20211027

Em terra de jacu, quem tem coco é rei



Tudo o que conheço de Caetano Veloso cabe em um post-it e ainda sobra espaço. A ignorância nunca foi empecilho para o ranço. É que cresci em uma época em que ele personificava o establishment, o carteiraço, a entidade que concedia uma fresta de sua luz genial aos estúpidos mortais. Por isso, o espanto quando me vi interessado no disco novo do semideus de Santo Amaro da Purificação (BA). Para surpresa ainda maior, Meu Coco não enche o saco.

O mundo mudou, Caetano também. Ele nem de longe representa mais o inimigo a ser combatido, é apenas um inofensivo vovô de pijama tocando violão em casa. Cada música que lança ainda é um evento capaz de comover os jornalões, mas o fato de mobilizar mais a imprensa tradicional do que as redes sociais é sintomático: hoje, Caetano é enorme somente para o público que consome veículos impressos ou suas versões online. Ou seja, para a geração dele e a seguinte, jamais a atual.

Apesar de – ou justamente por – agora qualquer zé mané ter opinião sobre tudo, o que o Caetano acha da vida, do universo e de tudo mais pouco reverbera. Se isso o incomoda mesmo nove anos depois de seu último álbum solo de estúdio, Abraçaço, ele não passa recibo. Continua verborrágico como no tempo em que era consultado para falar sobre o último pacote do governo, alguma guerra em curso, a matança de pirarucus ou o decote da atriz gostosa, fazendo de Meu Coco mais um “manual do mundo” em sua discografia.

Ao longo de 12 músicas, Bahia, Líbano, Vitória, Europa, Rio, Belém, Natal e Vale do Silício são alguns dos lugares mencionados. A geografia retórico-sentimental só perde para as dezenas de artistas, celebridades, familiares e amigos citados, a começar pelo nome de “GilGal” e “Enzo Gabriel”. O name-dropping abre o disco com Simone na faixa-título, desenterra Peri, Ceci e Ganga Zumba no fado “Você Você” (em que Caetano divide o sotaque português com a cantora lisboeta Carminho) e fecha com Carlinhos Brown na saideira “Noite de Cristal”.

Exceto a canção que encerra o trabalho, registrada por Maria Bethânia no recente Noturno, e “Pardo”, que ganhou versão muito mais solene do que a entoada por Céu em Apká! (2019), as demais foram compostas para Meu Coco. Gravado durante a pandemia no estúdio doméstico montado na maison Veloso, o disco tem uma sonoridade plácida, devagar, à feição do astral “reflexivo” das letras. Eta, eta, eta, aquele cantor faceiro virou um velhinho desiludido com o planeta.

Quase no final, “Sem Samba Não Dá” eleva o ritmo sem alterar o batimento cardíaco e pode fazer sucesso nos shows, com o cantor dançando o miudinho. É o momento mais animado de um álbum que não cansa nem empolga, assinado por um artista muito maior do que qualquer coisa que produza. Em um cenário dominado pelo coro dos contentes, um Caetano pistola como em “Anjos Tronchos” já faz a diferença. Ele não tem culpa de a régua estar tão baixa.

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Aliás e a propósito

(Em 1999, quando a internet ainda era movida a modens, tive o privilégio de criar um site com os queridos Camilo Rocha, já um nome consagrado da imprensa musical, e o então imberbe André Valente, que se tornaria um talentoso quadrinista e ilustrador. Era o The Bambas, que durante o pouco tempo hospedado no jurássico Geocities saiu até na Folha de S. Paulo. A responsável pela proeza foi uma nota intitulada “O caô do Caê”, reproduzida abaixo.)

