20210929

O Brasil vai voltar, nem que seja como nicho



Há 1001 dias que não tem como escapar. Do despertar ao adormecer, a qualquer momento vou me incomodar com política. Não dá para baixar a guarda: ao menor vacilo, personagens e ideias até então inconcebíveis distorcem a percepção, desconsideram o contexto e sequestram o debate. Por mais atento e forte que esteja, lidar com essa situação é especialmente sacal porque nem sempre foi assim.

Quem já se vacinou ou está prestes a tomar a segunda dose tem a referência de um outro país, com outras prioridades. Onde não se falava nem pensava em política de sol a sol porque havia um presente a ser desfrutado. Onde o sujeito fazia planos para crescer, em vez de se preocupar com manter o que já conquistara ou recuperar o que perdeu. Onde era possível relaxar, sonhar, viver.

A utopia de uma nação gentil e promissora aventada em canções como “Isto Aqui o que É (Sandália de Prata)” e “Brasil Pandeiro” finalmente se cumpria. O brasileiro cantava, era feliz e não se entregava. A gente bronzeada mostrava seu valor, a Casa Branca dançava com a nossa batucada e o mundo inteiro se rendia ao que a baiana tinha. O futuro nos sorria, nosso destino era brilhar.

Claro que a catástrofe atual alimenta a lembrança de um passado idealizado, em que leite e mel jorravam do meio das ruas afogando a desigualdade e a corrupção. Mas basta comparar para se chegar à conclusão de que o projeto vigente potencializa todos os defeitos dos anteriores e nenhuma de suas qualidades – da inclusão à mobilidade social; da leveza à esperança.

Apesar do niilismo paralisante, porém, teimo em acreditar na volta daquele Brasil. Não de forma plena, pois as criaturas abissais que emergiram do processo que nos trouxe até aqui sobreviverão à decomposição de seu criador. E sim como um nicho, tipo o que aconteceu com os Strokes. Quando saiu o disco de estreia da banda, eu era 20 anos mais jovem, achava que o rock ainda regeria o mainstream e não existiam redes sociais.

Deixa eu me iludir, por favor.

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Hipocrisia-moleque (sobras de redação)

Logo depois do carnaval de 1999, cruzei com um artista na fila do caixa em um supermercado em São Paulo. Nas gôndolas que nos cercavam, revistas populares destacavam as duas estrelas da folia daquele ano: padre Marcelo Rossi e Tiazinha. O religioso pudico e a dominatrix seminua (cria de Luciano Huck, loucura, loucura, loucura) dividiam quase todas as capas.

Ainda estava maravilhado com a combinação impressa de divino e profano quando o artista se manifestou. Já havia o entrevistado, mas a intimidade que ele demonstrou me surpreendeu. “Se avexe não, isso é a cara do brasileiro: o cristão de pau duro”, riu. Fico pensando em que momento o brasileiro trocou essa hipocrisia-moleque pelo papo-furado de “liberal na economia e conservador nos costumes”.

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Piada em debate



Que bom que volta e meia brotam textos para desmentir a velha crença de que escrever sobre música é dignificar uma bobagem. Afinal, é (também) para isso que pago a internet:

Top 500 da Rolling Stone: uma análise histórica – Marco Antônio Barbosa (o Bart!) mostra que os rankings das melhores canções de todos os tempos segundo a vetusta revista sempre disseram mais sobre o mercado e a faixa etária dos votantes do que sobre a qualidade artística das selecionadas. Se a lista mais recente comporta menos machos, brancos, roqueiros e anglófonos do que as anteriores, é porque hoje isso é bom para os negócios, não uma suposta rendição ao politicamente correto.

Para onde foram as bandas? – Na Gama, Leonardo Neiva investiga as razões da predominância de artistas solo nas paradas. É um fenômeno bem contemporâneo e, em se tratando de Brasil, ainda mais curioso se levarmos em conta que está cheio de ex-bandas em atividade no cenário nacional.

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APARELHO | Descontração sanitária acaba em arrebentação



Sob as bênçãos do infinito Ota, largamos a política e a CPI na estrada – não sem antes levantarmos a suspeita de que Rolex é a sigla para “Rolos do Exército”. Nossa tendência em falar de coisas sobre as quais não entendemos, entretanto, continua intacta: 11 de setembro chinês, trilha sonora de festa de comunista, a primeira vez de Nevermind, a hora da música lenta e o mistério da virada de bateria que surge quando menos se espera, entre outros temas. De falta de assunto ninguém morre aqui.

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PLAYLIST | no beiço da boca da noite



Playlist é como CPI: sabe-se como começa, nunca como acaba. Eu só vou no flow.

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20210922

A última cebola assada para viagem



Veja bem, eu precisava reagir. Eu estava, pode-se dizer, de volta ao reajuste de expectativas já tão elementares. Mas antes, para entender como entrei nessa, vale uma desviada até A Última Casa de Ópio.

