20220215

A metametamorfose



Quando certa manhã a barata em que Gregor Samsa havia se transformado acordou de pesadelos tranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseada em um ser humano monstruoso. Estava deitada sobre o que antes eram suas costas duras como couraça e, ao levantar um pouco a cabeça, viu seu antigo ventre – abaulado, marrom, dividido por nervuras arqueadas – resumido a uma pança cheia de hematomas e com uma cicatriz medonha. Suas numerosas pernas ainda continuavam finas em comparação com o volume do resto do corpo, mas reduzidas a apenas duas.

— O que aconteceu comigo? — pensou.

Não era outro pesadelo. Seu quarto era o mesmo, os móveis idem. O olhar dela se dirigiu então para a janela. Pela arquitetura, percebeu que não estava em alguma capital europeia, e sim em Brasília. A visão das conchas que formam a estrutura do Congresso Nacional a deixou transtornada. Cogitou voltar a dormir para esquecer “toda essa tolice”, o que não conseguiu porque estava habituada a deitar de bruços, e sua forma recém-adquirida tinha a masculinidade frágil e não relaxava com o traseiro à mercê de invasores noturnos imaginários.

Impossibilitada de repousar, resolveu explorar sua nova condição. Equilibrando-se sobre o seu par de gambitos, chegou até o banheiro. Ao cruzar na frente do espelho acima da pia, o reflexo a assustou. Ela não tinha se transformado em um ser humano monstruoso qualquer: ela tinha se transformado no presidente da República, que reconheceu pela cara na medalhinha com a inscrição “imbrochável, imorrível e incomível” (sic, ou melhor, sick) guardada no bolso da fatiota amarrotada. Era repugnante demais, mesmo para um ex-inseto.

Foi o que bastou para ter um surto. Aproveitou que não conseguia se manter em pé com firmeza e caiu, já em prantos. Descobriu que chorar encolhida em posição fetal no friozinho do azulejo lhe trazia tanto conforto emocional quanto físico.

— Essa cuestão no tocante à minha aparência não é tão ruim assim, pelo menos não virei gay, tá ok? — disse a si mesma, surpreendendo-se com sua miséria vocabular e espiritual.

Refeita, decidiu que iria levar a vida normal de uma aberração. Ao sair à rua, teve um choque com a receptividade. Apesar de sua aparência antropomórfica, as pessoas em volta se afastavam dela como se ainda fosse uma barata – e não era por causa do hábito inconveniente de contar piadas ruins de sua personalidade presidencial. Os únicos a se aproximar eram semelhantes que se comportavam como bois, burros ou sanguessugas, entre outros bichos. Tirando esse detalhe, porém, sua rotina era quase idêntica à da fase invertebrada.

Como o primata que mimetizava, ela passava 75% do tempo inerte, contando os minutos para o próximo cochilo. Também era onívora, ou seja, comia de tudo (com especial predileção por doces, alimentos gordurosos ou de origem animal, contanto que estivessem estragados), e sem mastigar (sobretudo crustáceos). À menor ameaça, escondia-se em algum canto. Nos demais aspectos, era puro instinto, inclusive de sobrevivência. Ao se reunir com a base aliada do governo, ninguém notou a diferença. Todos ali se sentiam à vontade na imundície.
(Extraído da newsletter Extrato. Assine já e garanta o seu exemplar antecipado todas as terças!)

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