20220222

Redenção além do céu cinzento



A pouco mais de um semestre de uma efeméride de suma importância para o país, espanta a inércia do governo, da sociedade civil organizada e dos formadores de opinião. Pouco se fala da data, o que denota não apenas o descaso de um povo com sua história, como corrobora a vocação tropical em fugir do acerto de contas com o passado. Fosse uma nação minimamente civilizada, já estariam programados simpósios, congressos, exposições, painéis e até webinários dedicados ao fato histórico comemorado em setembro.

O bicentenário da independência do Brasil merece todas as homenagens, mas precisamos reverenciar os 20 anos da invasão de uma rádio por um artista com arma em punho para obrigar o locutor a tocar as músicas da banda dele. Na tarde do décimo oitavo dia do nono mês de 2002, Marcus Vinícius Deorristte dos Santos desembarcou de um táxi na frente da sede da Atlântida FM disposto a fazer justiça, nem que para isso tivesse que sacrificar o pouco de dignidade que lhe restava.

Para entrar no prédio sem chamar a atenção, o então infante de 27 anos apostou no pretinho básico. A cor tingia o redor de seus olhos, a roupa com detalhes prateados e a capa sob a qual escondia um revólver. Demonstrando interesse em conhecer a emissora, identificou-se com os documentos do pai, Getúlio, e teve o acesso liberado ao estúdio. Insatisfeito com o que considerava uma tremenda falta de sacanagem – ninguém notá-lo –, resolveu partir para a ação.

Dali em diante, Marcus deixou de existir para se transformar em Cram. A entidade apontou o .38 para o comunicador Marcio (ironicamente) Paz, exigindo que fossem veiculadas as músicas do CD Fases da Vida, da banda Além do Céu Cinzento, do qual era vocalista. O site do grupo informava que a Terra, fragilizada no cenário pós-guerra, havia sido invadida por extraterrestres do planeta RX 222, que impuseram um reinado de terror usando os seres humanos como cobaias em experiências científicas.

Dez mutantes se reuniram para depor o imperador Oguh Rotciv em 5991 e o seu líder tornou-se o novo governador da Terra: Cram, claro. Ah, e a banda havia feito um pacto com o diabo (que sempre gostou das coisas escritas ao contrário) em Ergela Otrop. Paz rodou o disco inteiro e, em seguida, repetiu duas músicas. Após 70 catárticos minutos, Cram retornou para as profundezas e Marcus enfrentou as consequências de seu ato extremo em nome da arte.

O roqueiro se rendeu para ser indiciado pelos crimes de cárcere privado (reclusão de um a três anos) e porte ilegal de arma (detenção de um a dois anos e multa). A vítima o defendeu, dizendo que não se tratava de um marginal, e sim de um músico descontente com as dificuldades do mercado fonográfico, um típico revoltado com o sistema. Ressocializado, o airhead gaudério pegou pesado. Tornou-se cientista social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e integrante do Núcleo de Pesquisa sobre a América Latina.

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Descarte consciente



(Rumores, mercado e muito pensamento mágico apontam um revival do CD. Depois da volta da pochete, não duvido de mais nada. Vou adorar se rolar, até porque nunca caí nesse fetiche do vinil. Não ouço música em suportes feitos de combustíveis fósseis ou, como diz um amigo, não tenho dinheiro para investir em petróleo. Aproveito o gancho para relembrar o revolucionário método que criei para reduzir minha gigantesca coleção dessa mídia tão castigada, que arrisca finalmente ter o seu valor reconhecido.)

As instituições continuam funcionando. Isso significa que você pode se preocupar com coisas que realmente importam – como a sua coleção de CDs, cada vez mais obsoleta. O já consagrado “advento da internet” fez com que as pessoas trocassem a mídia física por arquivos e, na sequência, pelo streaming. Aquele montaréu de bolachinhas plásticas virou um entulho desnecessário, que só denuncia a idade de seu proprietário. Por mais que tenha sido conquistado com tanto esforço, cuidado com tanto carinho e exibido com tanto orgulho, é chegada a hora do desapego.

Mas como selecionar o que fica e o que vai embora?

