20210317

Geografia afetiva do Centro em tempos de pandemia e desalento



A coisa que mais sinto falta da parceria público-privada em que trabalhava é do bordejo pelo Centro. No intervalo para o almoço, saía andando da Mauro Ramos, na altura do Instituto Estadual de Educação, até onde o acaso me levasse e o relógio permitisse. Nunca foi pela paisagem. O caminho era a prática.

Ao meu redor, o que a precariedade ainda não havia deteriorado a pandemia tratou de destruir. Tapumes por toda parte. Portas fechadas, portas fechando. Primeiro a padaria da esquina da Hercílio Luz com a Tiradentes. Depois um quilão de comida natural, uma filial de fast-food, uma barbearia. Muitas jamais vão reabrir.

Mas são apenas CNPJs para mim. Os bares da Victor Meirelles, não. De cada um guardo contatos que só rolavam naquela circunstância, afetos construídos ali que não se reproduziriam em outro lugar. Relações com quem o distanciamento social me afastou por completo porque nossa afinidade não funciona em 4G.

Não sei como será quando pudermos nos encontrar de novo. Não sei nem se será no Centro Leste, revitalizado noite a noite pela mocidade de 20 a 50 anos que se espalhava em um vaivém de vozes e intenções pelas ruas. A repressão tentou desmontar a espontaneidade, o vírus conseguiu.

Na Praça XV, eu cruzava com namorados, crentes, ambulantes, maconheiros e espíritos apaziguados pela temperança dos que nada temem porque nada têm. Seguia pelo calçadão da Felipe até a “esquina democrática” com a Deodoro, saudava São Francisco e dobrava para a Conselheiro Mafra.

Aí proibiram de provar os queijos na feira do Largo da Alfândega. Tudo bem, sem problemas, podia me distrair fazendo outro trajeto. Pegava a Trajano e subia até a igreja de Nossa Senhora do mesmo Rosário da escadaria que lhe dá acesso. O carnaval nos seus degraus foi nossa última folia sem a sombra da morte.

A fantasia rasgada revelou a miséria. Sob as marquises, CPFs à beira do cancelamento pela total ausência de perspectivas disputando terreno com os mendigos. A vergonha de pedir esmola estampada na cara, o olhar entre a derrota e a raiva. Gente que fez tudo certo e deu tudo errado. Meritocracia às avessas.

Desempregados que se tornaram desalentados que se tornaram descartados. Se o trabalho liberta (Auschwitz, presente!), a loucura muito mais. “Deus não paga pau pros lóki”, ensina Criolo, mas o diabo frauda o teste, contorna a febre e simula a glória. Não julgo, não tenho nada a oferecer além de um Mano Brown insinuante: “Êta mundo bom de acabar!”.

Jesus chorava, o mercado achava justo e eu via um futuro de relance. Talvez a única hipótese de ele ser diferente exija energia e vontade que estão sendo gastas para discutir “como cuidar da saúde e salvar a economia”. É um debate burro e cínico, que se alimenta da indefinição para manter tudo como está. Ninguém se importa se tu morrer, otário.

De volta à minha bolha, vou me mexer pela teia de carinho que me cerca. Ainda posso recusar a primeira vaga arrombada que aparecer. Com o amanhã eu me preocupo amanhã; grato por sobreviver, por acreditar no que acredito, por defender o que precisa ser defendido. Quero lembrar disso na próxima vez que for ao Centro.