20220329

Houve uma vez um verão desde 1999



Mais um verão que não vou à praia o quanto gostaria. Mais um verão que não começo a pegar onda. Mais um verão que não fiz nenhuma trilha. Mais um verão que não aprendo a tocar violão. Mais um verão que avacalhou com minhas promessas para o ano inteiro. Mais um verão que o Projeto Verão foi adiado para o verão que vem. Mais um verão que, quando notei, terminou. Mais um verão com meu chinelo de dedo.

Comprei-o em 1999, igual ao anterior que havia perdido em Natal. Desembarquei lá para uma matéria de turismo sobre o litoral potiguar. No quinto e penúltimo dia, fui até o alto de uma duna gigante para ficar mais perto das nuvens. Ao descer, o par que eu tinha deixado na beira do mar antes de encarar a escalada (descalço cansa menos) desaparecera. Não sabia que a maré subia tão rápido. Não entendia o que estava acontecendo. Não me lembrava de nada.

É de uma marca de (ou ligada) ao surfe. Quer dizer, acho que ainda é, porque também virou símbolo de atitude no baile. Meu primeiro exemplar, esse que o oceano deve ter confiscado, me sustentava desde 1992. Era uma época em que existiam alguns produtos fabricados para durar, a obsolescência programada ainda não amaldiçoava todos os bens de consumo e eventuais defeitos precoces se diluíam como travessuras de um capitalismo-moleque.

O modelo sobre o qual piso nestes últimos 23 anos foi adquirido em São Paulo. É uma das únicas coisas que vieram comigo para Florianópolis e me acompanham até hoje. Com o tempo, calçá-lo se transformou em uma experiência pessoal e intransferível: sua base foi se moldando à minha sola, esculpindo calcanhar e dedos em baixo-relevo na borracha. Envelheceu mais competitivo do que eu, um fracasso para me adaptar a certos parâmetros.

É o melhor chinelo que o dinheiro pode comprar – ou a maré marota pode levar. Não me conformo como o mundo caiu na campanha publicitária que reposicionou a concorrente famosa entre fashionistas, descolados e populares em geral. Pois além de ser exatamente o contrário do que apregoava em sua fase pré-banho de marketing – deformava, soltava as tiras e tinha cheiro –, nunca chegou aos (com trocadilho) pés do meu predileto no principal atributo requerido em sua categoria: conforto.

Parece que agora a verdade está se revelando e, aos poucos, surgem vozes corajosas admitindo o embuste. Mas nem a ressignificação hipster dos slides adorados pelos [diga uma gíria que denuncie sua idade etc] mauricinhos será capaz de fazer justiça se não houver uma reparação histórica ao chinelo que uso. O pior é que talvez ele nem tenha mantido tanta qualidade, posso estar bancando um Dom Quixote ortopédico a enaltecer moinhos de vento podais que só reinam na minha imaginação.

Suas versões atuais são mais finas, cheias de variações, desconheço se feitas com o material do clássico básico que me cativou para sempre. Sei que, embora o meu preserve suas características originais, a cada dia menos temporadas lhe restam. Estou me preparando para seu inexorável fim, já investi os meus R$ 7,62 que folgavam esquecidos nos meandros do sistema financeiro. Pelos meus cálculos, quando a despedida for inevitável, essa poupança terá rendido o suficiente para eu me engambelar com outro. Substituí-lo, jamais.

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Se acaso me clicares



Barricadas literárias – Com a classe habitual, Sergio Augusto desfila sobre as pilhas de livros erguidas pelos ucranianos em suas janelas para se defender dos ataques russos. Mesmo sendo um povo que lê quase tão pouco ou menos que a média brasileira, tomos, volumes e edições encadernadas eram o que mais eles tinham em casa para resistir ao inimigo. Não quero nem pensar no que poderia ser usado aqui se o país passasse por uma situação similar.

