20230821

...Até a última ponta



A turma que manda e desmanda em Florianópolis tem uma ideia de desenvolvimento urbano muito peculiar. Nove em cada dez obras públicas priorizam o transporte individual. A outra ameaça alguma área verde. É o que está acontecendo na Ponta do Pitoco. Parte dela começou a ser cercada por tapumes para receber os ranchos dos pescadores desalojados pela construção da nova ponte da Lagoa da Conceição, ali perto. O espaço restante vai sofrer uma revitalização completa.

O contrato, assinado em julho, é de R$ 1,87 milhão, com prazo de 12 meses para conclusão. A empresa vencedora da licitação não tem site. De acordo com o endereço listado nos serviços de identificação de CNPJs, funciona em uma rua sem saída no bairro Forquilhas, em São José. Nos canais de transparência da prefeitura, não foi possível encontrar o edital na íntegra para mais detalhes. Talvez esteja escondido sob algum link, mas é para ir atrás disso que jornalistas ganham mal.

Até porque o ponto aqui não é investigar o processo, e sim lançar um olhar mais amplo para tentar entender o contexto. Há uma necessidade urgente: instalar os pescadores. E uma urgência desnecessária: mexer na Ponta do Pitoco. Erguer meia dúzia de barracos em uma extremidade para guardar canoas e redes não deve incomodar quase ninguém. O mesmo não dá para dizer de descaracterizar o lugar com intervenções que tecnocratas gostam de chamar de melhorias.

O projeto divulgado pela prefeitura prevê quadra de beach tennis, pet place e playground. O que a computação gráfica não mostra é que a Ponta do Pitoco tem o encanto que tem justamente por ser como é. Apenas uns 300 metros de gramado arborizado à beira da lagoa com uma rampa para jet ski e pequenas embarcações, onde crianças já brincam, jovens já se divertem, cachorros já correm e adultos já encontram variadas maneiras de passar o tempo, sobretudo sem raquetes.

O conselho de Desenvolvimento do Leste da Ilha (Codeli) aprovou tudo em assembleia geral no dia 4 de julho. Como a entidade em tese representa os interesses das comunidades envolvidas, qualquer reclamação posterior vira papo de haole que não conhece os anseios locais. Ainda assim, não deixa de ser triste ver que nenhum cantinho de Florianópolis está a salvo daqueles que, em nome de um progresso cada vez mais excludente, querem revitalizar o que já é cheio de vida.

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Millôr, 100



Suas ações ou palavras abalam inteiramente minhas convicções mais arraigadas, provocando uma sensação profunda de desalento que afeta aspectos tanto racionais quanto psicológicos do que eu julgava ser parte indissociável da minha personalidade.
(Expressões manezinhas prolixizadas: “Aí tu me arrombas todo”.)

Homenagem ao gênio Millôr Fernandes (1923-2012), que completaria 100 anos neste 16 de agosto. Meu primeiro contato com sua obra foi ainda criança, pela revista Veja, muitas vezes sem entender direito seus textos ou traços. Mais tarde, descobri que, além de escritor e desenhista, o autor daquelas duas páginas semanais era dramaturgo, roteirista, tradutor, artista plástico e – ele fazia questão de ressaltar – inventor do frescobol.

Tão talentoso em tantas áreas, era também um frasista inspirado, conforme demonstra o livro A Bíblia do Caos, que compila mais de 5 mil pensamentos dele sobre tudo quanto é assunto. Embora diversas máximas tenham caducado ou sejam simplesmente sem graça, é uma boa porta de entrada para o universo de Millôr. Poderia citar alguma, mas preferi parodiar uma das minhas seções prediletas, os provérbios prolixizados. Afinal, como diria o próprio:

Todo homem nasce original e morre plágio.

PLAYLIST | fã de livros de histórias de amor



Um candidato a artista popular que enfia Baudelaire (gravou com quem?), Machado de Assis (tocou onde?) e Geovani Martins (não é um que faz trap?) na letra de uma música destinada às Novas Gerações merece consideração.

