20161227

70 MÚSICAS DE 2016
O ano em que Beyoncé reinou absoluta

Eia! Sus! Eparrei! O ano foi tão escalafobético que até o rei do transtorno obsessivo compulsivo voltou a pronunciar “inferno” no indefectível especial de Natal. Se Beyoncé reinou absoluta como artista de 2016 – se não ela, quem? –, o mesmo não se pode dizer em relação à música. Não houve aquela que invadisse todas as AMs, FMs, elevadores, academias, celulares, salas de espera, formaturas, pistas e adjacências, tornando-se escolha unânime e inquestionável. Mas peneira daqui, pondera daqui e surgem canções suficientes para uma lista pessoal, sem distinção de gênero nem ambição maior do que distrair você:

1 | Don’t Hurt Yourself, Beyoncé



Discurso nenhum despertaria tanto engajamento se a música não tivesse força equivalente. Com a companhia inesperada de Jack White e samples de Led Zeppelin, ela se empodera para jogar na nossa cara: “Que porra você pensa que eu sou?”.

2 | Camadas, Céu



A partir da lisergia da MPB setentista, a balada se desenrola em pulsação encharcada de malícia até o refrão acenar com uma nova chance. Parece retrô, mas deixa claro que pertence a uma época de certezas líquidas e permanente transformação.

3 | The Numbers, Radiohead



Causador de turbulência, desta vez o grupo ancora em águas plácidas e tenta se movimentar sem fazer muita onda. Como a banda nunca costuma facilitar, da experiência emerge um quadro frágil e belo, tão devastado quanto devastador.

4 | Vamos Assumir, O Terno



O desafio é descobrir a idade dos integrantes – na casa dos 25 anos – e não se impressionar. Com versos dignos de quem já passou por muita coisa nesta vida e criatividade mutante, o trio paulista chega a um estágio que, se amadurecer, estraga.

5 | Pineal, Tagore



A faixa-título do melhor-disco-nacional-que-você-não-ouviu-neste-ano sugere uma versão pernambucana do Tame Impala. A diferença é que o psicodélico local sempre conviveu com o brega. O que, no contexto proposto, conta como vantagem.

6 | If I Ever Was a Child, Wilco



O mundo pode estar desmoronando que Jeff Tweedy não se abala. Respira fundo, dedilha a viola, suspira e abre um sorriso. Depois de mais de duas décadas de carreira, ele sabe que quem corre é a bola, jamais o jogador.

7 | Get Loud, Trails and Ways



Foram três EPs e um disco. Nada de mais. E então acontece. Despojados de maiores pretensões, os californianos mostram que mesmo uma bandinha fadada às divisões inferiores está sujeita a cometer a magia do pop. Ainda que uma única vez.

8 | Miracle Aligner, The Last Shadow Puppets



De férias do Arctic Monkeys, Alex Turner aproveita o projeto paralelo para aproveitar a fase iluminada. O professor de yoga que inspira a canção nem precisaria ser milagroso para fazer qualquer um dobrar os joelhos.

9 | Pink + White, Frank Ocean



Um dos primeiros rappers a sair do armário entrega uma declaração que tanto pode ser direcionada à pessoa amada quanto a uma droga. Seu verdadeiro significado torna-se secundário diante da magnitude da canção.

10 | Samba de Amor, Wado



A influência do axé em um disco batizado como Ivete é mais conceitual do que estética. No carnaval do catarinense radicado em Maceió, a folia se estende além dos três dias com uma cadência na qual é a delicadeza que não tem hora para acabar.

(coluna publicada hoje no Diário Catarinense)

70 MÚSICAS DE 2016
11 | New Song, Warpaint



Molecas adoráveis.

70 MÚSICAS DE 2016
12 | Prophets of Rage, Prophets of Rage



Vem para a rua bater panela, vem.

70 MÚSICAS DE 2016
13 | One Man, No City, Parquet Courts



Trova urbana.

70 MÚSICAS DE 2016
14 | , O Terno



Reflexões em clima de bailinho.

70 MÚSICAS DE 2016
15 | Hit, Mahmundi



Globo de Ouro.

70 MÚSICAS DE 2016
16 | I Have Nothing More to Say, Teenage Fanclub



Um lugar seguro para voltar no final do dia.

70 MÚSICAS DE 2016
17 | Superar, Sabotage



Tipo um trator que toma, leva e vai.

70 MÚSICAS DE 2016
18 | Pain, De La Soul



Aí entra o Snoop Dogg para completar a roda.

70 MÚSICAS DE 2016
19 | Under the Sun, DIIV



Em modo “memória afetiva”.

70 MÚSICAS DE 2016
20 | Ordinary, Two Door Cinema Club



Como derrubar a resistência com um refrão.

70 MÚSICAS DE 2016
21 | Lingerie & Candlewax, Mayer Hawthorne



Hoje é noite de maldade.

70 MÚSICAS DE 2016
22 | Bala na Agulha, BaianaSystem



Pacapá-pá-pá, pacapapapá.

70 MÚSICAS DE 2016
23 | The Longest Wave, Red Hot Chili Peppers



Cada geração tem a “Under the Bridge” que merece.

70 MÚSICAS DE 2016
24 | We the People, A Tribe Called Quest



Só no flow dando a real.

70 MÚSICAS DE 2016
25 | Free Time, TEEN



Comentário do internauta: “Hipster nonsense”.

70 MÚSICAS DE 2016
26 | Chapei, Don L & Lay



Louco – e não é de hash.