Malandragem algorítmica – O autor é baterista e assina uma newsletter em que está sempre disposto a desmentir o senso comum. Em recente diatribe, ele destaca que 2021 foi o primeiro ano que o número de streamings de músicas novas caiu desde que o dado começou a ser monitorado. Sim, tem relação com a “cultura do conforto” destes tempos pandêmicos, que fez as pessoas preferirem ouvir o que já conheciam. Mas se deve mais à ditadura do algoritmo, que a partir de uma escolha aleatória do usuário vai atrás de algo parecido em catálogo para recomendá-lo.

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APARELHO | Lineu Maguila



Há mais Brasis profundos entre a graça & beleza do país percorrido pela Caravana Rolidei do que nossa vã sociologia de boteco supunha – e, para nosso desgosto, tão legítimos quanto. Uma dessas representações pátrio-abissais invadiu o grupo de WhatsApp de um restaurante japonês e, em vez de encomendar comida, contaminou o ambiente com a tradicional pestilência reaça. Enquanto nos perguntamos por que o Intercept ainda não se debruçou sobre esse caso tão recorrente, convidamos você a participar da campanha que lançamos para salvar o estabelecimento. A diferença é que não pedimos dinheiro a ninguém para fazer a nossa parte. :-P

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PLAYLIST | como a vista é linda da roda-gigante



Ah, como era grande.

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20220321

Sinais (de) que só os loucos sabem



Voltava do Centro. Tinha ido à operadora do plano médico tentar me pendurar no convênio da minha mãe. Talvez em carne e osso meu caso despertasse alguma sensibilidade. A atendente me escaneou de alto a baixo enquanto me ouvia. Mesmo me considerando um loser, era uma profissional. Disse uma frase que começava com “infelizmente” e me encarou, esperando que me despedisse.

Como também sou profissional, jamais havia nutrido qualquer expectativa de que sairia dali com uma carteirinha. Agradeci e me arranquei. Minha vida melhorou demais depois que parei de achar que fosse pessoal algo que nunca passou de indiferença.

Estava parado em um sinaleira, entretido pelo panfleto de um lançamento imobiliário que prometia um monte de facilidades em inglês aos futuros moradores. Para minha consternação, não tinha garage lounge, um espaço no condomínio para as bandas formadas pelos herdeiros das prestações do financiamento ensaiarem com segurança e assepsia. Nem as empreiteiras acreditam mais que um artista decente possa ser forjado nessas condições de higiene.

Mas tinha uma tal de future room, que, pelo que entendi, é uma sala onde crianças aprendem programação para se tornarem developers. Fiquei viajando no destino de uma sociedade que prefere startupeiros a artistas até que mais um “promotor” se postou diante da janela do carro e me fez rever meus preconceitos.

— Boa tarde, senhor!

— ....

— Somos da Igreja do Losango Invertido e estamos vendendo este broche por um real para arrecadar fundos para os brasileiros que foram à guerra da Ucrânia lutar em nome do bem.

O broche era daqueles com uma carinha sorridente amarela cercado por algum clichê antidrogas. Ato reflexo, peguei um Hall’s no console e enfiei na boca. Sem saber como reagir, mexi nos dois volumes dos Freak Brothers que trazia no banco do carona e abaixei o som, uma versão charmosa do DeFalla (com uma grafia bem exótica) para “Linha do Horizonte”, do Azymuth.

Em vez de pousar no azul mais lindo, decolei em uma espécie de vórtex existencial: para quê eu sirvo, para quê serve o que faço, tem alguém interessado no que sei fazer, por que ganho menos do que um monte de gente que me chama de mestre, que sistema é esse que não valoriza o que tenho de melhor, o que as pessoas que admiro fariam no meu lugar, até quando vou ficar contando historinha, então é isso que o destino me reserva?

— Putz, não tenho grana agora — foi a melhor declaração que consegui desembuchar depois de desistir de falar que eu não era contra.

— Nada? Faço um para o senhor por qualquer moedinha!