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20230810

Um recomeço para ser feliz e colorido de novo



Aos poucos, a normalidade manda sinais. Ainda se ouve falar de muitas aberrações contra a vontade, mas pelo menos a pauta deu uma mudada. À medida que as trevas se dissipam, fica mais evidente o tanto de coisa que é preciso recuperar, reconstruir, reformar. O que ninguém imaginava era que o recomeço seria tão literal: o Restart anunciou que está voltando. Depois de oito anos desativado, o grupo vai se reunir para uma série de shows de despedida. O retorno da banda é a esperança de um Brasil feliz – e colorido – de novo.

O renascimento ocorre em momento propício. O mercado da nostalgia cresceu durante a pandemia. Trancadas em casa, as pessoas recorreram ao que já conheciam para atenuar o confinamento forçado. Mesmo após a vacina, o interesse pelo passado permaneceu em alta. Todo mundo sai ganhando. Quem vende, por reciclar um produto com demanda garantida. Quem compra, por confirmar o conforto idealizado pela memória afetiva da época de juventude. Sem surpresas, sem riscos.

Não por acaso, a turnê do Restart se chama Pra Você Lembrar. Como aconteceu nas recentes reuniões de Sandy & Júnior e dos Titãs e na última eleição, basta o apelo da saudade. Até a molecada que não tinha idade quando o artista estava no auge se mobiliza para experimentar o tempo bom a que ele remete. Nem os antigos detratores resistem. Gente que jamais gostou da banda revê seus ranços e passa a julgá-la com a condescendência reservada às coisas que não incomodam mais.

Por incrível que pareça, ali pela virada da década de 2010 o consumidor de rock & outras vertentes embaladas com guitarra, baixo e bateria levava uma vida tão suave que o Restart e seu emo diluído eram o inimigo a ser combatido. A popularidade do grupo despertava ódio em igual proporção. As roupas apertadas em tons berrantes, os penteados, o estilo musical; tudo se transformava pretexto para detestar os caras e, o insulto supremo de então, questionar a masculinidade deles.

Para mim, sempre foram apenas quatro rapazes realizando o sonho de se tornarem ricos e famosos com sua música antes dos 30. Com exceção do nome de dois integrantes (Pe Lanza e Pe Lu, como esquecer?), o resto eu ignorei. Nunca soube o título de nenhum disco, de nenhum hit e, desconfio, nunca ouvi também – se ouvi, não gravei. A maior referência que tenho da banda é o desabafo da fã decepcionada por não conseguir ver seus ídolos: “Puta falta de sacanagem”.

O sucesso do Restart me fez perceber pela primeira vez que eu estava envelhecendo rápido demais para acompanhar as metamorfoses do pop. Mas, se a energia e a alegria do quarteto inspirarem o governo (e vice-versa), prometo deixar o etarismo para trás e madrugar para pegar lugar na frente do palco. Não vejo a hora de me deliciar com a versão de “Levo Comigo” para enaltecer o Desenrola Brasil ou com a autoexplicativa “Minha Estrela”. A calça skinny laranja já está separada.

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APARELHO | Tabu Conânico



A assinante esperta já deve ter topado com a sigla FOMO por aí. Significa fear of missing out, o medo de perder alguma coisa, de estar por fora – uma patologia muito comum no reinado das redes sociais, em que a exigência por uma opinião imediata sobre o que está bombando provoca ansiedade e frustração. Nesta edição, celebramos exatamente o oposto disso: o contentamento, a satisfação de não ter nada a dizer a respeito dos temas que movimentam a cacofonia digital. Adeptos ferrenhos do que podemos chamar de JOMO (de joy), cometemos o disparate de invocar as façanhas de Arnold Schwarzenegger na tentativa de arejar um pouco o debate. Nem sempre (ou quase nunca) acertamos, mas a linha tênue entre a originalidade e a idiotice é onde nos sentimos à vontade. O filtro fica por sua conta.

PLAYLIST | olhos se perdendo sem lugar



A seleta semanal de músicas é a parte deste negócio que mais aprecio fazer. Na verdade, a ladainha que vem antes serve só para justificar a meticulosa trilha sonora do final e reter a audiência mais tempo por aqui. Minha ambição é ser reconhecido pelo meu bom gosto e virar um requisitado personal playlister.

Apesar do empenho, são os links menos acessados. A você que me dignifica com o seu clique voluntário e ouve nem que seja um pedacinho de cada faixa, meu muito obrigado. Chega a me dar um quentinho no coração pensar que continuo do seu lado depois que a leitura acaba.