70 MÚSICAS DE 2016
27 | T.I.W.Y.G., Savages



Porrada nos caras que não fazem nada.

70 MÚSICAS DE 2016
28 | Whirling Eye, The Kills



Nova nova nova new wave.

70 MÚSICAS DE 2016
29 | Passersby, Quilt



Tudo gente séria, compenetrada.

70 MÚSICAS DE 2016
30 | Rapsódia Brasilis, Céu



Que horas ela volta?

70 MÚSICAS DE 2016
31 | Everything You’ve Come to Expect, The Last Shadow Puppets

70 MÚSICAS DE 2016
32 | Changes, Charles Bradley

70 MÚSICAS DE 2016
33 | Cosmic Love, Mayer Hawthorne

70 MÚSICAS DE 2016
34 | My Toy, Breakbot

70 MÚSICAS DE 2016
35 | I Can Change, Primal Scream

70 MÚSICAS DE 2016
36 | Dark Days, Local Natives

70 MÚSICAS DE 2016
37 | I Was Beautiful When I Was Alive, Teenage Fanclub

70 MÚSICAS DE 2016
38 | Fed Up, Max Romeo

70 MÚSICAS DE 2016
39 | Playsom, BaianaSystem

70 MÚSICAS DE 2016
40 | Marejou, Os Ritmistas

70 MÚSICAS DE 2016
41 | A Coisa Tá Preta, Rincon Sapiência

70 MÚSICAS DE 2016
42 | Paul in Rio, Joutro Mundo

70 MÚSICAS DE 2016
43 | Ainda me Lembro, The Outs

70 MÚSICAS DE 2016
44 | Espero, Dazaranha

70 MÚSICAS DE 2016
45 | Suddenly, Drugdealer

70 MÚSICAS DE 2016
46 | Rise, The Sunshine Underground

70 MÚSICAS DE 2016
47 | Hero, Tricky

70 MÚSICAS DE 2016
48 | Chocolate Drops, Iggy Pop

70 MÚSICAS DE 2016
49 | 16 Beat, Metronomy

70 MÚSICAS DE 2016
50 | Veneno, DeFalla

70 MÚSICAS DE 2016
51 | Starboy, The Weeknd

70 MÚSICAS DE 2016
52 | The Sound, The 1975

70 MÚSICAS DE 2016
53 | Pra Onde Foi?, Nando Reis

70 MÚSICAS DE 2016
54 | Eterno Verão (Boss In Drama Remix), Mahmundi

70 MÚSICAS DE 2016
55 | End of the Trail, Shit Robot

70 MÚSICAS DE 2016
56 | Felizes/Heart 2 Heart, Mano Brown

70 MÚSICAS DE 2016
57 | Albert Hofmann, The Chemistry Set

70 MÚSICAS DE 2016
58 | Rock & Roll Angel, Wild Belle

70 MÚSICAS DE 2016
59 | Subir É Fácil, Difícil É Descer, Cachorro Grande

70 MÚSICAS DE 2016
60 | Bitter Fruit, The Kills

70 MÚSICAS DE 2016
61 | Action, Cassius

70 MÚSICAS DE 2016
62 | Whitest Boy on the Beach, Fat White Family

70 MÚSICAS DE 2016
63 | Special Night,Lee Fields & The Expressions

70 MÚSICAS DE 2016
64 | Come Down, Anderson Paak

70 MÚSICAS DE 2016
65 | Ruaterapia, Rashid

70 MÚSICAS DE 2016
66 | Runaway, Nice as Fuck

70 MÚSICAS DE 2016
67 | Vincent, Car Seat Headrest

70 MÚSICAS DE 2016
68 | Oona, Pixies

70 MÚSICAS DE 2016
69 | Borders, Borders

70 MÚSICAS DE 2016
70 | Habib Galbi, A-Wa

20161220

Malandro também ama

Malandro não para, malandro dá um tempo. No caso de Mano Brown, um período de quase uma década desde que surgiram os primeiros rumores sobre seu disco solo. A estreia do rapper longe dos parceiros do Racionais MC's vinha sendo propagada como uma imersão ao funk, soul e R&B que o encantavam nos anos 1970 e 1980. Quanto mais demorava para sair, maior a expectativa. Finalmente lançado nos estertores deste 2016 tão fora da curva, Boogie Naipe entrega o que o single “Mulher Elétrica” – também presente no álbum – já prometia em 2009. Bem ou mal, você nunca ouviu Brown falar dessas coisas desse jeito.



Malandro não conversa, malandro desenrola uma ideia. Para revisitar a sonoridade dos bailes black sem se tornar mero decalque, ele se cercou de representantes do suíngue de ontem e de hoje. Das antigas, vêm o soulman carioca Hyldon (na autoexplicativa “Foi num Baile Black”) e o produtor americano Leon Ware, que recorre à experiência adquirida nos estúdios da gravadora Motown para revestir com classe e elegância o embalo de “Felizes (Heart 2 Heart)”. Da atualidade, aparece gente como Seu Jorge (que empresta “Louis Lane”) e aquele que poderia dividir os créditos do disco, Lino Krizz, com seu falsete a afinar de “Gangsta Boogie” a “Flor do Gueto”.



Malandro não ama, malandro sente desejo. Aí, não. Um dos baratos de Boogie Naipe é justamente trazer Brown se despindo da marra para bancar o cantor romântico. Um pouco desengonçado, é verdade, mas não deixa de ser inusitado aquele vozeirão grave a empostar versos como “Quem levou a pior fui eu/ Um dia fomos um só/ Pensei que jogo louco é o amor/ Quem ama sai perdedor” (“Mal de Amor”). Embora calejado na escola das ruas, sua falta de traquejo com as armadilhas do coração só escancara aquilo que todo marmanjo deveria saber: mulher mete mais medo em homem do que qualquer bandido.