Desde o início de sua carreira, Caetano Veloso tem servido como aglutinador de artistas e personalidades públicas. Uns dizem que é seu espírito generoso, outros que é apenas uma forma de cooptar forças que possam gerar antagonismo ao que ele instituiu nos anos 1960. Curiosamente, todos os artistas de sucesso que se envolveram com o autor de “Alegria, Alegria” tiveram um destino conturbado. Nem seus colegas tropicalistas escaparam, mas estes só sofreram a maldição após a volta de Veloso de seu período de exílio – caso do poeta paiuense Torquato Neto, que se suicidou (e ficou fora da lista por não ser músico). Mais curioso ainda é que nenhum baiano foi atingido pelo sortilégio:

ARACY DE ALMEIDA
Contribuição histórica: Cantora símbolo da era do rádio no Brasil, era a intérprete favorita de Noel Rosa
Conexão com Caetano: Gravou o samba dele “A Voz do Morto” em 1968 e se declarou sua fã
O que aconteceu: Amargou anos de ostracismo e terminou como jurada do Show de Calouros de Sílvio Santos

BARÃO VERMELHO
Contribuição histórica: Protagonistas da primeira onda do rock nacional nos anos 1980
Conexão com Caetano: Ele os elogiava constantemente e incluiu a música “Todo Amor Que Houver Nessa Vida”, da banda, em seus shows
O que aconteceu: Cazuza deixou o grupo em 1986 e a banda só voltou a vender bem em 1996, após a morte do vocalista original

JARDS MACALÉ
Contribuição histórica: Um dos mais inventivos participantes do tropicalismo, autor da cult “Gothan City”, apresentada no IV Festival Internacioanl da Canção em 1969
Conexão com Caetano: Hospedou o cantor em sua casa em 1964, produziu o LP Transa e fez vários arranjos para ele, Gal e Bethânia
O que aconteceu: Foi dispensado da gravadora em 1974 e pegou a fama de maldito

JOHN LENNON
Contribuição histórica: É pai de Sean Lennon, amigo dos Beastie Boys
Conexão com Caetano: O baiano gravou “Help!”, de autoria do beatle, no LP Qualquer Coisa, de 1977
O que aconteceu: Foi assassinato a tiros três anos depois, na porta do prédio onde morava em Nova York

MUTANTES
Contribuição histórica: Responsáveis pela parcela pop-rock do movimento tropicalista
Conexão com Caetano: Gravaram vários singles e LPs com o cantor e o acompanharam em shows e festivais
O que aconteceu: O trio original se desintegrou em 1973; Arnaldo Baptista despirocou, Rita Lee ficou infeliz e Sérgio Dias virou guitarrista de rock progressivo

ODAIR JOSÉ
Contribuição histórica: Primeiro ídolo brega nacional, “terror das empregadas” e autor de hits como “A Pílula”
Envolvimento com Caetano: Foi chamado por ele para tocar o clássico “Vou Tirar Você Desse Lugar” no festival Phono 73
O que aconteceu: Foi vaiado pelo público “cabeça”; tentou gravar um disco conceitual influenciado por The Who e Peter Frampton e nunca mais fez sucesso

RITCHIE
Contribuição histórica: Autor do maior hit de 1982, “Menina Veneno”, cujas vendas provocaram ciúme até em Roberto Carlos
Envolvimento com Caetano: Gravou “Shi-Moon”, um tecnopop, com ele
O que aconteceu: Viu seu sucesso ir embora e hoje vive de fazer diagramação para home pages

RPM
Contribuição histórica: Fenômeno do circuito das danceterias e ídolos de meninas pré-púberes na década de 1980
Envolvimento com Caetano: O cantor elogiou os ombros de Paulo Ricardo e reclinou sobre eles enquanto cantava “London London” no programa Chico & Caetano
O que aconteceu: O RPM acabou, voltou e não deu certo, acabou de novo, voltou de novo e não deu certo de novo; Paulo Ricardo, coitado, virou um errante

SEPULTURA
Contribuição histórica: Grupo brasileiro com maior repercussão internacional em todos os tempos
Envolvimento com Caetano: Subiu ao palco com ele e Carlinhos Brown na Bahia, em 1996
O que aconteceu: No ano seguinte, Max brigou e saiu da banda, antecedendo meses de baixaria nos jornais

TANTRA
Contribuição histórica: Grupo de apoio da Legião Urbana em turnês monstruosas, assinou contrato para seu primeiro disco com a gigante Universal Music
Envolvimento com Caetano: O baiano participou do clipe da cover que eles fizeram para “Tropicália”
O que aconteceu: A banda foi dispensada da gravadora e sumiu do mapa

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Tão cult quanto um chucrute



Finalmente saiu o filme daquela banda de malucos. Demorou, tem cada história que o pessoal acha que é mentira. Hoje dá para dizer, fácil, que eles estavam à frente do seu tempo. Que mané Velvet Underground! O papo aqui é Queremo Róque!, documentário sobre os 30 anos da banda Repolho, que estreou dentro da programação do Festival de Cinema de Chapecó e tomara que continue disponível em alguma plataforma de streaming.