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20230809

Nunca duvide da magia do balão



Faltava um artista que unisse todas as tribos como o Norvana. Não falta mais: A Turma do Balão Mágico conseguiu a proeza de mobilizar esquerdopatas e bolsoafetivos, legalistas e garantistas, heteronormativos e pansexuais. A ampla coalizão formada para julgar o documentário sobre o grupo acomoda os mais discrepantes & abalizados vereditos. Uns acharam bom. Outros, ruim. Como não sou tão profundo assim nem assisti à série por não ter login e senha, só posso renovar minha gratidão.

[Spoiler: vem aí mais um papo-furado em primeira pessoa.]

Pela manhã, me defendia na diagramação de uma revista de uma raça de cavalo. À tarde, respondia pela edição de música em uma revista de cultura pop. Os dois empregos eram inspiradores e em 1995 pagavam o aluguel de um apartamento de dois quartos no Alto de Pinheiros, mas não representavam o que havia me impelido a trocar Florianópolis por São Paulo no ano anterior. A tara sempre foi escrever para um grande veículo impresso, que eu não precisasse explicar o que era, por onde circulava e qual a tiragem.

Então Simony apareceu. Em mais uma tentativa de reviver os dias de glória, ela anunciou que lançaria um disco solo. A reboque, a gravadora convidava a imprensa especializada para entrevistá-la. Na mesma semana, calhou de outra gravadora (bons tempos) pagar passagem aérea (ótimos tempos) para jornalistas irem a um show dos Mamonas Assassinas em Curitiba (tempos estranhos). No voo, sentei ao lado do colega Ricardo Alexandre, de O Estado de S. Paulo. Azar o dele.

O avião ainda rodava pela pista de Congonhas e eu já estava sugerindo um frila com ex-menina-prodígio do Balão Mágico. Com extremo tato, Ricardo argumentou que, se fosse para falar com ela, ele próprio falaria. Fui persistente – ou xarope, dependendo do ponto de vista: e se nós (cumplicidade é tudo) produzíssemos uma reportagem histórica com que fim levaram aquelas crianças que encantaram o Brasil na década de 1980? Ricardo se encarregaria de Simony e Jairzinho, eu de Mike e Tob.

O problema era que eu não fazia a menor ideia de como encontrá-los. Liguei para a assessora topando a entrevista oferecida com Simony, talvez ela mantivesse contato com eles. Conversamos quase duas horas sobre seu repertório e os planos para divulgar a obra. Pura enrolação. Meu único interesse era, entre perguntas protocolares, descobrir se ela tinha o telefone de seus antigos parceiros. O “sim” me deixou mais excitado que sua transformação em mulher, exibida pela Playboy meses atrás.

Mike estava mexendo com produção musical e superdisposto. Com Tob, foi o oposto. Disse que não era a fim de falar, que era tímido, que tinha vergonha, que sei lá o quê. “Bicho, sou repórter, vim de Santa Catarina e tô na batalha que nem tu, quebra essa pra mim”, implorei. O apelo o sensibilizou. No dia seguinte, eu estava batendo na porta da casa de classe média em que ele morava com os pais em uma cidade do ABC paulista.

Antes tão reticente, Tob abriu o coração. Contou que se chamava Vimerson, estava cursando Jornalismo e planejava trabalhar com rádio e TV. Que compunha e sonhava em voltar ao meio artístico assim que o tratamento contra as perebas do rosto surtisse efeito. Cercado por discos de ouro (do Balão Mágico) pendurados na parede, pegou o violão e me mostrou suas músicas. Gostei mais do café com bolo servido por sua amável mãe. Saí de lá antevendo meu nome em um dos maiores diários do país.

Quando bati os olhos na matéria publicada, custei a acreditar. Assinada por mim, trazia o título “Tob promete voltar quando acabar com as espinhas”. À tarde, a recepcionista da revista em que eu cumpria minha segunda jornada avisou que uma senhora se identificando como mãe de um tal de Vimerson esperava na linha para falar comigo. Respirei fundo e fui enfrentá-la, imaginando a mijada que tomaria até esclarecer que não tinha nada a ver com aquela sacanagem que fizeram com seu filho.