Oásis sônico
No deserto eletrossertanejo que virou a programação de final de ano em Florianópolis, a vinda de uma banda como Os Camelos parece uma miragem. O trio carioca desembarca na cidade com um oásis sônico de jazz, baião, maracatu, silêncio e poesia para matar a sede por música orgânica & instigante. A turnê começa no Taliesyn Rock Bar (dia 24) e prossegue no Natural Veggie Hostel (27 e 31), La Cave (28 e 29), Blue Bird (5 e 6 de janeiro) e Botequim Floripa (7). O “instrumental popular” do grupo – composto por baixo, sax e djembe – pode ser conferido no disco Ampulheta, disponível no Bandcamp para audição (gratuita) ou download (o preço que o usuário desejar, inclusive nada).




 ANÇAMENTOS



The Weeknd, Starboy – Queridinho da crítica, o canadense Abel Makkonen Tesfaye continua a ascendente trajetória ao estrelato que experimentou com “Can't Feel My Face”. Desta vez, para que mais pessoas descubram sua pegada à Michael Jackson e Prince, ele convocou Daft Punk (na faixa-título e em “I Feel it Coming”) e Kendrick Lamar (“Sidewalks”).



Pharrell Williams, Hidden Figures – Como fez em Meu Malvado Favorito, de onde saiu o hit “Happy”, o cantor estrela a trilha sonora de um filme (Estrelas Além do Tempo, no título em português) na qual só tem a ganhar. Se nada acontecer, carreira que segue. Se emplacar outro sucesso interplanetário, seu próximo disco já nasce fadado ao milhão.



(coluna publicada hoje no Diário Catarinense)

20161213

O artista que mais trabalhou em 2016

Nem o “setor de operações estruturadas” das empreiteiras levou tão a sério a blague do espectro que hoje despacha do Alvorada – “não fale em crise, trabalhe” – quanto Omar Rodríguez-López. Sworm Virgins; Corazones, Blind Worms Pious Swine, Arañas en la Sombra e Umbrella Mistress; El Bien y Mal nos Une, Cell Phone Bikini e Infinity Drips; Weekly Mansions, Zapopan e Nom de Guerre Cabal: parece a escalação de um time de futebol no tradicional esquema 4-3-3, mas são 11 dos 12 discos assinados pelo artista porto-riquenho neste ano. O derradeiro, Some Need it Lonely, sai nesta sexta-feira.



Multi-instrumentista, compositor e produtor, Rodríguez-López despontou na cena musical a bordo da banda texana At the Drive-In, que alcançou certa notoriedade na década de 1990 com seu elaborado hardcore. Depois, montou o progressivo The Mars Volta e pilotou os projetos paralelos De Facto (dub) e Antemasque (prog punk). Por mais distintos que fossem, todos deixavam claro que ele tinha uma facilidade surreal para soar difícil – leia-se experimental, não comercial e com grande apuro técnico. Um geninho canhoto que encarou a crise de meia idade (está com 41 anos) do lado de fora da casinha.



A dúzia de álbuns solo engloba gravações feitas entre 2008 e 2013 e começou a ser lançada no dia 15 de julho. Dali em diante, a cada duas semanas um novo título vinha à tona. Além dos rótulos aos quais o autor já era associado, a obra traz incursões pelo rock, indie e ambient, sempre desafiando a persistência (ou resiliência) do ouvinte. Um dos discos, Arañas en la Sombra, conta com as participações de três ex-colegas do Mars Volta e do ex-guitarrista dos Red Hot Chili Peppers, John Frusciante. Curiosidades à parte, é muito bom saber que a música em 2016 ainda comporta desvairados como Omar Rodríguez-López.



Temporada de listas

E eis que os principais veículos do mundo pop começam a divulgar suas listas de melhores discos do ano. As amostras abaixo já revelam tendências e presenças constantes nas relações dos favoritos da crítica:

Entertainment Weekly
1 |
Lemonade, Beyoncé
2 | Blackstar, David Bowie
3 | Anti, Rihanna
4 | 99.9%, Kaytranada
5 | A Sailor’s Guide to Earth, Sturgill Simpson

Mojo
1 | Blackstar, David Bowie
2 | Love & Hate, Michael Kiwanuka
3 | Skeleton Tree, Nick Cave & The Bad Seeds
4 | Flotus, Lambchop
5 | You Want It Darker, Leonard Cohen

New York Times
1 | Lemonade, Beyoncé
2 | Blackstar, David Bowie
3 | We Got It From Here … Thank You 4 Your Service, A Tribe Called Quest
4 | A Moon Shaped Pool, Radiohead
5 | You Want It Darker, Leonard Cohen

NME
1 | I Like It When You Sleep, for You Are So Beautiful Yet So Unaware of It, The 1975
2 | The Life Of Pablo, Kanye West
3 | Chaleur Humaine, Christine And The Queens
4 | Konnichiwa, Skepta
5 | 99.9%, Kaytranada

NPR
1 | A Seat at the Table, Solange
2 | Lemonade, Beyoncé
3 | Blackstar, David Bowie
4 | Blonde, Frank Ocean
5 | 22, A Million, Bon Iver