Para quem não está ligando a verdura ao artista: Repolho é um grupo chapecoense, surgido em 1991 em torno dos irmãos Roberto (vocais) e Demétrio Parnarotto (guitarra), mais Anderson Gambatto (bateria). Vários baixistas e até um perfomer completaram a formação até 2010, quando lançaram o último de seus quatro discos. Nenhum deles vive de direitos autorais, mas o que – e onde e quando e como fizeram – o dinheiro não compra.

Graças ao Repolho, Chapecó (SC) cavou um lugarzinho na efervescente cena musical independente brasileira de década de 1990. Claro que pela música, um porco-pizza coberto por influências confessas de Graforreia Xilarmônica, Frank Jorge, Júpiter Maçã e Marcelo Birck, entre outros gaúchos tortos. E, principalmente, por tudo o que Queremo Róque! (pronuncia-se com o “r” fraco, como em “farofa”) mostra com carinho e sem saudade.

O projeto de um curta aprovado em edital municipal em 2019 virou um longa feito a partir do acervo da banda, com mais de 70 horas de vídeos de show, ensaios, gravações de discos, entrevistas e videoclipes, fotos, recortes e alguns cadernos velhos com as letras das músicas escritas à mão. Sabe-se lá o que o diretor Jivago Del Claro deixou de fora, porque os quase 90 minutos editados são fantásticos. A única coisa em ordem é a cronologia.

Sério, o resto é inacreditável, de tão absurdo. Roberto e Demétrio improvisando um acústico em um estúdio de rádio diante dos quatro Los Hermanos atônitos. O show feito logo depois do atentado de 11 de setembro, em que montaram duas torres de papelão no palco e dois integrantes vestidos de árabe as destruíam a cabeçadas. A plateia urrando o refrão que batiza um dos clássicos da banda, “Porcona”. As gambiarras. O contexto.

Nada supera, porém, as aparições nas TVs locais. Na mais surreal delas, um Roberto vestido de paletó xadrez amarelo dedilha um violão feito com um latão de tinta e bate em um atabaque enquanto grita algo semelhante à música, para mal-estar das apresentadoras em seus tailleurzinhos. A “colonagem cibernética” do Repolho resumida em um programa da conservadora “capital do oeste catarinense” gravado em VHS: choque, ironia, caos e, acima de tudo, descaramento.

Ou, conforme as reportagens abusavam de repetir, irreverência. O substantivo devia se aplicar no caso do Repolho não apenas como sinônimo de besteirol, e sim em sentido literal, a falta de respeito – com o estabelecido, com a ideia de bom gosto, com os limites do que é música, consigo mesmo. “Dizem que o que é bom dura pouco. A gente está aí até hoje para provar que o Repolho é ruim mesmo”, provoca Roberto no final do documentário.

PS: Em 1994, ao escrever para o meu fanzine sobre Repolho e a Horta da Alegria, a primeira fita demo profissional da banda, lasquei um “periga virar cult”. Para mais dicas proféticas, procure-me nas redes sociais.

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PLAYLIST | como acontecem coisas que a gente nem prevê



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20211020

Onde germina a semente da inovação



Na acirrada disputa pelos produtos e serviços que redesenharão o mundo pós-pandemia, um modelo inovador em sua simplicidade – ou simples em sua inovação – promete se transformar no próximo filão nos centros urbanos. É o Espaço Acolher, um pomar em que o próprio cliente colhe a fruta. As crianças adoram. Os pais bancam. Todos se divertem. “E voltam renovados para casa”, completa o idealizador Carlos Antonio de Oliveira, 34 anos. “Tudo graças a uma galinha”, suspira.

Caô, o siglema com suas iniciais pelo qual é conhecido entre os traders do mercado financeiro, sempre teve o espírito inquieto típico de sua geração e classe social. Filho único de um casal de advogados de classe média alta, não terminou nenhuma das três faculdades que cursou. Aprendeu na prática, dando a cara a tapa. “O empresário brasileiro é um guerreiro, praticamente paga para trabalhar”, desabafa o ex-sócio de uma temakeria em shopping center, um food truck de hambúrguer gourmet e uma padaria artesanal.