Para minha surpresa, ela informou que havia pedido meu número no jornal para me agradecer. Alguém de uma emissora de televisão lera a reportagem e chamou Tob para um estágio. Aí eu desab(afe)i. Confessei que esperava um esporro, que a gente capricha no texto e vem um editor e estraga tudo e que jornalista é tudo mau caráter mesmo. A mulher riu do meu desespero. “Não se preocupe, Deus escreve certo por linhas tortas”, despediu-se. (Parece que Tob não ficou tão satisfeito.)

Pouco depois, eu seria contratado pelo Estadão, dando início a uma trajetória de conquistas que minha modéstia impressionante me impede de listar.

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Quem avisa amigo é



Demorei para reparar que ao final de determinados conteúdos do portal daquela empresa que vende maquininha de cartão há um dos dois avisos acima. A que ponto o conluio da infantilização com a maldade chegou: agora é necessário alertar quando é uma reportagem ou uma opinião.

Desconheço o porquê da precaução. Deve ser para que o tiozão do zap compartilhe links sabendo diferenciar uma coisa de outra – como se estivesse preocupado com o rigor factual das babaquices que espalha. Pode até funcionar para furar a bolha, mas me lembrou a placa com a inscrição “antes de entrar no elevador, verifique se o mesmo encontra-se parado neste andar”.

PLAYLIST | sorriso amarelo, a gente resiste



Pare de andar correndo por aí sem direção.

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20230808

O pecado original ainda balança a memória



Se Beatles tem o Sgt. Peppers, Beach Boys tem o Pet Sounds e Pink Floyd tem o Dark Side of the Moon, o INXS tem The Swing.

Não, não, aí já é forçar a barra demais, até para padrões de fã.

Como Televisão para os Titãs e Freaky Styley para os Red Hot Chili Peppers, The Swing ensaia o que o INXS se tornaria.

Hmmm, também não é bem isso.

Parei de forjar alguma comparação histórica (e talvez estapafúrdia) para justificar uma predileção puramente pessoal: gosto tanto de The Swing porque vivia o meu verão do amor, morava a uma quadra da praia e ainda tinha muito mais futuro do que passado.

Descobri o disco em 1988, quando um amigo gravou em vídeo-cassete um especial da Rede Manchete sobre o INXS, então emplacando um sucesso atrás do outro com Kick. O programa, apresentado pela jovem Milena Ciribelli, mostrava trechos de shows e clipes, dando uma geral na trajetória dos australianos até o megaestrelato. Aquela temporada foi deles – e logo alguém da capital apareceria com um vinil importado de The Swing para a gente copiar.

Hoje com meia dúzia de cliques é moleza relacionar uma série de fatos que o destacam na discografia da banda. Lançado em 1984, o quarto álbum do INXS foi o primeiro gravado nos Estados Unidos e o primeiro com uma foto do grupo na capa. O single “Original Sin”, produzido por Nile Rodgers (o dono do groove da guitarra do Chic), escancarou o mercado do hemisfério Norte para eles, apesar do boicote promovido por rádios retrógradas por causa do teor multirracial da sua letra.

Na época, porém, a única informação que eu precisava me chegava pelos ouvidos. E o que eu ouvia logo na abertura era a levada irresistível da já citada “Original Sin”, não por acaso o grande hit do disco. Dali em diante, tudo soava muito diferente da ideia que eu tinha formado com o pouco que conhecia do INXS. Por mais que cada refrão grudasse na cabeça, parecia que sempre havia alguma camada – inclusive de melancolia – que se revelava somente após sucessivas audições.

Essa impressão nunca impediu The Swing de ser uma das trilhas sonoras de uma fase em que meu mundo era tão pequeno que ficava fácil ser bem-sucedido em quase tudo. Pelo contrário: o apelo pop de músicas como “I Send a Message”, “Dancing on the Jetty”, “Johnson’s Aeroplane”, “Love Is (What I Say) ou da faixa-título embalavam o momento com a certeza de que o tempo de escassas responsabilidades estava perto de acabar. Mas, enquanto não acabasse, eu curtiria sem pensar no amanhã.

Neste veranico extemporâneo do meio do ano, aproveitei um passeio à beira-mar para revisitar o disco como quem revê um amigo há muito distante. Bastou começar a rolar para me lembrar da beleza da apresentadora na imagem borrada do VHS, da invejinha que sentia do vocalista Michael Hutchence e de como eu acreditava que nada era impossível para mim. Passados esses anos todos, só The Swing conservou o frescor.