Paste Magazine
1 | Blackstar, David Bowie
2 | Lemonade, Beyoncé
3 | Teens of Denial, Car Seat Headrest
4 | We Got It From Here … Thank You 4 Your Service, A Tribe Called Quest
5 | Puberty 2, Mitski

Rolling Stone
1 | Lemonade, Beyoncé
2 | Blackstar, David Bowie
3 | Coloring Book, Chance The Rapper
4 | Teens Of Denial, Car Seat Headrest
5 | Blonde, Frank Ocean

Spin
1 | A Seat at the Table, Solange
2 | Blonde, Frank Ocean
3 | Blackstar, David Bowie
4 | We Got It From Here … Thank You 4 Your Service, A Tribe Called Quest
5 | I Like It When You Sleep, for You Are So Beautiful Yet So Unaware of It, The 1975

Uncut
1 | Blackstar, David Bowie
2 | A Moon Shaped Pool, Radiohead
3 | Skeleton Tree, Nick Cave & The Bad Seeds
4 | You Want It Darker, Leonard Cohen
5 | Golden Sings That Have Been Sung, Ryley Walker

(coluna publicada hoje no Diário Catarinense)

20161206

Um trocadilho a serviço da sujeira glam

Farra do Bowie não é só o melhor nome de banda nacional dos últimos tempos. O trocadilho – uma arte representada atualmente na música gringa por gente como Chet Faker, Dandy Warhols, Joy Orbison, Com Truise ou Slick Jagger, mas que nunca foi bem explorada nesta terra de artistas sérios – expressa com exatidão a proposta da camarilha de Florianópolis. Seu disco de estreia Born to Be a Faggot leva o ouvinte para um rolê regado a álcool, tabaco & aditivos químicos na companhia de seres sem sexo definido nem compromisso com a ressaca.



A estética glam, adotada por David Bowie em determinado momento da carreira, aparece de cara na abertura com a faixa-título. Tão cara ao estilo, a androginia é escancarada a partir do verso que a batiza, “nascido para ser uma bicha”. A sonoridade crua e áspera perpassa as nove músicas, empilhando referências do quilate de New York Dolls, Stooges e Rolling Stones da primeira metade dos anos 1970. Principalmente quando se sabe que o guitarrista André Seben, veterano da cena local, paga pau para Keith Richards (quem não?).

“Fap Farmer”, “Raised to Be a Wanker” e “Mental Condition” enquadram-se nessa categoria, enquanto as canções em português sugerem também outras manifestações do submundo. A trinca “Esquizofreak”, “Vidal Claustrofobia” e “Saí para Comprar um Cigarro” conjuga blues de garagem com velocidade que se aproxima do hardcore, como se os Replicantes rastejassem decadentes pelo centro da ilha. Para finalizar, mais um jogo de palavras: “There’s no Time, Toulouse”, com épicos nove minutos de distorção. É a infâmia a serviço do rock.

Funk’n’roll
Quem sobreviver ao show de lançamento do disco da Farra do Bowie nesta quarta (7) deve considerar a hipótese de se acabar no sábado no Babilonya Club sob o sonzeira da Pata de Elefante. Desativado há mais de três anos, o trio gaúcho volta a Florianópolis com a reputação de ser uma das melhores bandas de rock instrumental do país. A abertura fica por conta dos paulistas do Black Papa (já abordados nesta coluna) homenageando Funkadelic e Parliament. Ou seja, o negócio começa com o groove espacial dos grupos de George Clinton e termina com todo mundo esmagado pela potência mastodôntica dos gaudérios. Domingo vai ser pouco para a recuperação. Mais informações aqui.




 ANÇAMENTOS



A Tribe Called Quest, We Got It from Here... Thank You 4 Your Service – Dezoito anos depois, os rappers mais relaxantes da quebrada voltam com o flow intacto em um álbum duplo. Garantia de levadas com tecladinhos jazzy (“Space Program”), samples espertos (“We The People”, com um Sabbath ) e uma irresistível manha em desanuviar o cabeção (todas).



Frank Zappa, Zappatite – Coletânea com as faixas mais saborosas do gênio maluco morto em 1993. Pode funcionar como porta de entrada para se interessar pelo bigodudo, pois serve apenas o lado acessível de uma obra tão gigante quanto irregular. Mas não espere simplicidade: mesmo quando flerta com o pop, Zappa dá um jeito de aloprar.



(coluna publicada hoje no Diário Catarinense)

20161129

Comfort food para os ouvidos

Em 2002, em plena turnê de divulgação do disco A Melhor Banda de Todos os Tempos da Última Semana, Nando Reis deixou os Titãs depois de 20 anos e 11 álbuns. Alegou “incompatibilidade de pensamento em relação ao futuro da preparação” do próximo trabalho do grupo e que, por razões pessoais, não poderia oferecer a total dedicação que a empreitada exigiria. Não era desculpa: as mesmas “honestidade e consideração” usadas como argumento para nortear sua decisão são cultivadas com desvelo em uma carreira solo que desemboca no oitavo lançamento com Jardim-Pomar.



O título saiu de um livro de Murilo Mendes (1901-1975), A Idade do Serrote. No original do escritor mineiro, o jardim da casa paterna se confunde com o paraíso bíblico. Na concepção do músico, é um lugar onde Deus, a criação, a experiência, o amor, a morte, o passado e o futuro convivem em 13 canções. Ou, como ensina a terceira faixa, “Inimitável”, “se vamos todos morrer, então vamos tratar de viver”. Daí em diante, o disco, que vinha em compasso mais roqueiro, adota o tom baladeiro (nada a ver com festas, pliz) habitual de Nando Reis, seja como compositor de hits gravados por Cassia Eller, Jota Quest e quejandos, seja como cantautor.