É um relato de Nick Tosches para a revista Vanity Fair que virou um livrinho de 96 páginas lançado aqui em 2006 pela editora Conrad. A história começa com o jornalista no badalado restaurante italiano de um amigo em Manhattan. Ele está observando os cheiradores de rolha do ambiente quando lhe é servida uma cebola. Para ser exato, meia cebola Walla Walla (mais doce do que as comuns) assada e coberta com caviar. Custava 35 dólares. Pura, 10.

A mistificação de uma reles hortaliça como uma iguaria preciosa para justificar o preço leva Tosches a refletir. “A nossa era é, cada vez mais, a era do falso conhecimento, o modo pelo qual tolamente tentamos nos diferenciar da maioria medíocre”, escreve. Ele se recusa a participar desse universo de homens ocos como no poema de T.S. Eliot. Encorajado pelo que sente ser o “sabor do sopro da ilimitabilidade”, desencana:

Fodam-se este mundo de cebolas de 35 dólares e aqueles que as comem. Foda-se este mundo de otários pseudossofisticados, incapazes de reconhecer as melhores coisas da vida, quanto mais apreciá-las.
Tosches assinou também aclamadas biografias do roqueiro Jerry Lee Lewis, do ator e cantor Dean Martin, do boxeador Sonny Liston e do chefão do crime Arnold Rothenstein. Todas inéditas no Brasil, onde foi publicado apenas mais um título dele, Criaturas Flamejantes (um excerto de Country: The Twisted Roots of Rock ‘n’ Roll, sua grande obra sobre os primórdios do estilo). Morreu em 2019, aos 70 anos, sem revelar se A Última Casa de Ópio era fato ou ficção.

Procuro e não encontro uma cebola milionária para inspirar meus desatinos. É tanta frustração que fica difícil identificar a gota d’água, o estopim, o ponto que marca a ruptura com perspectivas vazias. Tosches decidiu viver: voou para o Sudeste asiático em busca do único lugar remanescente da milenar arte do consumo das “lágrimas de Afrodite” que batiza a história. Como não tenho bala nem bolas para tal, cá estou, com o compromisso renovado toda terça. Que saudade.

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...E o evento elevou



Em 2014, o U2 soltou o disco How to Dismantle an Atomic Bomb Songs of Innocence. Promovido como “o maior lançamento do mundo”, o álbum foi mostrado durante a apresentação do sexto modelo de um espertofone. No dia seguinte, estava disponível de graça nos celulares dos 500 milhões de clientes da loja digital da fabricante, mesmo de quem não tinha o menor interesse pela banda irlandesa.

Muitos se lembram dessa estratégia de marketing – e da aporrinhação que era para se livrar daqueles arquivos. Um número bem inferior de pessoas consegue citar o nome do disco ou do de qualquer uma de suas 11 faixas. Todo o frisson em torno do novo trabalho de um dos gigantes da indústria fonográfica se esvaiu assim que o resultado chegou ao público.

A história se repete com os recentes trabalhos de Marisa Monte e de Kanye West. Pelo tamanho dos envolvidos, receberam tratamento de eventos. Portas foi festejado simples e automaticamente por representar o retorno da cantora após dez anos. Donda, embora não esteja tão longe do antecessor (Jesus Is King, de 2019), teve pré-audições com o próprio rapper em estádios nos EUA e em carros de som espalhados pelo planeta.

Ambos ganharam ampla cobertura da mídia, mobilizaram fãs e ouriçaram toda uma cadeia produtiva, como convém a medalhões. Em seguida, desapareceram. Ou o orçamento para divulgação acabou, ou a música não convenceu. Não ouvi ainda. O desafio dos dois me parece muito maior do que ocupar espaços que o dinheiro pode comprar: chamar a atenção em um cenário que forja e descarta sucessos em velocidade tiktóxica.

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Um rosto na multidão



Não assisti a nenhuma live, não aprendi a fazer pão, não estudei outra língua, não comecei a tocar nenhum instrumento musical, não virei um primata melhor. As transformações pessoais que seriam provocadas pela pandemia só não foram um fracasso total para mim porque perdi a fobia de vídeo. Confinado direto em casa e louco por alguma interação social, estreei este rostinho encarquilhado em dois projetos de uma vez.

Um é o Aparelho, a revista que eu e os comparsas Alexandre Matias e Vladimir Cunha idealizamos na virada do século e nunca concretizamos porque a vida levou cada um de nós para um canto (salve, Emicida!). O que as circunstâncias separaram, o já consagrado advento da internet uniu em forma de bate-papo freestyle comigo em Florianópolis, Matias em São Paulo e Vlad em Belém. Sobe aos sábados, às 21h.

Outro é o Expresso com Martini, transmitido ao vivo às quintas a partir das 20h. Faço parte da bancada imaginária comandada pelo chapa Rafael Martini com o designer e ator Carlos Coelho – o xodó que conheci graças ao programa, irradiando afeto sob o céu paulistano. Sempre dividimos a conversa com convidados e conhecemos toda a nossa audiência pelo nome e sobrenome. Eu não poderia querer mais.

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PLAYLIST | a nossa onda de amor não há quem corte



Comentaria música por música se não tivesse um prazo a cumprir. Newsletter não é bagunça.

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