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SC no coração do Brasil



Esbarro com o Amigo Ativista no corre. Mesmo com a situação insinuando uma volta à normalidade, sua mente cidadã se mantém inquieta. Agora, o alvo das preocupações dele é a imagem de Santa Catarina. Com ar grave, afirma que o estado só não passa vergonha sozinho porque existe São Paulo. Não se conforma com os conterrâneos sendo dia sim, outro também, motivo de chacota e escárnio no noticiário nacional. Está pensando seriamente em lançar uma campanha de financiamento virtual para instalar outdoors por todo o país com a seguinte inscrição: “Faça como Gugu: ame um catarinense”.

PLAYLIST | é tão difícil encontrar outro você



São muitas razões que me desanimam.

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20230807

A fé se manifesta até onde menos se espera



O incauto transeunte que na sexta à noite vagasse por uma determinada praça no Centro de Florianópolis ficaria intrigado. Entre tantas casas ao redor transformadas em imobiliária, clínica, escritório de advocacia e até emissora de rádio, da única fachada ainda com as luzes acesas e portas abertas ecoava uma algazarra difícil de distinguir. Pelos aplausos, parecia comemoração. Pelo berreiro, uma sessão de exorcismo.

Era a cerimônia de conclusão de um curso de coaching.

No local, funciona uma franquia do autointitulado “maior treinamento de inteligência emocional do mundo”, com 36 unidades em três continentes. O método desenvolvido pela instituição promove “o despertar de gigantes”, seja qual for o aspecto da vida que o aluno queira transformar – como faturar dez vezes mais, criar um negócio de sucesso, ter alta performance, sair do endividamento ou salvar o casamento e a família.

Dezenas de pessoas, muitas com uniforme ou crachá denunciando que tinham vindo direto do trabalho, lotavam a garagem convertida em auditório. Cada uma delas pegava o microfone, gritava o que considerava o propósito de sua “jornada extraordinária”, recebia aplausos entusiasmados e chamava o seguinte para repetir o processo. “Eu sou capaz”, bradou um. “Eu venci”, urrou outra. “Eu estou pronto para liderar”, clamou um terceiro.

Tudo lembrava um culto. Havia um emissário (instrutor), os fiéis (formandos), a catarse (testemunhos) e a indispensável fé incondicional na eficácia do sistema. A diferença era que mesmo a mais mercantilista das religiões promete o sobrenatural, uma recompensa intangível a ser desfrutada pela eternidade. Ali, não: na ausência de qualquer transcendência, salvação e paraíso poderiam ser apenas outros nomes para dinheiro e lucro.

Depois de presenciar um pouco do ritual, o transeunte continuaria sua caminhada com mais dúvidas sobre cobiça e desespero que certezas quanto a aperfeiçoamento pessoal. Não julgaria ninguém, mas não conseguiria entender por que a expertise anunciada no cartaz colado em um poste em frente à casa – “trago seu amor amarrado e apaixonado” – era ridicularizada como se fosse uma crendice sem fundamento.

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PLAYLIST | a sorte e o amor a esperar



Pra onde eu vou, venha também.

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20230806

Quem acredita na cultura merece uma taça



Disse um político em apuros com a Justiça que, expostas, as entranhas do poder nunca são agradáveis. Muito menos as da cultura, completará qualquer produtor. Ou as dos mecanismos de captação de recursos para produção cultural, o que dá no mesmo em um cenário onde é duro atrair um mísero tostão para bancar uma reles cantiga de roda sem o aceno de algum benefício fiscal.

De modo que foi aquela sensação de pertencimento quando o convite para uma reunião em que seriam discutidas estratégias para obter patrocínio para projetos aprovados pelas leis de incentivo começou a circular pela cidade. Até quem nunca tinha ouvido falar do promotor do encontro – o que equivalia a quase todo o público-alvo – confirmou presença. Ninguém queria perder a história sendo escrita.

A sala, no casarão tombado que funciona como sede de uma fundação local, encheu de representantes da literatura, cinema, música, poesia, teatro, dança e jornalismo, entre outras atividades que não exigem diploma. Em um canto, havia uma mesa com salgadinhos, café, xícaras, batida de butiá, copos, vinhos, taças e bergamotas. No fundo, em pé, mexendo no celular enquanto os convivas se acomodava, o cara.

