20220208

PLAYLIST | give me things that don’t get lost

De um lado, uma empresa que torrou milhões de dólares com uma das vozes do negacionismo. Do outro, o artista do qual mais tenho discos (mais do que do Bob Marley!) e que desde muito antes de existir a palavra “lacração” admiro também como pessoa. Nessa treta entre o Spotify e Neil Young, não preciso de muito mais informação que isso para saber qual é a minha turma. Por isso, foi indolor deixar de usar os serviços da ex-plataforma de música.

Não cancelei minha conta porque estou pendurado no plano familiar de minha amada irmã. Mas não seria honesto comigo mesmo nem com quem divido estas mal-tecladas se continuasse fazendo playlists lá. É pouco? Pouquíssimo. É o que posso. Ainda acesso o aplicativo enquanto defino que substituto ganhará meus trocados. Por enquanto, vou de YouTube gratuito mesmo, sob protestos por não permitir que eu bote uma capinha personalizada.



(O único show de Neil Young que vi foi no terceiro Rock in Rio, em 2001, que cobri para a descontinuada revista Bizz. De lá para cá, não perco uma oportunidade de relembrar aquela noite mágica. Abaixo, um remix do que já publiquei por aí:)

Eu vi as cabeças mais feitas da minha geração possuídas pela devoção e pela loucura, fanáticos histéricos com camisetas de bandas, errando na madrugada por Jacarepaguá atrás de uma ponta caída onde antes havia grama, elementais urbanos debatendo-se em comunhão orgânica e ideológica com aquele senhor em cima do palco, que esperança e sangue e guitarras potentes e sentimentais despejou sobre o público na noite de 20 de janeiro de 2001.

Havia chegado à Copacabana na sexta anterior e, desde então, minha rotina consistia em acordar no quarto do três estrelas, entrevistar algum artista em algum hotel luxuoso, ir para o Rock in Rio do outro lado da cidade e, na volta, fechar bem as cortinas para o sol não entrar. Mesmo no intervalo de segunda, terça e quarta-feira, dedicado à redação das reportagens, a função começava às 10h da manhã e acabava lá pelas 7h de amanhã.

Naquele sábado, apesar das poucas horas de sono, da alimentação desregrada, do calor e da vida loka, não teve cansaço capaz de distorcer o que foi o show de Neil Young. Não para qualquer um: um dos fotógrafos da equipe (hoje um renomado videasta e ativista pró-maconha), com a afoiteza de sua juventude, retirou-se da frente do palco para a refrigerada sala de imprensa alegando que estava achando tudo “western demais”.

Mais tarde, em seu apartamento em Botafogo que servia de sucursal informal da revista, ele soube que perdera um momento único – também por razões que a gente ainda não sabia. Protegidos por São Clemente lá embaixo e pelo Cristo lá em cima, colecionamos histórias sensacionais sendo pagos para fazer o que a sociedade chama de trabalho. Quatro meses depois, estava tudo acabado: a revista Bizz seria extinta. Restou a matéria como registro da nossa inocência.

***
Nada do que se escrever aqui vai sequer chegar perto de traduzir o que foi o show de Neil Young. Pode-se descrever a ordem em que as músicas foram tocadas, a roupa dos músicos, a reação da plateia – que já era a menor do festival (125 mil pessoas) e diminuiu consideravelmente antes de começar sua aula. Mas conseguir, em palavras, expressar as sensações despertadas pela lancinante música do canadense é trabalho para um Nelson Rodrigues, não para repórteres ordinários feito a gente.

Em pouco menos de duas horas, o rock – aquele negócio que um dia traduziu os anseios da juventude, deflagrou mudanças de comportamento, contrariou a caretice – voltou a fazer sentido. Quando Young deixou o palco, às 3h30 da manhã, ser roqueiro não era mais sinônimo de ingênuo ou anacrônico. Porque o tempo nunca vai passar para ele.

Cenários grandiosos, efeitos pirotécnicos, figurinos da moda, exibições artificias de simpatia, naipe de metais, DJs, todas essas muletas do show business são dispensáveis para o gigante. No máximo, duas backing vocais em algumas canções. De calça jeans, camiseta e chapéu de caubói, ele se pôs calmamente a mostrar que, por mais que a oposição apregoe, “rock’n’roll can’t never die”.

Acompanhado pela banda Crazy Horse – a mesma de seus melhores discos, com o guitarrista Frank Sampedro, o baixista Billy Talbot e o baterista Ralph Molina – e por sua Gibson Les Paul, Young ensinou como é que se faz. Sem a impaciência dos veteranos nem a pachorra das grandes estrelas, embora tenha rodagem e prestígio suficientes para ignorar quem ignora sua música.

Da abertura, “Sedan Delivery”, ao encerramento com “Welfare Mothers”, passando por “Hey, Hey, My, My”, “Like a Hurricane” e “Rockin’ in the Free World”, o artista encantou os fiéis com inúmeros finais falsos, explosões de energia, passos desengonçados. Depois de cinco dias à base de britneys, axls, taylors, browns e quejandos, eu pude finalmente bater no peito – como Young se despedindo do público, sem falar nada – com a certeza de que o Rock in Rio seria inesquecível.

(Extraído da newsletter Extrato. Assine já e garanta o seu exemplar antecipado todas as terças!)

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