Tirei os óculos escuros. Ele deve ter visto alguma cor estranha no meu olhar, porque encerrou a promoção sem esperar a resposta.

— Tenha uma boa tarde. Ah, amém!

— Louvado seja! — concordamos em alguma coisa, afinal.

No cruzamento seguinte, reconheci o carro que ia na minha frente – um Kazinho cujo dono fechou o vidro na cara do crente – destruído por um ônibus. Do que restou de seu vidro traseiro, pendia um adesivo de apoio à Lava-Jato.

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Duas mulheres e suas histórias



Pop perfeito – Depois de criar o programa de reprodução chamado Lebensborn (“fonte da vida”, em alemão arcaico) para purificar a “raça ariana”, os nazistas começaram a gerar crianças com mulheres (brancas) nos países invadidos. Só na Noruega, a estimativa é de essa, er, política tenha resultado em 8 mil a 12 bebês. Uma delas nasceu em 1945 no povoado Bjørkåsen, filha de uma nativa e de um sargento alemão que voltou para a terra natal após o fim da guerra. Batizada Anni-Frid Lyngstad, ela ficaria famosa como uma das cantoras do grupo ABBA – e um dia quis conhecer o pai.

A garota da Filadélfia – A interpretação de Astrud Gilberto para “Girl from Ipanema” que abriu as portas do mercado americano para a Bossa Nova em 1963. Com 22 anos e então casada com João Gilberto, daí em diante ela engatou uma carreira que nunca teve o devido reconhecimento porque sempre foi sabotada pelos homens que a cercavam – a começar pelo ex-marido. De alguma forma, quase todos, incluindo vários figurões, a passaram para trás. Prestes a completar seu 82º aniversário neste mês, hoje ela vive reclusa com um gato em um apartamento na Filadélfia com vista para um rio que nunca foi de janeiro.

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APARELHO | Já chega se acabando



“Se você não sabe onde ir, qualquer caminho serve”, diz a máxima, como se isso fosse ruim. Pois é justamente esse estado de alheamento que perseguimos, expelindo a cada semana fragmentos do que um dia foram bússolas a orientar os incautos viajantes. Regida pelo diabinho camarada, a longa travessia até o nirvana temático passa pelo castelo na floresta, faz uma baldeação em Campina Grande e chega ao final de River Raid com uma certeza: na bíblia dos otários, cortina de fumaça é sagrada!

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PLAYLIST | veneno não faz mal




Tem coisas que só a música faz para você.

Para todas as outras, existe a black music.

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20220316

Sempre do lado errado da história



Das formas de se automopromover que o deputado já tinha inventado, aquela seria a mais espetacular, disparado. Em vez de fiscalizar o consumo de cartucho de impressora no gabinete, iria investir a verba parlamentar na guerra. Seus seguidores o acompanhariam pelas redes sociais diretamente do front, mostrando o drama dos refugiados e fazendo coquetéis molotov para ajudar a população atacada a resistir ao comunazifascismo. Na volta ao Brasil, ele daria uma entrevista coletiva em Cumbica antes de embarcar para Florianópolis, onde semelhantes o receberiam como um herói que cruzou o mundo para lutar pela liberdade.

Aí vazou um áudio sincericida e a vida dele jamais seria a mesma.

Um das primeiras consequências afetou especialmente os catarinenses: a suspensão do congresso da organização política, social, turística & sexual da qual o deputado faz parte, o Movimento Boca de Leite, previsto para a tarde do fatídico sábado em São José, na região metropolitana da capital. O cartaz anunciava um evento de estremecer o establishment do Estado, com alguns dos maiores justiceiros da trupe travestidos de Vingadores – só ficaram faltando o vereador de São Paulo no papel de Nick Fury e alguma mulher como Viúva Negra para o esquadrão estar completo.