Seu nome, junto às palavras “consultoria”, “marketing” e “cultura”, estampava o cartão colocado em cima de cada cadeira. Ele se apresentou, coçou a barba rala e declarou que nem nos sonhos mais otimistas imaginava que tanta gente estava precisando dos seus serviços especializados. “Todo mundo aqui tem uma ideia maravilhosa que não consegue viabilizar”, bajulou. E fez uma pausa para o suspense: “Ainda”.

Explicou que como manifestações artístico-culturais com pouco potencial comercial ou apelo popular não interessavam à iniciativa privada, focaria sua atuação nas estatais. Na semana anterior, inclusive, estivera no Congresso e arrancara dos parlamentares que representam o estado a promessa de boa vontade – “lobby”, piscou – para os projetos por ele indicados. Sua confiança nessa movimentação era impressionante.

Para reforçar o compromisso assumido, mostrou aos participantes uma brochura intitulada “Bancada da Cultura Estadual”, com propostas, autores e valores almejados. A intenção era voltar a Brasília e entregá-la a um deputado federal e a um senador, que a partir de então apadrinhariam a articulação. Os dois políticos pertenciam à base aliada do governo e gozavam de livre trânsito nos corredores dos mecenas em mira.

O impresso encadernado rodou de mão em mão pela sala, provocando suspiros, cobiça & maledicência. Aproveitando o suor para alisar o cabelo para trás e a atenção difusa para continuar com a matemática, ele desenhava números no ar. Segundo seus cálculos, o montante pleiteado pelo coletivo correspondia a menos de 20% do total que o estado deveria receber conforme sua contribuição para o PIB nacional.

As páginas timbradas com a marca de sua empresa descreviam obras, atividades e eventos que, somados, ultrapassavam R$ 10 milhões. No meio de biografias de empreendedores, oficinas para resgatar os saberes tradicionais e cartilhas de receitas culinárias dos imigrantes, destacava-se um projeto dele próprio. Um primor de metalinguagem, oferecia um livro sobre a memória dos projetos aprovados no estado e era um dos mais caros.

Ele brindou – se a artimanha colasse, ganharia no mínimo 10% do destinado a projetos de terceiros, mais o seu na íntegra. Todos o acompanharam – beleza, desde que agilizasse os demais. Sobre a mesa devastada, ficou combinada uma próxima reunião para verificar o andamento do processo. Mas nunca mais houve outra: os proponentes levaram as taças para casa. Errados, não estavam.

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PLAYLIST | enquanto o povo se acabava



Não perca a cabeça.

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20230805

Um homem chamado cavalo



Já escrevi muito sobre muita coisa para manter acesa a ilusão de que tenho uma carreira. Música, economia, política, esporte, tecnologia… Vou listando os temas e, talvez influenciado pelo número desta edição, percebo uma lacuna gritante: sexo. Entre as parcas exceções está uma reportagem para uma revista masculina em 1997. Basicamente, acompanhar a rotina um cavalo reprodutor para entender por que chamar um homem de “garanhão” era elogio.

Sugestão aceita, valor e prazo acertados, lá fui eu para um haras a 137 quilômetros de São Paulo. O casal estava no ponto. Ela, Funny Command, no dia e hora exatos para a ovulação. Ele, Xupeta, condicionado a ficar excitado toda vez que alguém perturbava seu sossego vespertino. O macho viu o traseiro da fêmea, sentiu o cheiro forte de urina e enlouqueceu. Dois homens tiveram que contê-lo e guiá-lo até um rolo de lona sustentado por duas vigas de madeira. A égua permanecia intocada.

Possuído pelo tesão, Xupeta avançou sobre o clone mal-feito e macetou com vontade. Vai, vem, vai, vem, vai, vem, acabou. Menos de 20 segundos, tempo suficiente para a dupla de peões encaixar uma ampola no membro dele e recolher o fruto de seu prazer, para frustração de Funny Command. Por inseminação artificial, dali a onze meses ela iria parir um filho do campeão do Congresso Americano de 1993 e campeão brasileiro de 1996. Um potro fadado a ser vencedor.