Produzido entre São Paulo e Seattle pelos mesmos Jack Endino e Barrett Martin de parcerias anteriores, Jardim-Pomar mostra-se terreno fértil para o folk popular brasileiro de “4 de Março”, “Só Posso Dizer” e “Como Somos” (a única que divide os créditos com Samuel Rosa, do Skank). Nessa linha, a cadência e os timbres de “Pra Onde Foi?” remetem até a Noel Gallagher – talvez porque, como o ex-Oasis em alguns momentos, Nando Reis serve o equivalente sonoro à comfort food: pratos simples e saborosos, que sempre trazem boas lembranças.

Justiça para todos
O grande desafio do Justice para o terceiro álbum era não sucumbir à maldição do hit “D.A.N.C.E.”. A faixa catapultou a dupla francesa para as paradas espertas em 2007 e se tornou a baliza do seu trabalho desde então. No recém-lançado Woman, Gaspard Augé e Xavier conseguem atingir esse objetivo com mais eficácia do que em Audio, Video, Disco (2011), privilegiando a atmosfera da disco music ao bate-estaca eletrônico. A festa não para em faixas como “Safe and Sound”, “Alakazam!” ou “Fire”. Nem que, para isso, os gauleses tenham que olhar no retrovisor para continuar seguindo adiante – um detalhe irrelevante diante da ferveção na pista.




 ANÇAMENTOS



Cerrone, Red Lips – Conhecido pelo sucesso Supernature (1977), o veterano produtor voltou à ordem do dia depois das colaborações com o Daft Punk. Lendas do quilate de Nile Rodgers (do Chic) e o baterista nigeriano Tony Allen somam-se a representantes de gerações mais novas como o cantor de soul Aloe Blacc e Alexis Taylor (do Hot Chip) para saudar toda a sua maestria neste disco.



Jonnata Doll e os Garotos Solventes, Crocodilo – Terceiro disco do combo cearense que, qual um Stooges do sertão, celebra sexo, drogas & rock’n’roll com uma sonoridade crua e agreste. A exceção são os sintetizadores de “Táxi”, ainda assim usados mais para realçar o discurso punk do que para suavizar a vida louca.



(coluna publicada hoje no Diário Catarinense)

20161122

Charada eterna

Uma colega da redação avisa que tem uma ligação para mim. “É Supla”, diz ela, com um misto de surpresa e ironia, antes de transferir o ramal. A simples menção do nome me deixa em estado de alerta. Uma chamada do dito cujo é sempre uma cortina aberta para o imponderável. Mas ele quer apenas – ufa! – informar que está lançando Diga o que Você Pensa, o (pelas suas estimativas) 17º disco de uma trajetória que inclui as bandas Tokyo e Psycho 69, o projeto Brothers of Brasil (com o mano João) e a carreira solo.



Nosso último contato havia sido na virada do século, quando ele telefonou para contar que estava voltando ao Brasil depois de algumas temporadas nos Estados Unidos, onde o conheciam como “macaco branco doido”. Revelou também que iria se dedicar à “bossa furiosa” e que poderíamos dar um “rolê de carro” ao som de suas novas composições. O total da soma das três expressões entre aspas foi um convite recusado. Perdi a oportunidade de escutar em primeiríssima mão o futuro clássico mundial “Green Hair (Japa Girl)”.

Desta vez, não hesito e clico em seguida no link que ele passou por e-mail para ouvir o álbum. Tirando o fato de que a existência de um trabalho inédito de Supla em 2016 é por si só digna de pasmo, sobressaem-se rocks caprichados (“Pelo Chaos”, a faixa-título), baladas pungentes (Anarquia Lifestyle) e aquela saudável e típica galhofa (“Trump Trump Trump”, “Parça da Erva”). Tudo com condições de competir com o que é vendido por aí como pop nacional, não fosse o autor visto com reservas no meio. É o preço que ele paga por ainda ser uma autêntica charada.

Mamutes na pista
Nem bem desembarcou da turnê internacional para promover o disco Dark Tales & Love Songs, o Elekfantz já retornou aos estúdios para lançar o single Blush. A nova faixa do duo catarinense formado por Leo Piovezani e Daniel Kuhnen surgiu como uma homenagem a Prince – a referência fica evidente tanto nos sintetizadores fortes que evocam os anos 1980 quanto no falsete dos vocais. A letra demonstra a fragilidade masculina diante dos encantos de uma mulher que sabe o que quer: “Garota, você está me fazendo corar”, diz. Apesar do verso, é som para se dançar sem vergonha na pista.




 ANÇAMENTOS



The Sunshine Underground, Luminescent – No quarto (e anunciado como último) disco, os britânicos indie-dance oferecem mais um punhado de faixas com um pé na eletrônica e o outro também. O saldo é um tecnopop que, quando encaixa, gera melodias aderentes e refrãos infalíveis, como em “Rise” e “Something’s Gonna Happen”.



Trails & Ways, Own It – Depois de três EPs com alguma reverberação no meio college americano, a banda californiana chega ao segundo álbum pronta para ampliar sua base de fãs. O negócio começa muito bem com a quente “Get Loud”, mantendo a temperatura elevada com rock alternativo e pop movido a delicadezas variadas.