Thor, o astro de primeira grandeza que acha razoável existir um partido nazista, e Hulk, uma estrela ascendente disposta a figurar na constelação nem que seja na porrada, falariam sobre “Sobrevivendo a um cancelamento: espinha ereta perante canalhas”, tema que promete bombar nos próximos encontros. O milionário Homem de Ferro proporia uma “Revisão do pacto federativo: como conseguir nosso dinheiro de volta”. Com a experiência de quem viu a cara da morte, Capitão América contaria “Detalhes sobre a Ucrânia e bastidores das eleições 2022”. O Arqueiro Verde cuidaria da retaguarda.

Além de aprender o que a universidade – dominada pela doutrinação marxista – não ensina, as futuras lideranças da região teriam meia horinha reservada no final para fotos com os guerreiros. Obrigatoriamente postadas com hashtags em apoio ao Super-Homem, as selfies seriam o ponto alto de uma agenda que começaria de manhã, com a inauguração da sede josefense do movimento. Tudo por inscrições de R$ 50 a 220.

Nem vou entrar no mérito de Santa Catarina ter sido escolhida para receber a alardeada primeira base oficial do grupo fora de São Paulo – significa, e muito. O que me deixa estupefato é que precisou: a) rolar uma guerra; b) o tal deputado fingir que estava perto do campo de batalha preocupado com algo que não fossem curtidas; e c) o juízo dele sobre as ucranianas correr o mundo para a sociedade descobrir, estarrecida, que não suporta saber como seus representantes pensam e agem quando não estão calculando cada pensamento e cada ação.

Não é para me gabar (até porque, né?), mas para mim nunca houve dúvida de que esses meninos com idade para se comportar como adultos estavam, para ser generoso, equivocados. Todas as impressões que eu tinha desde 2013 foram confirmadas em 2015, em uma entrevista que fiz com um dos artífices do negócio na cidade. Paulista, casado e dono de uma pequena pizzaria, ele se definia politicamente como “indignado” e economicamente como “minarquista” (entusiasta do Estado mínimo).

Sua indignação se traduzia em convocar protestos nas quais nem todo mundo que participava era de direita, mas todo mundo que era de direita participava. Seu “minarquismo”, em trabalhar para instalar pessoas em cargos públicos nos quais elas pudessem “consertar o sistema”. Na prática, resultou em um golpe e na eleição de um bando do que a educação manda chamar de outsiders contra a política, contra os partidos, contra as instituições, contra a democracia e pelo direito de não serem responsabilizados pelos seus atos nem de prestarem contas sobre a origem de seus rendimentos.

De lá para cá, gente dessa “entidade apartidária que visa a mobilizar cidadãos em favor de uma sociedade mais livre, justa e próspera” já quis proibir exposições de arte e comparou a criminalização do nazismo com discriminação de minorias, para citar apenas alguns casos mais célebres envolvendo um coletivo que, para tentar se redimir, ainda conseguiu a proeza de trocar o péssimo pelo ruim ou pior.

São tantas camadas de infâmias que, com a devida vênia pela citação de triste memória, ninguém desse movimento jamais poderia ter sido candidato; se fosse candidato, jamais deveria ter sido eleito; se eleito, jamais deveria ter tomado posse; empossado, jamais deveria poder exercer o mandato. Pelo simples fato de que sempre estiveram do lado errado da história. Qualquer um.

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A guerra é um saco



Enquanto o Axioma de Glória Pires não é adotado como norma para evitar que pessoas se manifestem em preto & branco sobre assuntos com mais de 50 tons de cinza, tentei estudar um pouco sobre a guerra. O que busquei nas gazetas impressas e virtuais fui encontrar nas páginas de um livro escrito por Umberto Eco em 2006 sobre os eventos políticos e midiáticos que influenciaram o mundo no começo deste século, A Passo de Caranguejo. Em um dos capítulos da obra, o pensador italiano classifica os conflitos em paleoguerras e neoguerras.

