20220329

Houve uma vez um verão desde 1999



Mais um verão que não vou à praia o quanto gostaria. Mais um verão que não começo a pegar onda. Mais um verão que não fiz nenhuma trilha. Mais um verão que não aprendo a tocar violão. Mais um verão que avacalhou com minhas promessas para o ano inteiro. Mais um verão que o Projeto Verão foi adiado para o verão que vem. Mais um verão que, quando notei, terminou. Mais um verão com meu chinelo de dedo.

Comprei-o em 1999, igual ao anterior que havia perdido em Natal. Desembarquei lá para uma matéria de turismo sobre o litoral potiguar. No quinto e penúltimo dia, fui até o alto de uma duna gigante para ficar mais perto das nuvens. Ao descer, o par que eu tinha deixado na beira do mar antes de encarar a escalada (descalço cansa menos) desaparecera. Não sabia que a maré subia tão rápido. Não entendia o que estava acontecendo. Não me lembrava de nada.

É de uma marca de (ou ligada) ao surfe. Quer dizer, acho que ainda é, porque também virou símbolo de atitude no baile. Meu primeiro exemplar, esse que o oceano deve ter confiscado, me sustentava desde 1992. Era uma época em que existiam alguns produtos fabricados para durar, a obsolescência programada ainda não amaldiçoava todos os bens de consumo e eventuais defeitos precoces se diluíam como travessuras de um capitalismo-moleque.

O modelo sobre o qual piso nestes últimos 23 anos foi adquirido em São Paulo. É uma das únicas coisas que vieram comigo para Florianópolis e me acompanham até hoje. Com o tempo, calçá-lo se transformou em uma experiência pessoal e intransferível: sua base foi se moldando à minha sola, esculpindo calcanhar e dedos em baixo-relevo na borracha. Envelheceu mais competitivo do que eu, um fracasso para me adaptar a certos parâmetros.

É o melhor chinelo que o dinheiro pode comprar – ou a maré marota pode levar. Não me conformo como o mundo caiu na campanha publicitária que reposicionou a concorrente famosa entre fashionistas, descolados e populares em geral. Pois além de ser exatamente o contrário do que apregoava em sua fase pré-banho de marketing – deformava, soltava as tiras e tinha cheiro –, nunca chegou aos (com trocadilho) pés do meu predileto no principal atributo requerido em sua categoria: conforto.

Parece que agora a verdade está se revelando e, aos poucos, surgem vozes corajosas admitindo o embuste. Mas nem a ressignificação hipster dos slides adorados pelos [diga uma gíria que denuncie sua idade etc] mauricinhos será capaz de fazer justiça se não houver uma reparação histórica ao chinelo que uso. O pior é que talvez ele nem tenha mantido tanta qualidade, posso estar bancando um Dom Quixote ortopédico a enaltecer moinhos de vento podais que só reinam na minha imaginação.

Suas versões atuais são mais finas, cheias de variações, desconheço se feitas com o material do clássico básico que me cativou para sempre. Sei que, embora o meu preserve suas características originais, a cada dia menos temporadas lhe restam. Estou me preparando para seu inexorável fim, já investi os meus R$ 7,62 que folgavam esquecidos nos meandros do sistema financeiro. Pelos meus cálculos, quando a despedida for inevitável, essa poupança terá rendido o suficiente para eu me engambelar com outro. Substituí-lo, jamais.

(Extraído da newsletter Extrato. Assine já e garanta o seu exemplar antecipado todas as terças!)

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