Foi quando descobriu o bitcoin, em 2018. Caô ouviu dizer que, para se dar bem naquele negócio, o segredo era minerar. O alto consumo de luz foi fácil de resolver. Ele montou seu QG no sítio da família, nos arredores da cidade, onde instalou uma microcentral hidrelétrica na corredeira que atravessa os fundos do terreno e painéis de energia solar nos telhados da Casa Grande. Difícil mesmo foi achar a mão de obra pelo salário mínimo oferecido. Acabou fechando com um incel por R$ 2 mil mensais, sem carteira assinada.

Mas Caô nunca foi de se acomodar com o dinheiro que, se não ganhava com criptomoeda, jazia da conta dos pais. A vontade de ter um propósito e deixar um legado o atormentava. Até que recebeu uma visita inesperada na tarde do terceiro sábado de setembro de 2020. Apesar da pandemia, não tinha como recusar: era um amigão recém-separado, destruído pela mulher que o trocou por outra. “Sei a data certinha porque aquele era o final de semana dele com o filho”, lembra. Mal imaginava ele que estava abrindo a porta para o seu futuro.

Solteiro profissional, Caô morava na antiga casa da avó. Com exceção dos halteres e da coleção de armas que dividiam um dos cômodos, não havia nada que pudesse entreter o menino de seis anos para os adultos falarem em paz “daquela vaca”. Ou melhor, quase nada: junto com um teto para chamar de seu, ele havia herdado a galinha que a falecida criava como um pet. Bastou destrancar o galinheiro atrás da dependência de empregada e a criança ficou hipnotizada com o monte de penas cacarejando e correndo errante pelo quintal.

“O moleque nunca tinha visto uma galinha de verdade”, garante Caô. O fascínio do guri com uma criatura tão prosaica reavivou nele a chama do empreendedorismo e, com o perdão do trocadilho, tornou-se seu ovo de Colombo. O plano inicial era construir um local em que os pequenos participariam de todo o processo de metamorfose de galinhas, porquinhos e bezerros em comida para os humanos. “Infelizmente, a sociedade ainda não está preparada para uma disrupção dessas”, lamenta-se.

Da frustração com a hipocrisia, o projeto evoluiu para uma alternativa similar envolvendo apenas vegetais. Em vez de sangue, ossos e bifes, suco, sementes e geleias. Nascia o Espaço Acolher. O ponto escolhido foi uma gleba de dois hectares em um bairro perto do centro, outro – ops! – fruto da herança da avó, em que Caô pretendia cultivar maconha para fins medicinais. Como a legalização da erva emperrou, o mato e o MST ocuparam a área improdutiva. Não por muito tempo.

Ajudado por um esquadrão especializado em proteção patrimonial, ele expulsou os invasores, com o cuidado de manter as bananeiras, goiabeiras e limoeiros que eles haviam plantado. Para diversificar a oferta, Caô providenciou árvores já crescidas, totalizando 12 tipos de frutas, como maçã, manga, abacate, bergamota e acerola. “O nome veio quase automaticamente, sugerindo tanto a acolhida quanto a colheita”, explica. A microempresa estava pronta para operar.

“Microempresa, não. Somos uma startup telúrica, usamos a tecnologia da terra”, corrige Caô, afinado com o vocabulário da economia criativa que soa como música para os anjos do setor. Nessa novilíngua, o Espaço Acolher é muito mais do que uma feira em que o freguês arranca a fruta diretamente do pé. “O que disponibilizamos é uma experiência sustentável, orgânica e consciente da jornada do alimento do solo até a mesa do consumidor”, explica ele.

Os produtos colhidos podem ser devorados no próprio estabelecimento ou levados para casa – não sem antes serem pesados e cobrados, a preços que variam de R$ 5 (limão galego) a R$ 99 (pitaia) o quilo. Uma monitora informa as propriedades nutricionais de cada fruta e um vigia fiscaliza para que ninguém coma nada sem pagar. Ambos são expressamente proibidos de encostar em qualquer criança. “A intenção é que os pais se integrem à atividade, ajudando os filhos a subir nas árvores”, justifica. A empresa não se responsabiliza por eventuais quedas.