(coluna publicada hoje no Diário Catarinense)

20161115

Muito barulho por tudo

O lançamento do 10º disco de estúdio do Metallica, previsto para esta quinta-feira, encerra uma espera de oito anos. Hardwired… To Self-Destruct decreta o fim do mais longo período em que a banda ficou sem desovar nada inédito com toda a pompa – álbum duplo ou, na versão de luxo, triplo, com um CD bônus ao vivo – e nenhuma circunstância: passado este tempo, é difícil achar alguma alma fora do rebanho de fiéis seguidores que esteja esperando algo do grupo com ansiedade. Por mais que o interesse restrito aos fãs sugira uma espécie de retorno às origens, não deixa de ser um estudado passo atrás para uma instituição do metal que havia alcançado um público além dos aficcionados do gênero.



Com apelo reduzido ou não, o fato é que Hardwired… é o melhor trabalho do Metallica desde o auto-intitulado álbum preto de 1991, justamente o disco que fez a banda extrapolar o nicho siderúrgico com hits como “Enter Sandman” e “Unforgiven”. Não que fosse difícil, já que após o best-seller o quarteto tornou-se muito mais notório pela luta (perdida) contra o compartilhamento de arquivos de áudio na internet do que pelo peso de suas músicas. A segunda parte, pelo menos, é sanada logo com a faixa-título, que abre a sessão de 80 minutos de pancadaria sinalizando que o tesão voltou.

É como se o quarteto conseguisse reunir a agressividade dos primórdios com ecos da fase em que reinou nas rádios roqueiras. “Dream No More” sintetiza a proposta trazendo referências tanto do sucesso “Sad But True” como do clássico cabeludo “The Call of Ktulu” (1984). Com potencial para virar uma das prediletas em shows, “Now That We’re Dead” promove a bateção de cabeças mediante doses maciças de guitarras convertidas em serras elétricas. E por aí vai, até o desfecho com a britadeira marcial de “Spit Out the Bone”. Ah, e não adiantou nada ameaçar com processo quem baixasse suas músicas: para variar, o disco vazou antes da data oficial da chegada às lojas.

Sexo após os 80
No início da década de 1980, Tom Zé andava tão por baixo que estava pronto para voltar à sua Irará (BA) natal e trabalhar como frentista no posto de combustível de um sobrinho. Foi salvo por David Byrne, que se encantou com a obra do baiano e resolveu lançar uma coletânea dele nos Estados Unidos. Daí em diante a história seguiu seu curso natural, com o artista engatando uma profícua carreira que desemboca agora em Canções Eróticas de Ninar. Depois do samba, neste disco o menestrel estuda o sexo em modinhas e toadas com nomes singelos como “Dedo”, “Orgasmo Terceirizado” e “No Tempo Em Que Ainda Havia Moça Feia”. “(...) Só agora, aos 80, encontrei forças para mergulhar na questão. Embora ela esteja sempre presente no ar. Tema que envolve brincadeira, ansiedade, segregação, gosto, blasfêmia, oração”, diz o autor no encarte. Sacanagem é não ouvi-lo.




 ANÇAMENTOS



Belle and Sebastian, The Jeepster Singles Collection – Imagine o teor de açúcar de uma compilação de singles de uma banda já conhecida pela fofura que imprime em cada acorde, em cada refrão. Um disco terminantemente vedado a diabéticos, mesmo os que se esforçam, para ver alguma nesga de maldade na retrô “Legal Man”.



Yo la Tengo
, Murder in The Second Degree – Em 2006, a banda gravou um disco de versões afirmando que assassinava os clássicos. O truque e a piada repetem-se agora com mais uma fornada de músicas alheias traduzidas pela ótica peculiar dos indies de Nova Jérsei. No menu, cabem releituras tortas que vão desde “Hey Ya” (Outkast) a “Add it Up” (Violent Femmes).



(coluna publicada hoje no Diário Catarinense)

20161101

Inocência perdida

As opções sonoras para um jovem brasileiro na virada de 1970 para 1980 eram de uma mesmice de dar dó. Em 1977, ano mágico para o punk mundial, a lista dos discos mais vendidos no Rio de Janeiro e em São Paulo refletia o marasmo. Ao lado do indefectível Roberto Carlos, figuravam trilhas de novelas, sambistas e Elton John. Diante desse cenário nada animador, restavam duas alternativas: a resignação ou a revolta. É da segunda que trata o recém-lançado Meninos em Fúria e o Som que Mudou a Música para Sempre, leitura imperdível sobre um momento de transição não apenas da cultura pop, mas também da política no Brasil.

Os meninos são dois personagens que viveram intensamente aquela época. Um, Marcelo Rubens Paiva, branco, filho de classe média alta, ainda se acostumando com a realidade em cima de uma cadeira de rodas. Outro, Clemente Tadeu do Nascimento, negro, criado na periferia e desde cedo envolvido com guerras de gangues. Os caminhos de ambos se cruzam em 1982, em um show na PUC paulistana. Na plateia, o “cadeirante doidão”. No palco, o baixista de uma banda que surgiu para “pintar de preto a asa branca, atrasar o trem das onze, pisar nas flores de Geraldo Vandré e fazer da Amélia uma mulher qualquer”.



A fúria se traduzia na negação do passado, desencanto com o presente e niilismo quanto ao futuro. O som que mudou a música para sempre era o punk rock que Marcelo descobria e Clemente, à frente dos Inocentes, praticava. Intercalado com experiências pessoais dos dois, o livro mostra como o movimento foi ganhando corpo em paralelo com a agonia da ditadura que terminaria em 1985, até ser absorvido pelo mercado. Mas aí o estrago já estava feito, por mais que as parada atuais desmintam isso. Afinal, hoje ninguém mais liga para elas.