Nas primeiras, era aceitável e até valorizada a morte em combate, contanto que morressem mais inimigos; os maiores ganhadores eram as indústrias bélicas dos países beligerantes; e os cálculos e a intenção dos protagonistas tinham valor determinante. Nas segundas, as estratégias levam em conta o menor número de baixas (aliadas e adversárias) para não perder a batalha da informação; quem ganha são as multinacionais que têm interesses de um lado e de outro da barricada; e a multiplicação dos poderes em jogo distribui tudo de acordo com disposições imprevisíveis.

Quanto mais leio, mais fico com a sensação de que estamos presenciando uma paleoguerra e uma neoguerra ao mesmo tempo. O problema não é a possibilidade do fim do mundo, geralmente frustrante por desmoralizar todas as profecias, mas as barbaridades às quais a maioria de nós sobrevive.

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APARELHO | A stairway to rego



Eles já se apropriaram da bandeira, do hino e da camisa da seleção brasileira. Beleza, não ligamos para isso mesmo. Agora querem também o rock, o pó e a bunda? Aí, não! Como andamos em uma fase otimimimista, que enxerga as vantagens sem deixar de reclamar, encaramos as aventuras nasocalipígias da madame conservadora como uma oportunidade de ouro para o estilo musical recuperar a aura contestadora com a qual se consagrou. Há quanto tempo você não via algum traço roqueiro associado com algo escandaloso? Isso é que é moral!

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PLAYLIST | não sabe como dói o seu olhar sincero



E agora não sei onde procurar as respostas que só você podia me dar.

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20220308

Carnaval sem começo não tem fim



Quando proibiram a folia gratuita, fiquei na minha; não tenho mais o corpinho que exibia de meia arrastão no bloco de sujos. Quando reprimiram tudo que sugerisse o mais vago vestígio de folia gratuita, continuei na minha; eu ia passar a noite em casa mesmo. Quando quiseram acabar com o feriado, eu já não podia fazer mais nada. Foi o que fiz. Alimentar o ócio enquanto deveria estar trabalhando foi a única transgressão que me restou neste não-carnaval.

As ondas explodiam com força, molhando até quem estava na parte mais alta do costão. O vento nordeste soprava uma mistura de areia e água salgada que turvava a vista. Crianças chapinhavam na beira da praia gelada e mexida. Naquela tarde típica de fevereiro nos Molhes da Barra, o único resquício da festa profana que antecede a quaresma eram os trapos de um abadá de 2020 balançando entre as pedras. Por mim, beleza. Sentado ao pé do pequeno farol, recebendo na cara toda a fúria do oceano, eu só queria esvaziar a cabeça de quaisquer angústias.

Não conseguia entender o que deveria achar da guerra. Pior: não conseguia entender por que deveria achar alguma coisa. Absorto pela alienação, quase não percebi o barulho que vinha do mar.

— Aqui embaixo — disse. — Até que enfim! — resmungou ao me ver de pé na ponta de um rochedo, tentando descobrir a origem da voz.

Era um boto. Recapitulei mentalmente minhas atividades nas últimas 36 horas. Não bebera nem havia consumido nenhuma substância condenada pela Carta Magna. Sabia que estava na cidade onde eles têm nome, mas nem imaginava que falavam também.

— Prazer, Cy. Com ípsilon, please — apresentou-se o animal.

— Podicrê. E aí, sussa? — dei corda.

— Comigo, tudo, contigo é que parece que as coisas andam complicadas — respondeu. — Pensa que não reparei no teu olhar perdidão no horizonte? Que foi, não conhece nenhuma banda que vai tocar no Lollapalooza?

Era só o que me faltava: um boto coach, metido a pop.

— Antes fosse, antes fosse — minimizei.

— Qual é a tua idade?

— Então, no fim do ano vou completar…

— Tô ligado — me interrompeu o bicho. — Tu sacou que virou um velho.

— Não, é que…

— As pessoas da tua idade evitam dizer que no tempo delas é que era bom porque não querem admitir que o tempo delas já passou e, convenhamos, nem era tão bom assim — prosseguiu.

— Não viaja — rebati, impaciente.