O excedente é vendido para uma fábrica de ração. O que apodrece, doado para instituições de caridade. “Se cada um fizer a sua parte, tem comida para todo mundo”, acredita Caô. Quanto investiu, ele não fala nem sob tortura. A expectativa é de recuperar o valor aplicado até o final de 2022 para, então, definir os passos seguintes. Otimista, o empreendedor não descarta um retorno às suas vocações originais. “Dependendo do que acontecer com o Brasil, cogito plantar maconha”, revela. “Ou simular um matadouro animal, talvez até com a possibilidade de atirar nos bichos.”

***

A história acima é fictícia, mas Caô é o que mais tem por aí.

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Vapor barato



Dá um trabalho danado fingir que não me importo com as novidades musicais. Na verdade, não suporto ficar longe dos lançamentos. Tento ouvir todos que (me) importam, principalmente os nacionais. Se não falo deles por aqui, é porque não me tocam o coração. Feito o esclarecimento, saúdo a chegada de Maya, terceiro disco do pernambucano Tagore. É o tipo de som que aquece, alivia e leva para uma dimensão prazerosa.

Confesso que ainda não sei se é um artista solo ou uma banda. Tagore é o nome do vocalista (completado pelo não menos fantástico sobrenome Suassuna), mas foi como grupo que encarei o quinteto no show que vi em Florianópolis em abril de 2017. Assisti-lo ao vivo confirmou as melhores impressões que eu já tinha do álbum Pineal: no palco, a psicodelia ganhava cores e timbres mais vibrantes.

Talvez tenham sido as doses de cachaça defumada; o fato é que saí da extinta Casa de Noca, na Lagoa da Conceição, flutuando até despertar em uma loja de conveniência atrás de um saco de batata frita, em uma situação famélica que a memória guardou como bestial devastation. Aquela sensação se renova e se expande agora, sem o Tame Impala a lhe fazer sombra nem despertar comparações sempre desfavoráveis.

A banda australiana era uma referência tão forte no trabalho anterior que havia uma música chamada “Apocalipse Jeans” – uma brincadeira com “Apocalypse Dreams”, dos aussies. Enquanto os cangurus se tornaram mais sintetizados, Maya acentua o que só o Tagore tem: uma lisergia agreste, às vezes brega, sempre agradável. Além da faixa-título, recomendo “Olho Dela”, “Areias de Jeri” e “Molenguita”. Para os já iniciados, a pedida é “Espaço Tempo”. Consuma sem moderação.

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Efeitos um para o outro


Sou um ignorante (também) em audiovisual. Não vejo filmes ou séries para refletir nem para me conscientizar sobre coisa nenhuma. Só quero me distrair durante algumas horas. Foi nessa condição que enfrentei os oito episódios de Nove Desconhecidos (Amazon Prime). Portanto, releve quaisquer besteiras que ler a seguir.

Uma escritora frustrada, um jovem casalzinho, um ex-jogador de futebol americano viciado em oxitocina, um gay na fossa, uma mulher abandonada pelo marido e uma família (pai, mãe e filha) traumatizada pelo suicídio do filho vão para uma clínica em busca de cura, conforto, consolo ou esperança. Tudo sob os cuidados de Masha (Nicole Kidman), a etérea e doentia dona do pedaço.

Ora, todo mundo sabe ou devia saber que se enfiar no meio do mato para consertar a cabeça é roubada. No caso deles, a ficha custa a cair porque a Tranquillum House é um spa de luxo e porque são submetidos a um tratamento com psilocibina, LSD e MDMA. Quando cai, é sensacional. E o final surpreendente redime o primarismo com que a série aborda a questão das terapias à base de drogas.

Em tempo: a música tema é uma versão em 50 tons de cinza de “This Strange Effect”, dos Kinks, cometida pela banda Unloved. Sou mais a releitura indie sussurante da dupla The Shacks, conforme você pode conferir na playlist desta edição.

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PLAYLIST | antes de ela te dizer que é tarde demais



Começa no macio, no gostoso. Emenda com uma delicinha. Inunda o ambiente de aromas e sofrência. Emerge pop. Amadurece sem perder o frescor. Desencana. Termina comendo haxixe. Parece interessante.