O revolucionário Método Psicoafetivo de Pontuação de Discos® estabelece critérios simples e objetivos para separar as obras que você deve manter das que devem ser dispensadas. Primeiro, defina quantos discos pretende descartar. Em seguida, submeta seu acervo às condições abaixo:

– Se é um clássico: +10 pontos
– Se você tem o disco há mais de dois anos e nunca o ouviu: -10
– Se você nunca ouviu o disco inteiro: -5
– Se você já ouviu o disco inteiro mais de uma vez: +1
– Se você já ouviu o disco inteiro mais de 10 vezes: +10
– Se tem dedicatória: +2
– Se é autografado: +2
– Se o autor tornou-se mais conhecido depois de morto: -5
– Se o autor voltou à ativa depois de ter encerrado a carreira: -10
– Se você já tiver outro disco do autor: +1
– Se você já tiver mais de dois discos do autor: +3
– Se você conhece o autor pessoalmente e gosta dele: +5
– Se você conhece o autor pessoalmente e não gosta dele: -20
– Se você não só conhece o autor, como ele é seu amigo e visita sua casa com frequência: +20
– Se depois de ouvi-lo você comprou outro exemplar para dar de presente: +3
– Se ganhou de presente: +2
– Se ganhou de um ex que deixou boas lembranças: +5
– Se ganhou de um ex que deixou más lembranças: o que você ainda está fazendo com essa poha de disco em casa?
– Se emprestou o disco, não devolveram e você comprou outro: +10
– Se emprestou de novo, não devolveram de novo e você comprou outro de novo: -5

Agora basta somar. Os CDs com menor pontuação serão descartados, até atingir a quantidade que você estipulou para se livrar, deixando assim espaço de sobra para o acúmulo de novas tralhas. Dica: todos os discos que tiverem pontuação negativa não merecem um lugar na sua prateleira nem no seu coração. O método vale também para MP3s e livros.

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APARELHO | Sobre impedir algumas pessoas de fumar maconha



A campanha difamatória que a erva sagrada sofre por ser consumida por idiotas orgânicos é a ponta de um iceberg à vista de qualquer herbífumo. Sob a mesma superfície que a opinião pública toma por inofensiva escondem-se mil perigos, mas o verdadeiro risco está acima da linha que cerca o mar: ignorar a visita cruel do tempo e embarcar em um cruzeiro de bandas brasileiras do século passado. O efeito pode ser tão estupefaciente quanto descobrir que o maior legado do modernismo no Brasil foi a invenção do conceito de semana. Tranque as crianças em um lugar seguro, ligue um gudanzinho e, por favor, não encoste em metal!

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PLAYLIST | se não tem luz a gente brilha



Qualquer roupa é fantasia, qualquer nota é ousadia.

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20220215

A metametamorfose



Quando certa manhã a barata em que Gregor Samsa havia se transformado acordou de pesadelos tranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseada em um ser humano monstruoso. Estava deitada sobre o que antes eram suas costas duras como couraça e, ao levantar um pouco a cabeça, viu seu antigo ventre – abaulado, marrom, dividido por nervuras arqueadas – resumido a uma pança cheia de hematomas e com uma cicatriz medonha. Suas numerosas pernas ainda continuavam finas em comparação com o volume do resto do corpo, mas reduzidas a apenas duas.

— O que aconteceu comigo? — pensou.

Não era outro pesadelo. Seu quarto era o mesmo, os móveis idem. O olhar dela se dirigiu então para a janela. Pela arquitetura, percebeu que não estava em alguma capital europeia, e sim em Brasília. A visão das conchas que formam a estrutura do Congresso Nacional a deixou transtornada. Cogitou voltar a dormir para esquecer “toda essa tolice”, o que não conseguiu porque estava habituada a deitar de bruços, e sua forma recém-adquirida tinha a masculinidade frágil e não relaxava com o traseiro à mercê de invasores noturnos imaginários.

Impossibilitada de repousar, resolveu explorar sua nova condição. Equilibrando-se sobre o seu par de gambitos, chegou até o banheiro. Ao cruzar na frente do espelho acima da pia, o reflexo a assustou. Ela não tinha se transformado em um ser humano monstruoso qualquer: ela tinha se transformado no presidente da República, que reconheceu pela cara na medalhinha com a inscrição “imbrochável, imorrível e incomível” (sic, ou melhor, sick) guardada no bolso da fatiota amarrotada. Era repugnante demais, mesmo para um ex-inseto.