Que entre o pop
O Two Door Cinema Club despontou ali pelo final dos anos zero-zero, no levante dance-rock que encheu de guitarrinhas a música direcionada às pistas. O grupo voltou para a irrelevância com ao menos um hit na bagagem, “Something Good Can Work” – que chegou a ganhar uma antológica versão eletrobrega da Banda Uó. Eis que, quando nada mais se esperava dos irlandeses, eles reaparecem com o surpreendente Gameshow. Em comparação com os anteriores, neste terceiro terceiro disco o trio assume-se mais pop, investindo em refrãos que grudam à primeira audição (“Are We Ready”, “Bad Decisions”, “Ordinary”) e ameaçam fazer companhia único sucesso do grupo.




 ANÇAMENTOS



Murilo Mattei, Tristes Texturas Alegres Trópicos – Ex-Vinolimbo, Murilo Mattei cercou-se de um notebook, um teclado e um celular em sua base em Florianópolis para produzir o que chama de “ode aos brasileiros”. Espécie de jam solitária, o disco desfila timbres, cadências e referências que se desenrolam entre a contemplação e desconforto.



Slaves, Take Control – O segundo disco dos espoletas ingleses promove aquela saudável balbúrdia que tanta falta faz no pop atual. A novidade é a produção do beastie boy Mike D, que desencavou seu passado hardcore para engordar um som que já era barulhento por natureza – e, não contente, ainda participa de “Consume or Be Consumed”.



(coluna publicada hoje no Diário Catarinense)

20161025

O maestro do Canão vive

Como Sabotage já dizia em 2002, “o nego não para no tempo”. Não para mesmo – nem depois de morto. O rapper paulistano voltou à cena no último dia 17 com um disco homônimo esperado há pelo menos 13 anos, quando sua trajetória foi interrompida com quatro tiros à queima-roupa. A audição das 11 músicas produzidas pelo coletivo Instituto com as rimas que o falecido deixou gravadas provoca tristeza pelo talento que se perdeu cedo demais. Mas também confirma a impressão de que o “maestro do Canão” (favela onde morou) estaria hoje ao lado de Criolo, Emicida e Racionais MC's na linha de frente do hip hop nacional.

Desde que surgiu em 2000 com Rap É Compromisso, Sabotage dialogava tanto com a periferia quanto com o asfalto. Falava a língua dos manos, era entendido pelos playboys, tinha o respeito e a admiração de ambos. Seus raps seguiam os fundamentos do estilo, sem abdicar das conexões com samba e MPB. O álbum póstumo reflete essa gama de interesses e abordagens: enquanto “Superar” desce mais ortodoxa, com cadência clássica do gênero construída sobre um balanço típico de filme policial da década de 1970, “Maloca É Maré” traz aquela batida perfeita de fundo de quintal que enriqueceu Marcelo D2.



Mais na maciota, “O Gatilho” diminui a rotação para acentuar o contraste entre a harmonia da base e a crueza dos versos. “País da Fome: Homens Animais” vai mais fundo e lembra, logo no início, o assassinato do autor em “um crime ainda sem explicação”. Mais tarde, foi descoberto que o homicídio tinha relação com tretas passadas envolvendo disputa de facções rivais por território. Longe de ser santo, aos 29 anos Sabotage estava tentando tocar a vida em paz após um histórico de porte ilegal de armas, tráfico de drogas e execuções. A retaliação foi mais rápida. A renda do disco será revertida aos seus filhos, Wanderson e Tamires.

Tesão de veterana
Presença garantida em qualquer coletânea dos anos 1980 com “Middle of the Road” e “Don't Get me Wrong”, os Pretenders estão de volta com Alone. No primeiro disco desde 2006, o grupo resume-se à líder Chrissie Hynde, que só não está sozinha como diz o título porque a colaboração do geninho Dan Auerbach (Black Keys) equivale a uma banda inteira. Escolada no pop rock, a veterana americana embarca na viagem sessentista do produtor, uma inspiração que ele já explora bem com o projeto paralelo The Arcs. O soul insinua-se por “Roadie Man” e “Never Be Together”, a refrescante “One More Day” saúda os trópicos e “Holy Commotion” cairia como uma luva em um bailinho, não fosse a voz algo grave de lady Hynde a lhe revestir de solenidade. Aos 65 anos, a senhora merece toda a reverência.




 ANÇAMENTOS



Jagwar Ma, Every Now & Then – O segundo disco dos australianos supera a estreia em quaisquer aspectos. De acordo com a faixa escolhida, pode ser mais pop, mais eletrônico, mais psicodélico ou mais denso. Todos esses predicados se condensam no single “Give me a Reason”, embora “Say What You Feel” e “Loose Ends” também cumpram a missão com louvor.



Black Papa, Suor – Apadrinhada pelo soul brother Gerson King Combo, a banda paulistana se define como punk-funk, mas é o segundo rótulo que bate forte neste EP com cinco canções – vide a black music da faixa-título, um convite à pista. Mesmo a politizada “Não Vamos nos Calar” contesta o sistema sem descuidar do movimento. No caso, dos quadris.