Resumindo, o garanhão era criado, tratado e alimentado como um banco de sêmen ambulante. A fêmea era mera figurante no ato. O veterinário explicou que o método impedia a propagação de doenças e evitava que a ejaculação do animal fosse desperdiçada em apenas uma cobertura. Resfriado a cinco graus centígrados, o esperma guardado durava até um dia e meio. Cada gozada rendia de 100 a 150 mililitros, o necessário para cinco fecundações.

Por preços de US$ 800 a US$ 2,4 mil, o haras hospedava outros 14 cavalos das raças quarto de milha e apalooza, com vários títulos e de boa linhagem, prontos para dar lucro aos seus donos e aos das éguas encaminhadas para o cruzamento. Não importava se havia penetração ou orgasmo da parceira, desde que ela fosse fertilizada. O máximo de envolvimento permitido consistia em algumas cheiradas e mordidinhas nas ancas da fêmea, prolongando o ato por dois a três minutos.

Toda vez que o garanhão era retirado da cocheira à tarde, ele sabia que acasalaria. Por isso, a euforia de Xupeta diante de Funny Command. O contato visual bastou para deixá-lo em ponto de bala: ela lavada e presa com o travão (cordas que passam pelo pescoço e imobilizam suas patas traseiras), para não ameaçar os testículos preciosos dele. Concluído o serviço, mais um banho e tchau. Tudo controlado nos mínimos detalhes, sem espaço para preliminares ou cumplicidade.

Para nunca falhar, os cavalos levavam uma vida de bacana. Despertar às 6h30 com ração e alfafa, duas pessoas para escová-los às 8h, 40 minutos de solzinho (o calor estimula a produção de espermatozoides) e exercícios, limpeza às 11h e mais ração ao meio-dia. A partir das 14h, estavam disponíveis para coleta de sêmen e cobertura. Às 16h, eram escovados e limpos de novo e ganhavam outra porção de ração e alfafa. Dormiam às 22h em baias de quatro metros quadrados, forradas com serragem.

Tanta mordomia para se resignar com transar dia sim, dia não, limitados a 10 éguas diárias, com meia hora de intervalo para os guerreiros se recomporem. Um garanhão firmeza começava na função com três anos – em geral com parceiras mais experientes, acostumadas ao furor e à falta de tato dos machos – e se aposentava aos 20. Sempre no esquema de bater o olho na fêmea, excitar-se, dar três ou quatro estocadas nela ou no simulacro, tomar um banho e se retirar.

Ou seja, sua performance era uma fraude, longe de justificá-lo como sinônimo de excelente desempenho. O editor captou o veneno e, com precisão, tascou na capa da revista: “Homem x cavalo – o garanhão é você”. Na comparação entre como as duas espécies faziam sexo, a única vantagem do equino sobre o humano estava no tamanho do membro. O do bicho atingia quase 80 centímetros. O homem que passar de 20 já pode ser considerado um cavalo.

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APARELHO | Outro segredo do morcego – Alfred Pennyworth é o verdadeiro Batman



Carece de confirmação se foi o grafeno das vacinas, o resgate da razão ou pura espontaneidade. O fato é que seu programa sazonal predileto de levezas incontestáveis nunca pareceu tão sério. Naquele ritmo frenético que já se tornou padrão, a bancada mais comportada do cone Sul levanta questões urgentes para a compreensão do processo de desertificação da cultura ocidental. Como, por exemplo, a identidade do mordomo de Bruce Wayne, o fim do Artista Recluso ou a (re)volta dos Titãs, entre outras caraminholas de vital importância para o bagulho.

PLAYLIST | maturidade não é covardia



Quem move as peças é – ou devia ser – você.

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20230804

Todo dia termina velho em cada entardecer



Estava flanando pelo Centro de Florianópolis quando a avistei. Como naquela tarde fria em que ela apareceu para mim, eu me protegia da chuva embaixo de uma marquise na Fernando Machado enquanto torcia para que a nuvem de descrença se dissipasse em um arco-íris de indiferença. Era coincidência demais para eu duvidar que o encanto da primeira e única vez que ela cruzou comigo pudesse se repetir.

Foi em outubro de 2022. Na época, eu curtia uma fase tão desgraçada que vou te contar. Na semana anterior, havia saído de casa quase à meia-noite a pé para comprar um vinho na conveniência do posto de gasolina. Na entrada da loja, um morador de rua me pediu um trocado para comida. Paguei-lhe uma empanada e um pão de queijo. Enrolado em um cobertor, ele me agradeceu e sorriu: “Não te preocupa, irmão, vai dar tudo certo”.