Foi o que bastou para ter um surto. Aproveitou que não conseguia se manter em pé com firmeza e caiu, já em prantos. Descobriu que chorar encolhida em posição fetal no friozinho do azulejo lhe trazia tanto conforto emocional quanto físico.

— Essa cuestão no tocante à minha aparência não é tão ruim assim, pelo menos não virei gay, tá ok? — disse a si mesma, surpreendendo-se com sua miséria vocabular e espiritual.

Refeita, decidiu que iria levar a vida normal de uma aberração. Ao sair à rua, teve um choque com a receptividade. Apesar de sua aparência antropomórfica, as pessoas em volta se afastavam dela como se ainda fosse uma barata – e não era por causa do hábito inconveniente de contar piadas ruins de sua personalidade presidencial. Os únicos a se aproximar eram semelhantes que se comportavam como bois, burros ou sanguessugas, entre outros bichos. Tirando esse detalhe, porém, sua rotina era quase idêntica à da fase invertebrada.

Como o primata que mimetizava, ela passava 75% do tempo inerte, contando os minutos para o próximo cochilo. Também era onívora, ou seja, comia de tudo (com especial predileção por doces, alimentos gordurosos ou de origem animal, contanto que estivessem estragados), e sem mastigar (sobretudo crustáceos). À menor ameaça, escondia-se em algum canto. Nos demais aspectos, era puro instinto, inclusive de sobrevivência. Ao se reunir com a base aliada do governo, ninguém notou a diferença. Todos ali se sentiam à vontade na imundície.
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Nota de pesar



É com imensa consternação que confirmamos a remoção do chuveirão da loja famosa pela fachada e pelo ativismo do seu dono das areias cálidas da praia de Canasvieiras, em Florianópolis. Com dois dias de atraso em relação ao prometido, o empresário patriota transferiu o equipamento cívico-sanitário para outro ponto do litoral. Porto Belo (SC), onde um ex-militar disfuncional obteve 75,92% dos votos válidos no segundo turno de 2018, foi o local escolhido.

Durante o período que permaneceu na capital catarinense, o aleijão paisagístico dividiu opiniões sobre estratégia publicitária, tolerância estética e concessão de espaços públicos. Foram 43 dias de sol, paixões, sal e corpos isentões lavados pela água daquelas duas duchas liberais made in China. Na última “polêmica” (e bota aspas nisso) que esteve envolvido, a ligação à rede de energia elétrica apresentava irregularidades – nada que ofuscasse seu brilho como sensação do verão florianopolitano.

Já deixou saudade.


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APARELHO | O bom, o mau, o feio e o PARANÁ



No velho oeste ele nasceu. E entre fakes se criou. Seu nome em lenda se tornou. Já era burro, virou ladrão. No bangue-bangue mixuruca chamado Brasil, desafiamos os manés para um duelo ao pôr do sol com as nossas armas mais letais: charme & veneno. Claro que agora não aparece ninguém para defender esta ratatulha, mas nunca nos esqueceremos dos bandidos que quase nos abateram. Rancor acima de tudo, desprezo acima de todos!

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PLAYLIST | frases feitas, vocabulário vulgar



É o preço que se paga por não compactuar com a epidemia de desfaçatez que grassa por aí.

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20220208

Ensaio sobre a indiferença



Tem horas que bate um desânimo. Tipo todas. Agora mesmo, diante desta tela em branco, um vasto menu de temas se oferece para o debate. Cultura, saúde, comportamento, arte, ciência, política, esporte, segurança, tecnologia: basta escolher e passar vergonha. Chegou-se a um ponto em que, parafraseando a cada vez maior Dilma Rousseff, quem está certo ou quem está errado, nem quem não está certo nem está errado, vai estar certo ou errado. Vai todo mundo estar errado.

Antes que algum asquelminto em busca de empatia reversa tire a brilhante conclusão de me cancelar, já aviso: não estou relativizando poha nenhuma. Há discussões em que todo mundo vai estar errado porque o simples fato de entrar nelas já é um erro – seja o erro puro, cabal, que parte de uma premissa completamente equivocada (“vacina não funciona”); seja o de fazer com que esse lado errado caia na real (“compare o número de mortes antes e depois da vacinação”). Vai fundo, guerreiro.

E há discussões que pelamor.

