20220125

O (pouco) ser e o (bastante) nada



Estava pronto para falar de um fato histórico que hoje completaria exatos 20 anos. Reli reportagens, selecionei algumas informações e me sentei para batucar o texto. No processo de lembrar sons, cheiros, cores, roubadas, vícios e malhos da época, vou me reencontrando também com quem eu era, como me sentia, o que almejava – e fico emocionado de verdade. Suspiro, tomo um café para me recompor, leio de novo o que pesquisei e, prestes a começar, faço uma descoberta que muda radicalmente o planejado.

Foi em 2001, não em 2002.

Impressionado com o poder da autossugestão, rio sozinho de mim mesmo. O bom de deixar as coisas para o último minuto é que a urgência torna tudo mais prático. Não há bloqueio criativo que resista à pressão do tempo. O tema desta terça caiu e eu poderia estar na praia postando stories sobre como o stand up paddle comedy me transformou em um vencedor, mas as únicas coisas que estão vencendo na minha vida com este calorão são o prazo, o desodorante e o carisma.

No cabeçalho, o número me encara. Tenho pena dele. Sempre gozou do status místico inerente aos primos (e ele ainda por cima é o sétimo!) terminados em 7, até pertencer à besta no Brasil. Como se livrou da maldição que por pouco não o condenou à danação eterna, porém, acho que já dá para pensar em reabilitá-lo. É uma dezena qualquer, apta a ser devolvida ao convívio em sociedade sem assustar mais ninguém. Jamais esquecer, jamais perdoar – e jamais se apegar a superstições tolas, por favor.

Aproveito que estou no modo racional para me afastar da tentação de analisar a política com a profundidade da poça que a formiguinha de Nelson Rodrigues atravessava com água pelos joelhos. Devo essa ao superego. Eu que não vou competir (e perder) em um viés tão abrangente e disputado que se aplica a quaisquer aspectos da odisseia humana. Registro apenas que minha inveja de quem politiza Iron Maiden é maior do que a versão de “The Rime of the Ancient Mariner” do disco Life After Death.

Ao lado do notebook, os riscos na lista das pretensões do dia me animam. Faltou ir ao centro, caminhar no parque, botar a roupa suja na máquina. Culpa do sol, o mesmo que inspirou Albert Camus que inspirou Robert Smith e me impediu de gabaritar em uma jornada produtiva. Cada um no seu quadrado: um na literatura, outro na música, eu na banalidade. Desafio o termômetro, tomo outro café e me encaminho para o ponto final. Anoitece em Florianópolis e eu só quero derreter.

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Seus heróis morreram de cretinice



O que desgraça a minha cabeça nesse furdunço do Novak Djokovic é tudo.

O número 1 do ranking do tênis mundial ia jogar na Austrália, onde só entram vacinados. Não um torneio comum: o Australian Open, do qual ele é o maior vencedor, com nove títulos, e atual tricampeão. Se ganhasse esta edição, além de tetra, iria se tornar também o jogador mais vitorioso da história do Grand Slam, o conjunto dos quatro torneios mais importantes do tênis.

Mas Djokovic não apenas não se vacinou como faz campanha contra a vacina. Estava criado o impasse que, em circunstâncias normais, seria facilmente superado. Mesmo esperneando, ele se vacinaria e no dia seguinte a mídia estaria reafirmando seu favoritismo. Em vez disso, rolou uma série de voltas e reviravoltas que culminou na deportação dele do país.

O que o sérvio perdeu ao não abrir mão de sua liberdade de contaminar geral extrapola os âmbitos esportivo e econômico, embora nenhum patrocinador ainda tenha se incomodado com o seu comportamento. O que ele ganhou: o posto de herói do movimento antivacina, além de um apelido muito melhor do que Djoko. É muita força de vontade de errar.

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APARELHO | Faça a/o (coisa) (adjetivo) novamente



Depois de tostar aquele que deixou a Cristina Prochaska (cheirar é coisa de aspirante, aqui só tem profissional), entramos numa ciranda de maluco regada a corote. É incrível como a simples menção da bebida imunizante abre um portal para o infinito! A diversidade conceitual – espraiada por autógrafos na era do selfie, reforma trabalhista e Faustão – converge para a única maneira de sobreviver em um país que já transcendeu tanto a lucidez que ficou translúcido. Não, não cobice o nosso tirocínio: alopre como (e com) a gente!

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PLAYLIST | sinta como é infinito



O céu é tão bonito, pra quê chorar?

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20220115

Movido a sonho até 2023



A partir de hoje, estou apto a receber a terceira dose da vacina. O reforço coincidiria com a abertura lenta, gradual e segura adotada naturalmente à medida que foi aumentando o percentual da população imunizada. No verão da ômicron, será o contrário: o que era para ser um momento de júbilo & regozijo por representar mais um passo rumo à pretensa normalidade só me desperta ranço & preocupação. Vou tomá-la ciente de que máscara, álcool gel e isolamento ainda me acompanharão por muito tempo.