Cy não se perturbou.

— O que tu idealizava como felicidade era somente uma burrice inocente, cheia de convicções. Hoje, tu não tem mais certeza de nada e nem assim te sente mais inteligente, só deslocado. Sou teu contemporâneo, já passei por isso. A gente não pertence a esse lifestyle atual movido a cinismo e ironia.

– E daí, onde é que tu quer chegar? — intimei, irritado com a desenvoltura do cetáceo. — O racional aqui sou eu!

— Vou fazer uma analogia com referências do “teu tempo” para ver se tu cai na real — anunciou Cy, impassível. — O povo prefere as mentiras de Renato Russo à verdade de Rodolfo, aquele dos Raimundos. Um planejava cada passo de sua carreira, cada reação que um gesto, uma declaração sua poderia provocar. Outro só agiu com sinceridade, preferindo as privações da fé aos prazeres de uma banda em que não botava mais fé. Um é amado por mentir, outro é ridicularizado por assumir a verdade de seu coração. A farsa é que é uma bênção!

Mal terminou a palestrinha, o boto me encarou com ar vitorioso. Atordoado pelas suas palavras, tergiversei:

— Vem cá, por que tu veio falar comigo?

— Porque escutei os acordes de “Behind The Sun”, da fase em que Red Hot era legal, vazando do teu fone de ouvido. Aliás, o mundo se divide entre as pessoas que chamam de Red Hot e as que chamam de Chili Peppers, as que chamam de Iron e as que chamam de Maiden, as que chamam de Led e as que chamam de Zeppelin, as que… Desculpa, me empolguei: fui com a tua cara e resolvi te dar duas ou três noções de pragmatismo existencial. Ah, e também adorei essa tua camiseta do David Bowie, até a próxima!

Ainda gritei perguntando quem seriam o Renato Russo e o Rodolfo nesta guerra, mas Cy já era apenas uma mancha preta rumando em direção às profundezas atlânticas.

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Diversões analógicas



Jogo das falácias – Nunca mais perca uma discussão! Você pode apelar à autoridade, à natureza, ao povo ou à emoção, propor um falso dilema ou investir em uma pergunta rasteira, entre 24 cartas para convencer o seu interlocutor de que certo não é quem tem razão, e sim quem consegue provar que não está errado.

Kapital! – A luta de classes fica bem mais lúdica com esta corrida que opõe dominados e dominantes na disputa para acumular o máximo de capital “em todas as suas formas (financeiras, sociais, culturais e simbólicas)”. Todos ganham quando aprendem que as desigualdades aceitas como naturais são resultado de políticas sempre em favor dos mais ricos.

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APARELHO | O derradeiro traumatismo ucraniano



Se você está aqui, significa que o mundo ainda não acabou. E, se o mundo ainda não acabou, o trio mais influente da cultura ocidental desde o Rush também não. Como estrategistas da bazófia, analisamos cada aspecto do apocalipse que se avizinha apostando que, na briga entre godos e visigodos, o triunfo é sempre do engodo. Hmmm, parece interessante – contanto que você rasgue a fantasia e tente antecipar o momento em que todo o sentimento represado se soltará. Na dança do cossaco, não fica cossaco fora!

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PLAYLIST | ninguém vai essa noite se embriagar



O Grêmio Recreativo, Esportivo e Cultural e Escola de Samba Bambas do Extrato apresenta seu enredo deste ano: Foi um Rio de Chorume que Passou em Minha Vida – Exaltação, Glória & Esplendor do Não-Carnaval Seletivo no Reino do Consenso Fabricado pelos Guardiões da Liberdade.

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20220301

Nunca foi só por quatro milésimos



Talvez fosse a TPM, talvez porque era o último dia capicua (palíndromo de números) do resto de sua vida. Ou uma combinação dos dois fatores. O fato é que acordou com o diabo no corpo. Iria soltar os bichos, meter o louco, tocar o terror. Mas situacionismo não é bagunça, não é coisa que se improvisa. Ela lavou o rostou, ajeitou o cabelo, vestiu uma cropped e começou a andar pelo apartamento para ver se surgia alguma ideia. Nada, sua cabeça estava mais vazia do que a agenda do PR [risos].