Daí a minha total falta de saco para com os assuntos do momento. O bom é que nada dura muito e logo aparece outra bobagem para alugar geral. O ruim é que o que deveria durar muito também logo é superado por alguma outra babaquice. O pior é não saber mais discernir uma coisa de outra e gastar a mesma energia (no meu caso, nenhuma) com ambas. Tudo, do mais grave ao mais trivial, tem a importância medida pelo tempo que consegue figurar entre os trending topics.

Eu ainda estava assimilando a relevante polêmica sobre comemorar ou não a morte de um lazarento quando fui atropelado por uma série de questões mais perecíveis do que as projeções para o PIB nacional. Pode cantar aquela música? O menino de quase 30 anos precisa se livrar do pai para amadurecer? O PR (risos) é porco mesmo ou é assim que ele e os zeros ao seu redor enxergam o brasileiro? Fulano vacilou no reality show? A funkeira irá conquistar o mercado internacional deixando de ser funkeira?

Longe de mim duvidar da pertinência de cada uma dessas perguntas, apenas não me interessam – e muito menos suas respostas. Não por gosto, afinidade, ideologia, ética ou estética: é só indiferença. Um descaso que, se eu não me policio, acaba fazendo com que o lançamento de NFT de calcinhas receba de mim atenção equivalente ao assassinato de um pobre imigrante congolês enganado pelo mito do país cordial. Acredito que isso não aconteça somente comigo, o que é mais triste.

Que bosta a gente virou.

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APARELHO | O case Miro



Café não costuma falhar. Moído ou em grão, seu blend de notas sensoriais eleva a percepção a patamares abstrusos. Possuídos pela rubiácea, expressamos nosso muxoxo diante das escolhas nada difíceis que desafiam a sociedade a cada meme. A partir daí, a chegada do sambista croata e do streamer das multidões foi uma consequência orgânica – e se você acha que nada tem a ver com nada, saiba que tudo isso pode ser classificado pela Escala Búzios. Reage, faz um react!

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PLAYLIST | give me things that don’t get lost

De um lado, uma empresa que torrou milhões de dólares com uma das vozes do negacionismo. Do outro, o artista do qual mais tenho discos (mais do que do Bob Marley!) e que desde muito antes de existir a palavra “lacração” admiro também como pessoa. Nessa treta entre o Spotify e Neil Young, não preciso de muito mais informação que isso para saber qual é a minha turma. Por isso, foi indolor deixar de usar os serviços da ex-plataforma de música.

Não cancelei minha conta porque estou pendurado no plano familiar de minha amada irmã. Mas não seria honesto comigo mesmo nem com quem divido estas mal-tecladas se continuasse fazendo playlists lá. É pouco? Pouquíssimo. É o que posso. Ainda acesso o aplicativo enquanto defino que substituto ganhará meus trocados. Por enquanto, vou de YouTube gratuito mesmo, sob protestos por não permitir que eu bote uma capinha personalizada.



(O único show de Neil Young que vi foi no terceiro Rock in Rio, em 2001, que cobri para a descontinuada revista Bizz. De lá para cá, não perco uma oportunidade de relembrar aquela noite mágica. Abaixo, um remix do que já publiquei por aí:)

Eu vi as cabeças mais feitas da minha geração possuídas pela devoção e pela loucura, fanáticos histéricos com camisetas de bandas, errando na madrugada por Jacarepaguá atrás de uma ponta caída onde antes havia grama, elementais urbanos debatendo-se em comunhão orgânica e ideológica com aquele senhor em cima do palco, que esperança e sangue e guitarras potentes e sentimentais despejou sobre o público na noite de 20 de janeiro de 2001.

Havia chegado à Copacabana na sexta anterior e, desde então, minha rotina consistia em acordar no quarto do três estrelas, entrevistar algum artista em algum hotel luxuoso, ir para o Rock in Rio do outro lado da cidade e, na volta, fechar bem as cortinas para o sol não entrar. Mesmo no intervalo de segunda, terça e quarta-feira, dedicado à redação das reportagens, a função começava às 10h da manhã e acabava lá pelas 7h de amanhã.