Depois da recente explosão no número de casos, conheço mais gente com covid do que com carteira assinada. Dessa vez, não são CPFs negacionistas que posso julgar sem nenhuma empatia. É gente esclarecida, que estava se cuidando, seguindo todas as recomendações para conciliar vida e sobrevivência – gente como eu, apenas com um teste de diferença. Quanto mais informação, menos certeza. A única garantia é que quem se vacina morre menos.

O bode é outro. Não quero falar da pandemia. Porque se falar da pandemia, falarei de política. E se falar de política, repetirei o óbvio. Não tem como debater, discutir é validar a estupidez. Eu estava tendo razoável sucesso nesse detox existencial até a nova variante disparar o gatilho. Um misto de revolta e desânimo, raiva disfarçada de impotência com sintomas de síndrome do impostor. É muita energia ruim contaminando a inspiração, isso não pode me fazer bem.

Pior me sentirei se mudar de assunto. Eu devia estar contando da minha última caminhada na praia sem máscara, do nhoque de mandioquinha delicioso que provei, de como era maravilhoso o Rio de Janeiro do primeiro capítulo da série sobre Nara Leão. Ou do frila de designer que desenrolei, do livro sob encomenda que começarei a escrever, dos meus avanços no xadrez online. Cá estou, porém, exercendo minha condição humana, demasiadamente humana. Qual seja, praguejando.

Tudo o que podia fazer de errado no ou contra o combate à pandemia, o PR [risos] fez com força – e vai continuar fazendo. Enquanto ele estiver por aí, o vírus também estará. Mais do que meus pequenos prazeres, eu devia estar contando como consegui mudar meu mindset e ver o copo meio cheio na política. Já torci por impeachment e prisão, hoje me agarro na esperança de este ser o último ano dessa aberração no poder. O que perdi jamais recuperarei, mas preciso voltar a sonhar.

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Universo em desencanto



Resistir aos homens bestiais – Bela coluna do escritor Julián Fuks sobre a decisão de “vida ou morte, de trégua ou violência, de uma mínima tranquilidade ou o agravamento do caos” que nos aguarda neste ano. A parábola da vaca que aprendeu a se defender dos lobos (tirada do livro A Viagem do Elefante, de José Saramago) é uma porrada, a conexão que o autor faz dela com a nossa realidade dói mais.

Quem lê tanta notícia? – O jornalista Marco Antonio Barbosa (o Bart!) já tinha ido fundo quando se debruçou sobre a evolução do ranking das 500 músicas de todos os tempos da revista Rolling Stone. Agora, além de análise, faz uma autoanálise. Entre funis e influencers, a descoberta amarga, mas libertadora:

Só culpo a mim mesmo pelo fracasso. Vivi por muito tempo uma ilusão meio esquizofrênica; a crença de que minha carreira atual como conteudista corporativo era um mero desvio de percurso, e que minha real vocação — escrever sobre música, cinema, livros, comportamento etc. — um dia seria retomada. Por isso, insisti tanto tempo nessa vida de publicar coisas na internet. Vai que aparece uma oportunidade, alguém importante lê, vai que alguma coisa acontece? Nesse ínterim, envelheci, vi pessoas mais jovens ascendendo nos escalões das redações, ganhando prêmios, fazendo trabalhos bacanas, lançando livros e filmando documentários. Eu fiquei por aqui mesmo. Não é que eu tenha perdido o bonde da história; eu nem cheguei a pisar na rua onde o coletivo passava.
É duro admitir, mas as pessoas não têm interesse no que escrevo.

Cultura do fingimento – Deu no Fantástico, então todo mundo já conhece Elizabeth Holmes, a menina-prodígio do Vale do Silício que arrecadou milhões de dólares para a sua startup. A tecnologia da Theranus prometia detectar centenas de doenças com uma simples gota de sangue. Nunca funcionou direito e ainda prejudicou um monte de pacientes com diagnósticos errados. A ex-“futura Steve Jobs” foi condenada por fraude. Por acaso, no ano passado li Bad Blood: Fraude Milionária no Vale do Silício, livro sobre o caso. Chega a um ponto em que absolutamente todos os envolvidos sabem que tem engodo. Quem questiona, é demitido. Quem botou dinheiro, espera retorno. A empreendedora, cada vez mais paranoica e crente na própria mentira, sustenta a farsa até o fim. O artigo levanta a hipótese de ela ser regra, não exceção.

Cine sensitivo – Filme de 1973 imaginou o mundo em 2022 e acertou muito.

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APARELHO | Imagina no ano que vem



Primeira edição do ano, ainda impregnada por desassossegos provocados por artistas que gostavam de destruir escolas em seus videoclipes. Lá pelas tantas, surge a pergunta incontornável: e se essa coisa horrorosa for reeleita? Um frêmito de choque e pavor percorre a espinha de cada aparelher com a possibilidade de mais quatro anos de pesadelo. É bom nem cogitar para não atrair. Ou mudar de assunto, como armar para cobrir a posse do nosso presidente em Brasília. O homem nem assumiu ainda e já está fazendo o povo ter planos novamente!

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PLAYLIST | tanto querer, tanto sim



Sem deixar para depois.

