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Redenção além do céu cinzento



A pouco mais de um semestre de uma efeméride de suma importância para o país, espanta a inércia do governo, da sociedade civil organizada e dos formadores de opinião. Pouco se fala da data, o que denota não apenas o descaso de um povo com sua história, como corrobora a vocação tropical em fugir do acerto de contas com o passado. Fosse uma nação minimamente civilizada, já estariam programados simpósios, congressos, exposições, painéis e até webinários dedicados ao fato histórico comemorado em setembro.

O bicentenário da independência do Brasil merece todas as homenagens, mas precisamos reverenciar os 20 anos da invasão de uma rádio por um artista com arma em punho para obrigar o locutor a tocar as músicas da banda dele. Na tarde do décimo oitavo dia do nono mês de 2002, Marcus Vinícius Deorristte dos Santos desembarcou de um táxi na frente da sede da Atlântida FM disposto a fazer justiça, nem que para isso tivesse que sacrificar o pouco de dignidade que lhe restava.

Para entrar no prédio sem chamar a atenção, o então infante de 27 anos apostou no pretinho básico. A cor tingia o redor de seus olhos, a roupa com detalhes prateados e a capa sob a qual escondia um revólver. Demonstrando interesse em conhecer a emissora, identificou-se com os documentos do pai, Getúlio, e teve o acesso liberado ao estúdio. Insatisfeito com o que considerava uma tremenda falta de sacanagem – ninguém notá-lo –, resolveu partir para a ação.

Dali em diante, Marcus deixou de existir para se transformar em Cram. A entidade apontou o .38 para o comunicador Marcio (ironicamente) Paz, exigindo que fossem veiculadas as músicas do CD Fases da Vida, da banda Além do Céu Cinzento, do qual era vocalista. O site do grupo informava que a Terra, fragilizada no cenário pós-guerra, havia sido invadida por extraterrestres do planeta RX 222, que impuseram um reinado de terror usando os seres humanos como cobaias em experiências científicas.

Dez mutantes se reuniram para depor o imperador Oguh Rotciv em 5991 e o seu líder tornou-se o novo governador da Terra: Cram, claro. Ah, e a banda havia feito um pacto com o diabo (que sempre gostou das coisas escritas ao contrário) em Ergela Otrop. Paz rodou o disco inteiro e, em seguida, repetiu duas músicas. Após 70 catárticos minutos, Cram retornou para as profundezas e Marcus enfrentou as consequências de seu ato extremo em nome da arte.

O roqueiro se rendeu para ser indiciado pelos crimes de cárcere privado (reclusão de um a três anos) e porte ilegal de arma (detenção de um a dois anos e multa). A vítima o defendeu, dizendo que não se tratava de um marginal, e sim de um músico descontente com as dificuldades do mercado fonográfico, um típico revoltado com o sistema. Ressocializado, o airhead gaudério pegou pesado. Tornou-se cientista social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e integrante do Núcleo de Pesquisa sobre a América Latina.

(Extraído da newsletter Extrato. Assine já e garanta o seu exemplar antecipado todas as terças!)

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