Pois bem. Uma velhinha vinha da Praça XV a passos miúdos e lentos, sombrinha na mão e bolsa agarrada ao tronco pelo outro braço. Ao chegar na frente da lotérica onde eu me encolhia, ela me encarou. “Não quero vender nada, não vou pedir nada”, disse. Gelei. “Só parei aqui porque estava indo para os lados da Mauro Ramos, senti uma coisa boa e vi que era do senhor.” Derreti. A velhinha tinha me desarmado.

Falou que voltava da Catedral, que era viúva e que a irmã e o cunhado lhe faziam companhia. “Ô, minha senhora, eu ando tão desanimado”, ainda tentei reagir. A velhinha, contudo, garantiu: “Pode ficar tranquilo que vai dar tudo certo”. Antes de continuar seu caminho, segurou meus braços, perguntou meu nome e me desafiou a adivinhar o dela. “Tem igreja no Estreito”, facilitou. Matei na hora: Fátima.

Ela piscou para mim e desceu em direção à Hercílio Luz sem virar para trás. Para minha mãe, foi um espírito que evaporou assim que dobrou a esquina. Devia ter seguido a velhinha para conferir – e me apavorar se ela sumisse de repente. Daí minha ansiedade quando a reencontrei com o mesmo passinho, na mesma rua, o mesmo clima meteorológico e vibracional. Sobrenatural ou não, só podia ser obra da Providência.

Fixei o olhar nela até se aproximar de mim. O coração acelerou, a respiração aumentou, a boca secou. Me empertiguei para receber mais uma dose de alento. Mas a velhinha se revelou humana, demasiada humana. Não me reconheceu ou descobriu minha propensão a reclamar de barriga cheia, tornando tudo pior do que realmente está na esperança de sensibilizar o destino.

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Copiando e colando e seguindo a vocação



Meu diploma de jornalista faz 30 anos em agosto e a vontade de mudar de ofício só não é maior do que o medo de começar do zero de novo e fracassar em outra área. E olhe que posso afirmar, sem um pingo de empáfia, que estou entre os cinco mais bem-sucedidos da turma Os Decantados (Aquele Pessoal que Fica no Fundinho): foram apenas seis formandos, dos quais um nunca exerceu a profissão.

Daqueles tempos analógicos, guardo com carinho & respeito um episódio protagonizado por um colega de jornal. Eu, recém-instalado em solo paulistano, louco para praticar à vera o jornalismo que idealizava em sala de aula. Ele, já com experiência para relativizar alguns princípios em nome da sobrevivência. “Chefe não gosta de repórter bom, chefe gosta de repórter que resolve”, vivia me dizendo.

Certo dia, esse colega foi escalado para uma matéria de turismo nas cidades históricas de Minas Gerais. Tão logo saiu sua reportagem, a bomba explodiu na redação: plágio. Eram parágrafos inteiros, inclusive com os mesmos erros de português, idênticos ao material publicado meses antes em uma revista especializada. O editor o chamou para uma reunião que todo mundo imaginava como iria terminar.

Vai ser demitido por justa causa, acabou a carreira do cara. Em menos de 15 minutos, ele retornou à sua bancada como se nada tivesse acontecido. Talvez por eu sentar ao seu lado e, jovenzinho, ainda nutrir ilusões quanto à relevância do que escrevia, o colega achou que precisava dar alguma satisfação para mim. “Estão espalhando que eu copiei um concorrente”, se queixou. Fingi que não sabia de nada.

Então me mostrou um monte de folhetos turísticos que havia juntado na viagem, comparando trechos deles com sua matéria e com o texto de quem o acusava. Tudo igual. “Entendeu? Chupei das mesmas fontes que a revista usou”, encerrou, vitorioso. A suposta polêmica morreu e, na semana seguinte, ele embarcou a trabalho para o Peru. Ali saquei que não tinha lugar para inocência se eu quisesse durar nesse negócio.

PLAYLIST | entre as coisas que não podem mais voltar



Com ou sem grilo brabo, no final todo mundo envelhece ou entra pelo cano, como ensinava Aracy.

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