Naquele sábado, apesar das poucas horas de sono, da alimentação desregrada, do calor e da vida loka, não teve cansaço capaz de distorcer o que foi o show de Neil Young. Não para qualquer um: um dos fotógrafos da equipe (hoje um renomado videasta e ativista pró-maconha), com a afoiteza de sua juventude, retirou-se da frente do palco para a refrigerada sala de imprensa alegando que estava achando tudo “western demais”.

Mais tarde, em seu apartamento em Botafogo que servia de sucursal informal da revista, ele soube que perdera um momento único – também por razões que a gente ainda não sabia. Protegidos por São Clemente lá embaixo e pelo Cristo lá em cima, colecionamos histórias sensacionais sendo pagos para fazer o que a sociedade chama de trabalho. Quatro meses depois, estava tudo acabado: a revista Bizz seria extinta. Restou a matéria como registro da nossa inocência.

***
Nada do que se escrever aqui vai sequer chegar perto de traduzir o que foi o show de Neil Young. Pode-se descrever a ordem em que as músicas foram tocadas, a roupa dos músicos, a reação da plateia – que já era a menor do festival (125 mil pessoas) e diminuiu consideravelmente antes de começar sua aula. Mas conseguir, em palavras, expressar as sensações despertadas pela lancinante música do canadense é trabalho para um Nelson Rodrigues, não para repórteres ordinários feito a gente.

Em pouco menos de duas horas, o rock – aquele negócio que um dia traduziu os anseios da juventude, deflagrou mudanças de comportamento, contrariou a caretice – voltou a fazer sentido. Quando Young deixou o palco, às 3h30 da manhã, ser roqueiro não era mais sinônimo de ingênuo ou anacrônico. Porque o tempo nunca vai passar para ele.

Cenários grandiosos, efeitos pirotécnicos, figurinos da moda, exibições artificias de simpatia, naipe de metais, DJs, todas essas muletas do show business são dispensáveis para o gigante. No máximo, duas backing vocais em algumas canções. De calça jeans, camiseta e chapéu de caubói, ele se pôs calmamente a mostrar que, por mais que a oposição apregoe, “rock’n’roll can’t never die”.

Acompanhado pela banda Crazy Horse – a mesma de seus melhores discos, com o guitarrista Frank Sampedro, o baixista Billy Talbot e o baterista Ralph Molina – e por sua Gibson Les Paul, Young ensinou como é que se faz. Sem a impaciência dos veteranos nem a pachorra das grandes estrelas, embora tenha rodagem e prestígio suficientes para ignorar quem ignora sua música.

Da abertura, “Sedan Delivery”, ao encerramento com “Welfare Mothers”, passando por “Hey, Hey, My, My”, “Like a Hurricane” e “Rockin’ in the Free World”, o artista encantou os fiéis com inúmeros finais falsos, explosões de energia, passos desengonçados. Depois de cinco dias à base de britneys, axls, taylors, browns e quejandos, eu pude finalmente bater no peito – como Young se despedindo do público, sem falar nada – com a certeza de que o Rock in Rio seria inesquecível.

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20220201

A difícil arte de dizer adeus



Tão previsível quanto a data-base do dissídio salarial e o reajuste abaixo da inflação, o email de despedida é um dos costumes mais tradicionais no universo empresarial. Do remetente aos destinatários, todos os envolvidos se portam com maturidade, esquecem as diferenças, reagem à novidade com temperança e discrição e… Tudo papo-furado: a mensagem final com o domínio corporativo é também a chance derradeira de dizer ou de deixar implícitas algumas verdades.

Quando eu operava no mercado formal, tive o privilégio de receber vários emails dessa natureza. A maioria ia pouco além de clichês motivacionais agradecendo a oportunidade e acenando para futuros desafios – demissionários, com satisfação e indiferença; demitidos, com o contato pessoal para vagas ou frilas. Mas houve uma mensagem que relegou ao esquecimento as que vieram antes e estabeleceu um novo parâmetro para as que viriam depois:

Colegas de redação, venho deixar um abraço para todos.
Não vou falar de ciclo se fechando, ciclo se abrindo, coisas parecidas. Prefiro falar de saltos. E às vezes saltamos para um andar mais alto, às vezes saltamos e caímos, às vezes saltamos no escuro. Este último é meu caso. Mas não é um escuro de dar medo. É um escuro de “o que será que tem aqui?”.
Para ser objetivo (como mandam algumas cartilhas jornalísticas por aí) estou de saída do [nome da empresa] hoje, por vontade própria.
Poderia listar algumas justificativas para essa decisão (para alguns de vcs, talvez abrupta). Vou resumir e dizer que meu conceito sobre trabalho (não o jornalismo, mas o trabalho no sentido amplo) não é compatível com determinadas regras e protocolos que costumamos aceitar. Ponto.
De todo modo, aqui foi um lugar agradável de se trabalhar. Quer dizer, na maior parte do tempo. Conheci pessoas muito inteligentes, espirituosas e com senso crítico apurado. Sou um cara silencioso, mas escuto e observo. Aprendi várias coisas com muitos de vcs. Sou grato por isso.
Este é meu tchau, um pouco mais longo do que eu previa. Termino por aqui, para não cansar ninguém. Afinal, o jornal precisa fechar. E amanhã, como leitor, quero ver a edição fresquinha hehe.
Um até breve para quem fica.
A frase de desfecho era justamente o assunto do email que pegou todo mundo de surpresa naquela tarde de janeiro de 2016. Ninguém esperava que “um cara silencioso” como ele não apenas fosse pedir as contas, como o fizesse com uma classe superior às reportagens já acima da média que entregava. Relida após relida, seus recém-ex-colegas se deleitavam com algum trecho, enlevados com o cinismo passivo-agressivo expresso na escolha de cada palavra.

Eu mesmo fiquei tão estupefato que, na expectativa de encontrar outra obra-prima, comecei a colecionar mensagens similares. Nenhuma das 29 que consegui acumular sequer se aproximou daquela que deu origem à série. Até que chegou minha vez, em um passaralho que levou um terço dos remanescentes, e nada escrevi. Se fosse uma dispensa individual, também não me manifestaria. Porque, como diria o cancioneiro popular, não aprendi (a) dizer adeus.

(Gavetas esvaziadas e pertences amontoados em uma caixa, como na foto que ilustra este arrazoado, são ficção para mim. Jamais guardei nada, nem um reles arquivo pessoal, nos ativos imobilizados da firma. Sempre estive pronto para desligar o computador, ir embora e não voltar mais. Inclusive acho sensacional o conceito de “colocar o cargo à disposição”. Gafanhoto, seu cargo sempre esteve, está e estará à disposição, quer você o coloque ou não.)

O profissional que elevou o comunicado demissional ao estado da arte acabou sendo profético ao desejar “um até breve para quem fica”. Os cortes continuariam até que não sobrasse mais o que cortar, inaugurando um modelo de negócio tão disruptivo que prescinde do próprio negócio para sobreviver. Bem fez ele, que assistiu ao espetáculo do encolhimento do lado de fora. A última notícia sua que tive foi que havia sido visto no parque, passeando de mãos dadas com a namorada em pleno horário comercial.

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Entre palavrinhas e palavrões



Anticapitalismo e arte contemporânea – Curiosa reportagem sobre a febre dos games de palavras. Tanto o Wordle quanto o Termo nasceram do amor: o inglês, de um gringo pela esposa fissurada em passatempos com letras; o brasileiro, de um engenheiro mineiro pelo idioma. Além de gratuitos e sem propagandas, ambos impedem que o jogador gaste o dia neles – uma “crítica social” digna de nota em uma época de distrações viciantes, ávidas por monetizações e cheias de anúncios.

Morre o picareta, ficam os burros – Enquanto a grande imprensa nacional se enche de melindres, o correspondente de um veículo alemão no Brasil usa os vocábulos precisos para falar da vida e obra do ex-astrólogo que só acertou uma previsão: com tanta gente querendo ser enganada, ele jamais passaria fome.

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APARELHO | Nostalgia é feito transitório



Em mais um episódio da série NFT (não percebeu as iniciais?), mergulhamos no empirismo psicodélico que atrai fiéis e nutre desafetos. De Rolling Stones ao Primo Cruzado, da fase marroquina de Caetano Veloso às piadas de Robert Crumb que envelheceram mal, nosso olhar vesgo & ferino vasculha o patético e o sublime com o mesmo empenho. Com este presente bizarro e um futuro incerto, ninguém pode nos criticar por visitar o passado como se fôssemos o Silk Sonic da subversão-moleque.

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PLAYLIST | vive mal quem não vive de amor



Neste mundo maravilhoso.

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