Já estava quase desistindo dos planos que ainda não tinha por uma aula de francês no Duolingo quando entrou na área de serviço, escaneou o cubículo com os olhos e se deteve em um ponto: a ponta de uma garrafa de refrigerante diet escapando da lotada lixeira dos recicláveis. Recolheu a pet de 1,5 litro, passou um paninho nela, bateu uma metasselfie na frente do espelho e saiu, um tanto insegura quanto aos resultados da ação apesar de sua crença inabalável no laissez-faire. Seu destino seria o posto de combustíveis a duas quadras do prédio onde morava.

Lá chegando, estendeu a garrafa ao frentista e pediu um litro de gasolina – comum, por favor. A coitada deve ter ficado com o carro no prego aqui perto, pensou o cara. Pensou também em perguntar se a “princesa” iria levar ou beber no local, para descontrair um pouco. Pensou melhor e fez o seu serviço em silêncio. Ela conferiu o preço no mostrador da bomba, puxou uma nota de R$ 10 do bolso do short jeans e lhe entregou, recebendo de volta uma cédula de R$ 2 e uma moeda de R$ 1.

Após 10 tensos segundos imóvel diante do frentista, começou a (adorava esse suposto verbo) performar. Disse que estava esperando o troco. Ele não entendeu e ensaiou um sorriso. Ela continuou inabalável. Explicou que, se o litro da gasolina custava 6,996 e foi pago com 10, ainda faltavam quatro milésimos. O cara sacudiu a cabeça procurando por alguma câmera escondida, aquilo só podia ser uma pegadinha. Então se lembrou da mãe em Ananindeua, na Grande Belém, preocupada com o filho que havia ido embora para o Sul em busca de uma vida melhor. Suspirou e falou que iria chamar o gerente.

— Em que posso ajudá-la? — chegou a autoridade do posto, a simpatia automática mal disfarçando a irritação por ter que interromper a estreia do Figueirense na Copa do Brasil que estava assistindo pelo 4G.

— Quero meu troco correto, apenas — informou ela, repetindo que faltavam quatro milésimos ou “sei lá como vocês chamam essa moeda que inventaram”.

— Mas isso não existe!

— Se não existe, como vocês estão cobrando?

Fosse qualquer um, daria mais R$ 0,05 para a freguesa e retornaria para sofrer com o futebol bisonho do seu time. Mas o gerente era tinhoso, acreditava em meritocracia e sonhava com um Brasil governado com mão dura pelos militares. Para cima dele, não! Ele iria até o fim para enfrentá-la, provavelmente era uma esquerdista mal-comida que não raspava o sovaco nem respeitava quem trabalha duro para gerar emprego e renda no país. Avisou que não iria lhe devolver mais nem um tostão, ela que fosse se queixar em Cuba.

Estava criado o impasse.

Um homem que abastecia um carro popular com resquícios de um adesivo da ex-presidente Dilma Rousseff de pernas abertas na entrada do tanque ouviu a conversa e se meteu: a moça tinha razão, o código de defesa do consumidor lhe dava direito ao troco correto ou arredondado para cima. Outro sujeito desembarcou de um SUV e se aproximou. De terno e gravata, como convinha a um dos nomes da lista sêxtupla para ser indicado a desembargador, não iria perder aquela oportunidade de se promover.

— Sou adevogado — caprichou na pronúncia e ligou a câmera do celular. — Ou o senhor age conforme o império da lei ou será denunciado. O sistema monetário brasileiro estipula que R$ 1 é dividido em 100 partes iguais denominadas centavos. Qualquer interferência nisso se configura em crime de lesa-pátria, pois a moeda é um dos símbolos nacionais, como a bandeira, o hino, o selo e o brasão de armas — blefou.