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20211013

Jamais deixe de tomar banho de mar



Todo mundo tem uma foto de quando era criança para publicar hoje. Bochechuda, fantasiada, fazendo pose com o brinquedo favorito. Todas muito fofas. O que talvez seja mais difícil escolher é quando deixou de ser criança. A descoberta, a atitude, a percepção que disparou o processo – dali para frente, nada mais seria como antes. Idade não conta, muito menos o ano em que parou de esperar presente neste dia.

Pelos pubianos, beijo na boca, imaginação. Música alta, chave de casa, juízo. Trabalho, cartão de ponto, salário. Tento determinar a despedida da minha infância e só vêm sexo, noite e dinheiro. Que mal, queria algo mais… inocente. Decepcionado, esqueço. É feriado e estou caminhando na praia, nem aí para o céu cinza: é minha primeira vez sem máscara desde fevereiro de 2020. Nada me incomoda.

De um lado, casas e condomínios avaliados em cifras superiores aos ganhos de uma vida inteira de 99% dos cidadãos comuns formam um paredão de muros (a maioria de vidro, pelo menos) interrompido apenas por algum terreno baldio à venda e pelos bares e restaurantes que tomam conta da areia à medida que o centrinho se aproxima. De outro, o mar, com as águas escuras mexidas pelo vento.

Diz a regra que turista vai à praia com qualquer tempo, para aproveitar o investimento. Mas a única presença garantida, mesmo com este clima, é das caixinhas de som das mais variadas procedências. Não demora muito para aparecer uma, trazida por rapazes e moças com copo na mão e também sem máscara. Pelo repertório e pelo volume, trata-se de um caso típico do que os sociólogos do futuro classificarão de “presunção da unanimidade”.

Pode reparar. O fã de gêneros musicais considerados extremos nunca põe sua trilha sonora a uma altura que afetará os desconhecidos ao redor, porque tem noção de que não são todos que curtem. O cara que escuta estilos mais populares, não. Ele chega e bota o som no talo, convencido de que seu gosto é universal. Experimente reclamar: periga receber um “desculpa, você não gosta de música?” em tom passivo-agressivo.

Não corro esse risco, tenho minha playlist. O modo randômico despeja “Choosing My Own Way of Life” no fone de ouvido e fica engraçado ver as pessoas dançando o Suicidal Tendencies que rola somente para mim. Continuo andando, alheio aos sucessos das paradas como as aves que mergulham atrás de peixes e emergem com o bico vazio. Depois de duas, três investidas, parece que estão se divertindo, sem se preocupar com comida.

O vento se intensifica, as nuvens escurecem, a temperatura cai. Marmanjos fogem correndo, a criançada permanece tomando banho. Para qualquer uma delas, a água é imprescindível. Calor ou frio não passam de convenções inventadas pelos adultos para conferir a funcionalidade de se refrescar a uma coisa que deveria estar exclusivamente ligada ao lazer. Bingo! Deixei de ser criança quando parei de entrar no mar sempre que ia à praia.

Nem por isso saio seco. Começa a chover o suficiente para me encharcar enquanto mantenho o ritmo. Sem pressa, tiro a camiseta, levanto a cabeça, respiro fundo e sinto cada pingo misturado com areia pelo corpo inteiro. Volto para casa redimido, acreditando que, de alguma forma, o menino que fui ainda resiste.

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Onde queres dinheiro sou paixão



Informam as gazetas que Maria Bethânia vai estrear na publicidade. Especula-se que a cantora de 75 anos de idade e 56 de carreira teve de 1,5 a 2,5 milhões de motivos para topar fazer propaganda de uma plataforma de investimentos. As primeiras peças, dirigidas ao 1% do topo da pirâmide, devem ser veiculadas até o final de ano.

Há rumores também de que Chico Buarque foi cogitado pelo cliente, mas vetado devido à sua militância de esquerda – como se já não existisse um banco específico para comunistas aplicarem o capital que expropriaram da burguesia [risos]. No fim, optou-se por um nome distante e acima da polarização que opõe civilização e barbárie neste ex-país tropical abençoado por Deus e bonito por natureza.

Nada contra, embora ser taxado de neutro atualmente talvez não seja o melhor elogio. Todo artista tem o direito de assegurar uma velhice confortável vendendo os direitos de suas obras ou anunciando produtos que não consome. Só espero sinceramente que não a usem para exibir cartão ou celular para a câmera, uma praxe nas campanhas de empresas financeiras.

