20230905

Este golpe vai roubar só o seu tempo



Já não se fazem mais assessores como antigamente. Mostrei esta página em branco para o meu ajudante de ordens com uma determinação expressa: “Resolve isso aí”. Esperava que ele, sempre solícito para cumprir as missões que eu lhe confiava, me devolvesse um arrazoado prontinho para ser publicado.

Pois o danado foi além. Com uma proatividade que superou as mais exageradas expectativas sobre sua competência, vendeu os direitos dos conteúdos que produzo a um trouxa colecionador excêntrico. E, como se não bastasse o apurado tino comercial, ainda tomou o cuidado de receber o pagamento em espécie.

Docemente constrangido, embolsei o dinheiro e agora há cédulas escondidas até atrás do quadro de Lucy Born que enfeita a parede do meu escritório. Mas já me queixei ao pai dele porque, por melhores que tenham sido suas intenções, meu problema continua: preciso desovar esta edição até as 23h59 de hoje.

À medida que o prazo se aproxima, diminui minha resistência à tentação de enrolar. Penso em recorrer ao ChatGPT e logo desisto. Se for para me apropriar de algo escrito por outrem, que seja de gente de verdade, não de uma engenhoca que nunca sentiu nada, quanto mais deixar a alma em uma frase. A elas, então:

Anotações de leitura

De Chuva de Papel, de Martha Batalha:

Meu filho, as pessoas resistem enquanto o poço não tem fundo. Quando tem, elas se entregam. No fundo do poço nem a dor importa. Do chão nada cai. Esse vazio era uma forma de ser feliz.
De Quando os Pássaros Voltarem, de Fernando Aramburu:
É nisso que consiste a maturidade, em resignar-se a fazer – dia após dia, até se aposentar e mesmo depois – coisas que você não tem vontade de fazer. Por conveniência, necessidade, diplomacia, mas acima de tudo por uma covardia que vai se tornando um hábito. Se não tomar cuidado, você acaba até votando naquele partido que tanto detestava.

Muitas coisas que cansam, principalmente o contato diário com gente que não me interessa.
De Rastejando até Belém, de Joan Didion:
Acho que é aconselhável continuarmos aceitando as pessoas que um dia fomos, quer as consideremos companhias atraentes, quer não. Caso contrário, elas vão aparecer sem avisar e vão nos pegar de surpresa, batendo sem parar na porta da mente às quatro da manhã de uma noite maldormida, e exigindo saber quem as abandonou, quem as traiu, quem vai fazer as pazes. Nos esquecemos muito cedo das coisas que pensávamos que nunca esqueceríamos. Esquecemos os amores e as traições, esquecemos o que sussurramos e o que gritamos, esquecemos quem já fomos.

Ter tino do valor intrínseco que constitui o amor-próprio é, potencialmente, ter tudo: a capacidade de discernir, de amar e de ficar indiferente. Carecer desse tino é ficar trancado dentro de si, paradoxalmente inapto tanto para o amor quanto para a indiferença.

Porque quando começamos a nos iludir com o pensamento não de que queremos algo ou precisamos de algo, não de que seja uma necessidade pragmática ter tal coisa, mas de que tê-la é um imperativo moral, aí é que nos juntamos aos loucos da moda, aí é que o fraco gemido da histeria é ouvido na terra, e é aí que estamos em maus lençóis. Desconfio de que já estamos.
De Em Tudo Havia Beleza, de Manuel Vilas:
Por pior que seja nossa vida, sempre há alguém que nos inveja. É uma espécie de sarcasmo cósmico.

Não me interessa julgar o que aconteceu, e sim narrar ou dizer ou celebrar. A moralidade dos fatos é sempre uma construção da cultura. Os fatos em si são seguros. Os fatos são sua natureza, sua interpretação é política.
De Sede, de Amélie Nothomb:
O problema do mal não é nada se comparado ao da mediocridade.

(Extraído da newsletter Extrato. Assine já e garanta o seu exemplar antecipado todas as terças!)

PLAYLIST | lembrar do mar e mergulhar



Três da manhã, ela é só suor.

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