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20220109

Um monumento ao estado mínimo



As principais casas noturnas do loteamento anteriormente conhecido como Jurerê Internacional anunciam a programação do verão. O sertanejo impera. Eu não entendo um monte de coisa envolvendo dinheiro, classe social e gosto, mas a maior atração não natural da estação em Florianópolis não aparece em nenhum outdoor da rodovia que dá acesso ao Norte da Ilha de Santa Catarina nem cobra ingresso. Basta seguir reto toda vida até a praia de Canasvieiras, onde em 21 de dezembro foi inaugurado um chuveiro de uma loja famosa pela fachada e pelo ativismo de seu dono.

Tudo na obra é emblemático e impressionante. De perto, é bem mais alta do que as fotos de divulgação sugerem. Dentro, um cidadão de bem de estatura mediana em pé com os braços esticados para cima fica longe de alcançar o teto. A estrutura repousa sobre o aterro que a prefeitura improvisou em 2016 para impedir que o Rio do Brás, poluído por ligações de esgoto irregulares, desemboque no mar. Ao lado, banheiros químicos (sem relação com a marca) completam o serviço. E, coroando a paisagem como uma Capela Sistina da distopia pós-capitalista, o formato.

De acordo com a autoridade competente, houve uma licitação para a instalação do equipamento, essa licitação foi vencida por uma empresa e essa empresa negociou a exploração comercial do equipamento com a loja famosa. Quem quiser mais detalhes deve aprender raspagem de dados, porque uma simples pesquisa no site da prefeitura não retorna resultado algum. O que se sabe até agora é que o protótipo inicial teve que ser reduzido de nove para seis metros quadrados e de quatro para dois chuveiros e, está na cara, não existia nenhuma exigência estética quanto ao projeto.

Antes de reclamar do estilo arquitetônico que caracteriza a loja famosa reproduzido sobre a areia, o florianopolitano mais comedido se lembra que em temporadas passadas já viu chuveiro em forma de choperia e agradece aos céus por alguma fabricante de camisinha ainda não ter se interessado pelo negócio. Como ação publicitária, é um sucesso: três dias depois de aberto à população, amanheceu pichado. O dono ativista atribuiu a “desordem e destruição” à extrema-esquerda e mandou repintar. Na mesma tarde, já estava tudo branquinho de novo.

Ninguém usou o polêmico chuveiro durante os 43 minutos que dediquei à contemplação de sua magnificência. As pessoas saíam do mar, passavam em frente, olhavam e continuavam o rumo. Três camelôs, alheios ao desinteresse geral, aproveitavam a sombra da construção. Aí resolvi bater umas fotos para ilustrar este relato. No mesmo instante, um casal tirou uma selfie com o troço ao fundo. Em seguida, uma mulher e uma criança fizeram o mesmo. De repente, eu só ouvia o clique dos celulares rivalizando com a cacofonia das caixinhas de som. Era como se eu que houvesse deflagrado o processo.

Saí correndo, apavorado. Enquanto me culpava por fazer meus semelhantes perderem a vergonha do ridículo, pensei no futuro. A previsão é de que o equipamento permaneça na praia até o final de janeiro. O dono ativista afirmou já ter recebido pedidos para repetir a ação por todo o litoral brasileiro. Espero sinceramente que reveja seus planos e, com a boa vontade da administração municipal, fique por ali em definitivo. Até o dia em que o Rio do Brás reivindicar seu curso natural e só restem ruínas, como um monumento à civilização que normalizou a barbaridade.



PS: Embora careçam de checagem os rumores de que quem toma banho no supracitado chuveiro imediatamente começa a acreditar em cloroquina e em meritocracia, não me arrisquei.

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Autoclipagem (ou Tudo o que me cita me excita)

O jornalista Mateus Mello cometeu uma reportagem sobre grandes discos da MPB que completam 50 anos em 2022 e fez o favor de me consultar como uma das fontes. Entre outras unanimidades, citei Acabou Chorare (Novos Baianos), Clube da Esquina (Milton Nascimento, Lô Borges etc), Expresso 2222 (Gilberto Gil) e, para gáudio da oposição, Transa (Caetano Veloso). Normal, não tem muito como fugir disso.

Mas é como eu disse: em todos os anos da década de 2020 é possível repetir a pauta das obras-primas cinquentenárias da música brasileira. Em nenhum outro período foram lançados tantos clássicos quanto de 1970 a 1979. Felizmente, o colega teve a lucidez de entrevistar gente muito mais gabaritada do que eu para tentar explicar o porquê disso.

Quero também deixar registrado o elogio à organização que ele deu para o meu confuso discurso. Mal sei perguntar, que dirá responder. Inicio falando de uma coisa, não concluo e já parto para outra, um horror. Graças ao tino do repórter, do arrazoado que expeli emergem declarações com começo, meio e fim e – até eu me surpreendi – algum sentido.

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PLAYLIST | faz pose que não parece



Primeira seleta do ano, abençoada pela ausência de critério que rege a lenta adaptação ao fim do recesso. Pelo calor desses dias em Florianópolis, aliado à preguiça companheira de todas as temperaturas, deveria ter mais reggae. Jah só releva porque reconhece o esforço que foi chegar até aqui.

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