Ela terá a concorrência de outras celebridades que emprestam a imagem para oferecer maiores rendimentos ou empréstimos com a menor taxa de juros do mercado. Resta saber se o público-alvo vai priorizar a credibilidade de uma das maiores damas da MPB ou a juventude de Anitta, Gisele Bündchen, Isis Valverde e Marina Ruy Barbosa na hora de decidir onde colocar seu dinheiro. Como a própria Bethânia alerta na canção, “há um lado carente dizendo que sim, e essa vida da gente gritando que não”.

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APARELHO | E, para finalizar, um papo carícia



A direita, perplexa. A esquerda, desnorteada. E nós – que não temos mais tempo a perder com a voz, o sotaque, a carantonha, as mentiras e o pum do palhaço – ficamos felizes e satisfeitos por conseguir passar quase uma hora e meia sob o domínio do freestyle. Em ritmo de férias, sem roteiro, sem dogmas, dobermans nem dálmatas, começamos com X-Men, beliscamos os mamilos do Batman, louvamos David Lee Roth e discutimos os poderes de Dio. Tudo para desembocar na “revista da garota que vai à luta”, testemunho impresso de uma época risonha e franca. Até a volta, aparelhers!

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PLAYLIST | nego não paga veneno



Seleção com algumas faixas que tocaram durante o passeio na praia. Idiossincrática, não linear e um tanto surpreendente, como um caráter moldado pelo vaivém das ondas.

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20211006

Quando a gente enfim se reencontrar



Cumprido o resguardo para a segunda dose completar a imunização, só penso em retomar. A velha vida, digo, não esse novo normal imposto pela pandemia, acentuado pela cretinice presidencial e edulcorado pela publicidade [anotação mental: como “novo” se tornou uma camuflagem para reproduzir os defeitos de sempre e mais um, a inexperiência, e não apenas na política]. Um combo de ansiedade e dúvidas me atormenta, na cacofonia de orientações preventivas ficou difícil separar informação de ruído ou exagero. Cada um estabeleceu suas próprias regras, tem gente que há meses já está fazendo de tudo. Mas foi para poder voltar a sair sem medo de morrer e matar que me vacinei e não vejo a hora de reencontrar você. Aonde? Aquele bar que servia uns drinques legais ainda existe? Tem que ser algum lugar com mesa ao ar livre? Também não sei que roupa usar, é tanto tempo de moletom com camiseta desbeiçada que quando me visto com jeans e camisa não me reconheço mais. Só sei que vai ser pouco para botar em dia o papo que desde março de 2020 se dissipa pelo whats, e eu detesto a função que desabilita os risquinhos azuis. Então vou contar que penei para me arrumar para esta ocasião especial, lembrar nossa última vez e suspirar, aliviado. Olha, parece que esse dia nunca ia chegar. Nem posso me queixar, tirando um primo não perdi ninguém próximo. A mãe pegou em julho, escapou do pior por causa das duas Coronavac, ela e o pai estão esperando para tomar a terceira, Pfizer ou Astrazêneca. Eu falando em marca de vacina, que merda. Não passei aperto, em nenhum momento meu antigo empregador cogitou reduzir salário com home office rolando. Acabei engordando uns três quilos sem academia. Comecei a fazer uns abdominais em casa, em três meses enchi o saco e parei. Até tentei continuar correndo na rua, mas de máscara é um pesadelo para o fôlego. Caminho umas três vezes por semana, mais para me movimentar do que para suar. No final de setembro voltei com os abdominais para adiar o irreversível. O cabelo não cortei mais, vou deixar crescer, montar uma banda e andar muito louco por aí. Li, leio bastante, não fico sem. De recente e nacional, gostei muito de O Avesso da Pele, de Jeferson Tenório. Foi superelogiado pela crítica, é um filho narrando a história do pai, um professor, família negra como o autor. O racismo entranhado em cada parágrafo de um jeito que dá raiva e vergonha e revolta, livraço. Mais antigo e gringo, Desonra, de J.M. Coetzee, prêmio Nobel e o escambau, já tinha ouvido falar mas nunca lido. É um professor, agora que reparei na coincidência, divorciado que se envolve com uma aluna, é demitido por isso e se refugia na fazenda onde mora a filha natureba, com quem mantinha uma relação conturbada. Péssima ideia, ele se afunda ainda mais na desgraceira. Livro bom não falta, se quiser depois mando uma lista. Fui dispensado em fevereiro, arrumei outro trampo em maio e pedi as contas em julho. Meu recorde anterior era três meses, por acaso para um tipo de serviço da mesma laia. Preciso me ligar, o problema é que se evitar o autoengano quase não sobram opções. Troquei o desalento pela franco-atiradoria, sempre aparece um frila para pagar os boletos. Para desopilar, participo de dois programas semanais no YouTube. Logo eu, que coisa. Mandei o link, deve ter passado batido no meio daquelas figurinhas. Curtição, nada de mais. Ah, e a newsletter, já assinou? Inventei para me obrigar a escrever. Estou animado, não me pergunte por quê.

