ano passado. A dupla com canções que, juntas, somam quase 279 milhões de visualizações. Porque a ascensão das mulheres em uma cena movida a testosterona diz respeito a comportamento, sociedade, economia, diversão, oportunidade, engajamento, quantidade de cliques. Mas, definitivamente, tem pouco a ver com música.

Eternos moleques
Entre idas e vindas, o Suicidal Tendencies está há 33 anos entortando pescoços e promovendo rodas de pogo mundo afora. Com World Gone Mad, a banda se mostra pronta para (de)formar o caráter de uma nova geração de moleques. O 12º disco – e primeiro com a atual formação, que conta com a bateria-britadeira de Dave Lombardo (ex-Slayer) – enfileira petardos com energia de adolescente. De “Clap Like Ozzy” a “The Struggle Is Real”, passando por “The New Degeneration” e “Damage Control”, metal e hardcore unem forças para causar aquela saudável sensação de atropelamento. Diz o vocalista Mike Muir, único remanescente desde o início, que este pode ser o último trabalho. Se for mesmo, o grupo despede-se por cima.




 ANÇAMENTOS



Canto Cego, Valente – Uma das revelações do underground carioca, após três anos em gestação finalmente a estreia do quarteto em disco vem à tona. A pressão rock aliada aos versos da poeta e vocalista Roberta Dittz ditam canções como “Nuvem Negra” e “A Fúria”, enquanto o pop fala mais alto com “Sublime”.



Local Natives, Sunlit Youth – Os californianos chegam ao terceiro disco com críticas favoráveis ao seu indie pop. O que os distingue do enxame de bandas que militam na mesma esfera são as melodias: mesmo com a luminosidade de um pôr-do-sol, exalam uma melancolia que combina mais com final de noite, como em “Dark Days” e “Villainy”.



(coluna publicada hoje no Diário Catarinense)