20220316

Sempre do lado errado da história



Das formas de se automopromover que o deputado já tinha inventado, aquela seria a mais espetacular, disparado. Em vez de fiscalizar o consumo de cartucho de impressora no gabinete, iria investir a verba parlamentar na guerra. Seus seguidores o acompanhariam pelas redes sociais diretamente do front, mostrando o drama dos refugiados e fazendo coquetéis molotov para ajudar a população atacada a resistir ao comunazifascismo. Na volta ao Brasil, ele daria uma entrevista coletiva em Cumbica antes de embarcar para Florianópolis, onde semelhantes o receberiam como um herói que cruzou o mundo para lutar pela liberdade.

Aí vazou um áudio sincericida e a vida dele jamais seria a mesma.

Um das primeiras consequências afetou especialmente os catarinenses: a suspensão do congresso da organização política, social, turística & sexual da qual o deputado faz parte, o Movimento Boca de Leite, previsto para a tarde do fatídico sábado em São José, na região metropolitana da capital. O cartaz anunciava um evento de estremecer o establishment do Estado, com alguns dos maiores justiceiros da trupe travestidos de Vingadores – só ficaram faltando o vereador de São Paulo no papel de Nick Fury e alguma mulher como Viúva Negra para o esquadrão estar completo.

Thor, o astro de primeira grandeza que acha razoável existir um partido nazista, e Hulk, uma estrela ascendente disposta a figurar na constelação nem que seja na porrada, falariam sobre “Sobrevivendo a um cancelamento: espinha ereta perante canalhas”, tema que promete bombar nos próximos encontros. O milionário Homem de Ferro proporia uma “Revisão do pacto federativo: como conseguir nosso dinheiro de volta”. Com a experiência de quem viu a cara da morte, Capitão América contaria “Detalhes sobre a Ucrânia e bastidores das eleições 2022”. O Arqueiro Verde cuidaria da retaguarda.

Além de aprender o que a universidade – dominada pela doutrinação marxista – não ensina, as futuras lideranças da região teriam meia horinha reservada no final para fotos com os guerreiros. Obrigatoriamente postadas com hashtags em apoio ao Super-Homem, as selfies seriam o ponto alto de uma agenda que começaria de manhã, com a inauguração da sede josefense do movimento. Tudo por inscrições de R$ 50 a 220.

Nem vou entrar no mérito de Santa Catarina ter sido escolhida para receber a alardeada primeira base oficial do grupo fora de São Paulo – significa, e muito. O que me deixa estupefato é que precisou: a) rolar uma guerra; b) o tal deputado fingir que estava perto do campo de batalha preocupado com algo que não fossem curtidas; e c) o juízo dele sobre as ucranianas correr o mundo para a sociedade descobrir, estarrecida, que não suporta saber como seus representantes pensam e agem quando não estão calculando cada pensamento e cada ação.

Não é para me gabar (até porque, né?), mas para mim nunca houve dúvida de que esses meninos com idade para se comportar como adultos estavam, para ser generoso, equivocados. Todas as impressões que eu tinha desde 2013 foram confirmadas em 2015, em uma entrevista que fiz com um dos artífices do negócio na cidade. Paulista, casado e dono de uma pequena pizzaria, ele se definia politicamente como “indignado” e economicamente como “minarquista” (entusiasta do Estado mínimo).

Sua indignação se traduzia em convocar protestos nas quais nem todo mundo que participava era de direita, mas todo mundo que era de direita participava. Seu “minarquismo”, em trabalhar para instalar pessoas em cargos públicos nos quais elas pudessem “consertar o sistema”. Na prática, resultou em um golpe e na eleição de um bando do que a educação manda chamar de outsiders contra a política, contra os partidos, contra as instituições, contra a democracia e pelo direito de não serem responsabilizados pelos seus atos nem de prestarem contas sobre a origem de seus rendimentos.

De lá para cá, gente dessa “entidade apartidária que visa a mobilizar cidadãos em favor de uma sociedade mais livre, justa e próspera” já quis proibir exposições de arte e comparou a criminalização do nazismo com discriminação de minorias, para citar apenas alguns casos mais célebres envolvendo um coletivo que, para tentar se redimir, ainda conseguiu a proeza de trocar o péssimo pelo ruim ou pior.

São tantas camadas de infâmias que, com a devida vênia pela citação de triste memória, ninguém desse movimento jamais poderia ter sido candidato; se fosse candidato, jamais deveria ter sido eleito; se eleito, jamais deveria ter tomado posse; empossado, jamais deveria poder exercer o mandato. Pelo simples fato de que sempre estiveram do lado errado da história. Qualquer um.

(Extraído da newsletter Extrato. Assine já e garanta o seu exemplar antecipado todas as terças!)

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