Agora me fale de você.

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Elos nada perdidos



Saudades do quê? – Em artigo sobre Renato Russo, o rock brasileiro e o bolsonarismo, o escritor Michel Laub detecta uma curiosidade já ridicularizada no Aparelho: a predominância reaça nos comentários – positivos – de clipes de artistas dos anos 1980 no YouTube. Basicamente, é um público com sérios problemas de interpretação de texto e de caráter, o que não livra os protagonistas da época de uma revisão histórica. Fica a constatação de que “o conceito de lugar de fala, seja em sua acepção correta (identificar a origem de quem emite um discurso), seja na deturpação caricata (limitar a criação artística à experiência pessoal de quem a produz), é um dado inescapável do nosso tempo”.

Cancelando a cultura do cancelamento – Assunto velho, revisitado pelo colunista Ronaldo Lemos em função da participação da jornalista e historiadora americana Anne Applebaum no final de setembro. A autora do livro O Crepúsculo da Democracia condena o tribunal da internet em um recente artigo chamado “Os Novos Puritanos”. Tudo muito razoável e ponderado e tal, mas o que me chamou a atenção mesmo foram as três notinhas finais, que anunciam a volta do CD, inclusive com a reabertura da saudosa loja Tower Records. Como proprietário de alguns milhares de exemplares dessa mídia tão desprezada hoje, folgo em saber.

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APARELHO | É um negócio porque é um negócio



Em mais um passo importante rumo à alienação-cidadã que todos perseguimos, a torta salgada é o ponto de partida para um rolê aleatório em que vale tudo, menos deixar a escumalha que transformou o Brasil em um ex-país alugar nossas cabeças. O detox inclui violões no recreio, influencers, séries, algoritmos e códigos culturais, retornando à gastronomia para fechar o ciclo com as indigestas engronhas calóricas apreciadas nos Estados Unidos. Isso é que é qualidade de vida!

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PLAYLIST | baile da confusão



As pessoas vêm e vão, por quê? Por causa da cor da pele. Correm, correm, correm, mas não conseguem se esconder. Olho por olho, dente por dente, “vote em mim e eu te libertarei!”. Falem, irmãs, falem. Mas a única pessoa que fala em amor, irmão, é o padre – e parece que ninguém está interessado em aprender, senão o professor. Segregação, determinação, demonstração, integração, agravação, humilhação, obrigação para com a nossa nação. Baile da confusão: é isso que o mundo é hoje.

As vendas de drogas estão mais altas do que nunca e jovens andam por aí com a cabeça no céu. A cidade ferve no verão. E o ritmo continua. Evolução, revolução, controle de armas, o som da alma, foguetes lançados à lua, crianças crescendo rápido. Vamos girando e girando. Para onde o mundo vai, ninguém sabe.

Medo no ar, tensão em todo lugar. O desemprego cresce rápido, o disco novo dos Beatles é do caralho e o único lugar seguro para se viver é uma reserva indígena. E a banda continua. Noite de destruição, dedução de impostos, inspetores municipais, cobradores de contas, roupas chiques à venda, população desamparada, suicídio, muitas contas, yuppies indo para as montanhas e as pessoas por todo o mundo gritam: “Parem a guerra!”. E a banda continua. Grande Gugaluga, você não percebe que eu estou falando contigo?

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