20220201

A difícil arte de dizer adeus



Tão previsível quanto a data-base do dissídio salarial e o reajuste abaixo da inflação, o email de despedida é um dos costumes mais tradicionais no universo empresarial. Do remetente aos destinatários, todos os envolvidos se portam com maturidade, esquecem as diferenças, reagem à novidade com temperança e discrição e… Tudo papo-furado: a mensagem final com o domínio corporativo é também a chance derradeira de dizer ou de deixar implícitas algumas verdades.

Quando eu operava no mercado formal, tive o privilégio de receber vários emails dessa natureza. A maioria ia pouco além de clichês motivacionais agradecendo a oportunidade e acenando para futuros desafios – demissionários, com satisfação e indiferença; demitidos, com o contato pessoal para vagas ou frilas. Mas houve uma mensagem que relegou ao esquecimento as que vieram antes e estabeleceu um novo parâmetro para as que viriam depois:

Colegas de redação, venho deixar um abraço para todos.
Não vou falar de ciclo se fechando, ciclo se abrindo, coisas parecidas. Prefiro falar de saltos. E às vezes saltamos para um andar mais alto, às vezes saltamos e caímos, às vezes saltamos no escuro. Este último é meu caso. Mas não é um escuro de dar medo. É um escuro de “o que será que tem aqui?”.
Para ser objetivo (como mandam algumas cartilhas jornalísticas por aí) estou de saída do [nome da empresa] hoje, por vontade própria.
Poderia listar algumas justificativas para essa decisão (para alguns de vcs, talvez abrupta). Vou resumir e dizer que meu conceito sobre trabalho (não o jornalismo, mas o trabalho no sentido amplo) não é compatível com determinadas regras e protocolos que costumamos aceitar. Ponto.
De todo modo, aqui foi um lugar agradável de se trabalhar. Quer dizer, na maior parte do tempo. Conheci pessoas muito inteligentes, espirituosas e com senso crítico apurado. Sou um cara silencioso, mas escuto e observo. Aprendi várias coisas com muitos de vcs. Sou grato por isso.
Este é meu tchau, um pouco mais longo do que eu previa. Termino por aqui, para não cansar ninguém. Afinal, o jornal precisa fechar. E amanhã, como leitor, quero ver a edição fresquinha hehe.
Um até breve para quem fica.
A frase de desfecho era justamente o assunto do email que pegou todo mundo de surpresa naquela tarde de janeiro de 2016. Ninguém esperava que “um cara silencioso” como ele não apenas fosse pedir as contas, como o fizesse com uma classe superior às reportagens já acima da média que entregava. Relida após relida, seus recém-ex-colegas se deleitavam com algum trecho, enlevados com o cinismo passivo-agressivo expresso na escolha de cada palavra.

Eu mesmo fiquei tão estupefato que, na expectativa de encontrar outra obra-prima, comecei a colecionar mensagens similares. Nenhuma das 29 que consegui acumular sequer se aproximou daquela que deu origem à série. Até que chegou minha vez, em um passaralho que levou um terço dos remanescentes, e nada escrevi. Se fosse uma dispensa individual, também não me manifestaria. Porque, como diria o cancioneiro popular, não aprendi (a) dizer adeus.

(Gavetas esvaziadas e pertences amontoados em uma caixa, como na foto que ilustra este arrazoado, são ficção para mim. Jamais guardei nada, nem um reles arquivo pessoal, nos ativos imobilizados da firma. Sempre estive pronto para desligar o computador, ir embora e não voltar mais. Inclusive acho sensacional o conceito de “colocar o cargo à disposição”. Gafanhoto, seu cargo sempre esteve, está e estará à disposição, quer você o coloque ou não.)

O profissional que elevou o comunicado demissional ao estado da arte acabou sendo profético ao desejar “um até breve para quem fica”. Os cortes continuariam até que não sobrasse mais o que cortar, inaugurando um modelo de negócio tão disruptivo que prescinde do próprio negócio para sobreviver. Bem fez ele, que assistiu ao espetáculo do encolhimento do lado de fora. A última notícia sua que tive foi que havia sido visto no parque, passeando de mãos dadas com a namorada em pleno horário comercial.

(Extraído da newsletter Extrato. Assine já e garanta o seu exemplar antecipado todas as terças!)


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