— Essa é a sua opinião — desdenhou o gerente.

Foi juntando gente para, em uma espécie de justiça poética, apagar o fogo com gasolina. Um nerd calculou que os quatro milésimos embolsados por litro significavam uma diferença de R$ 4 a cada mil litros vendidos, dinheiro que ia para o dono do posto. Empolgado com a audiência, contou que a terceira casa depois da vírgula no valor dos combustíveis foi adotada no Brasil neoliberal de 1994 para copiar os americanos. Uma jovem gritou “entreguista!”. Até que alguém não identificado no meio do bolo berrou a palavra mágica: “Ladrão!”. Começou o empurra-empurra.

A moça aproveitou o tumulto e se arrancou sem ser percebida. À noite, em casa, soube pelo telejornal que as imagens de um quebra-quebra em um posto de combustíveis por causa da política de preços dos derivados de petróleo viralizaram e estimularam reações similares no Brasil inteiro. Cenas de pancadaria, explosões e pilhagens se alternavam enquanto o âncora ressaltava o “caráter apartidário das manifestações”. Como o Norvana, o milésimo de real havia unido todas as tribos.

O movimento evoluiria para passeatas dominicais, que não atrapalhavam o trânsito e atraíam de comunistas a monarquistas, de evangélicos a agnósticos, de funcionários públicos a empresários, de ambientalistas a pecuaristas, de concurseiros a ancaps. Ninguém mais se importava com a reivindicação original, tamanha era a abrangência das bandeiras erguidas ou combatidas. O gigante acordara – e nada indicava que voltaria a dormir tão cedo. Atônita, ela só torcia para que o despertar não resultasse no mesmo fim que as jornadas de junho de 2013.

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Ação entre amigos



Cultura do conforto – O chapa Alexandre Matias foi atrás da verdade e voltou carregado de teorias para explicar a fixação coletiva pelas mesmas séries, filmes e discos de sempre. Eu achei a reportagem particularmente oportuna, porque volta e meia me flagro sem o menor interesse em descobrir coisas novas – e pensava que a culpa era da minha idade.

Conta outra – Não conheço Arnaldo Branco pessoalmente, mas sei que temos vários amigos em comum. O que eu não sabia era que, além de cartunista, roteirista, flamenguista e outras profissões que dispensam diploma, ele comete contos. Desde janeiro já desovou quatro, sempre com observações que me dão vontade de sair espalhando por aí e ficar com os créditos.

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APARELHO | Por onde a Hello Kitty come



O orkut acabou, viva o orkut! Para alívio dos pândegos de plantão, o fim da rede social que deu o pontapé inicial para forjar o mundo que lamentamos hoje não acabou com o mistério em torno de uma de suas comunidades mais enigmáticas. Muitas são as hipóteses, poucas as certezas. O que se pode afirmar é que, entre a milenar paciência hare krishna e os ensinamentos técnicos do monolito de 2001, nada justifica o crime de amar demais os Smiths. Quer dizer, quase nada: tem coisas que só a fraternidade química reduz à devida dimensão.

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PLAYLIST | só pra quem tem fome de gente astral



A seleta da semana já estava praticamente pronta quando veio a notícia da passagem do grande Mark Lanegan para outro plano. Aí que me caiu a ficha: sua música entrou na minha vida em 1992, quando ainda era dos Screaming Trees, e nunca mais saiu. No Lollapalooza que cobri em 1996, em Kansas City, ele e outro integrante da banda simplesmente botaram uma mesinha no meio do povo e começaram a autografar pôsteres do disco Dust a quem pedisse – guardo o meu até hoje. Solo ou metido em um monte de projetos, Lanegan me embalou por esses anos todos como se adivinhasse quando eu precisava escapar, afundar ou olhar para uma direção diferente. Em sua homenagem, abro e fecho esta playlist com ele. Daqui a pouco a tristeza arrefece e ficarão somente suas lindas canções.

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