(coluna publicada hoje no Diário Catarinense)

20161018

Sua arte, suas regras

Durou pouco o envolvimento de Norah Jones com a cultura alternativa – mais precisamente, um disco. Para satisfação de uns, decepção de outros e surpresa de todos, o novo álbum, Day Breaks, traz a cantora de volta ao seu habitat natural. A despeito da merecida repercussão obtida pelo sensacional Little Broken Hearts (2012), no qual o flerte com outras sonoridades avançou pelo visual com a adoção de uma inesquecível franjinha, o sexto lançamento retoma a trilha aberta pela estreia Come Away with me (2002): jazz contemporâneo, tão cômodo quanto a zona de conforto de onde ela quase nunca saiu.



O que a levou a abandonar uma carreira promissora como diva indie e reencontrar o antigo estilo com que despontou é daqueles mistérios que só as idiossincrasias da arte justificam. O fato incontestável é que Norah Jones sente-se em casa martelando doces canções ao piano. Primeiro, porque ninguém estranha quando sua voz abre o trabalho com a suavidade de “Burn”. Segundo, e mais importante, porque enquanto sua incursão anterior contava apenas com o produtor Danger Mouse a lhe respaldar a escolha, em Day Breaks a credibilidade jazzística que ela já tem é reforçada pela presença dos gigantes Wayne Shorter e Lonnie Smith.

Mais do que um “retorno às raízes”, estamos diante de uma artista à vontade para entrar em uma onda e, curtindo ou não, partir para outra. Seu único compromisso é consigo mesma, seja para acenar às rádios adultas com soft pop em “Tragedy”, ensaiar uma acelerada com “Flipside” ou cometer uma versão de Neil Young (“Don't Be Denied”). Musa, dessas de atiçar hormônios adolescentes, ela nunca foi mesmo. Muito menos hipster. Aos 37 anos e mãe de dois filhos, seu melhor papel é o que decidir desempenhar na hora em que bem entender. O jazz sempre estará de braços abertos para recebê-la.

Mulheres de fases
As mulheres estão no comando. Querem mais, querem melhor, querem tudo & querem agora. Portanto, renda-se ao Warpaint, grupo californiano formada por quatro moçoilas no Dia dos Namorados (no calendário dos Estados Unidos, 14 de fevereiro) de 2004. A fofura termina na data de nascimento: o som delas nada tem de delicado ou outro adjetivo automática e preconceituosamente associado à feminilidade. O recém-lançado quarto disco, Heads Up, até dá uma aliviada, embora siga sem concessões ao apelo do pop fácil. “New Song” é a faixa que mais se aproxima de um hit, em meio a um álbum no qual microfonias, ruídos e vazios dispensam peso e/ou velocidade para impressionar. As garotas estão longe de serem perfeitinhas, mas encantam com sua complicação.




 ANÇAMENTOS



Emanuelle Araújo, O Problema É a Velocidade – Conhecida por seu trabalho como atriz, a baiana de 40 anos (também vocalista da banda Moinho e da Orquestra Imperial) estreia em disco no limite entre o pop e a MPB. Como tudo o que se pretende muito eclético, corre grande risco de não agradar os fãs de um nem de outra.



Drugdealer, The End of Comedy – O projeto do americano Michael Collins não tem esse nome à toa. Leve, orgânica e curtida sob o sol de Los Angeles, a psicodelia do “traficante de drogas” vai da pompa ao minimalismo, deixando o ouvinte intrigado com baladas agridoces como “Sud­denly” ou “Easy to Forget”. A participação do não menos experimental Ariel Pink nessa última diz muito sobre a empreitada.



(coluna publicada hoje no Diário Catarinense)

20161011

Retorno ao templo do grunge

No subconsciente do pop, Seattle era apenas a terra natal de Jimi Hendrix quando o furacão grunge varreu o mundo no início da década de 1990. Encabeçado pelo Nirvana, o estouro do estilo musical associado à chuvosa cidade do noroeste dos Estados Unidos deflagrou uma corrida em busca da próxima sensação vinda de lá. Nesse movimento, o mundo acabou desenterrando o Temple of the Dog, que precisou gravar apenas um disco para se colocar entre os maiores daquela cena.

Para regozijo dos saudosistas e deleite da juventude interessada, os 25 anos do lançamento da autointitulada estreia da banda não passaram em branco. O álbum ganhou nova edição, acrescida de demos e takes alternativos, e seus integrantes se reuniram para uma série de shows, todos já com os ingressos esgotados. Hoje é fácil chamá-lo de supergrupo devido à fama de seus integrantes, egressos do Soundgarden e do Pearl Jam. Mas, na época, não passava de uma singela forma de homenagear um amigo morto por overdose de heroína.



O falecido era Andrew Wood, vocalista do Mother Love Bone – uma das matrizes do “som de Seattle” –, que havia sucumbido à droga em 1990. Precedido pelo single “Hunger Strike”, o trabalho mesclava baladas na voz pungente de Chris Cornell (“Call Me a Dog”, “Times of Trouble”, “Say Hello 2 Hea­ven”) com peso setentista sem prazo de validade (“Pushin' Forward Back”, “Your Savior”). Enfim, um discaço-aço-aço. Não espere mais 25 anos para conhecê-lo ou ouvi-lo outra vez.



O noise nosso de cada dia
A véspera de feriado abre uma minitemporada intensa para as hostes roqueiras de Florianópolis. Hoje, a Célula recebe o finlandês The Vintage Caravan para o Abraxas Fest, convescote metálico-lisérgico que também conta com a alegreportense Cattarse e a brusquense Ruínas de Sade. E, a partir da próxima segunda, o já tradicional Floripa Noise espalha seu esplendor por diversos palcos da Capital. Até domingo, a programação do festival prevê shows de Orquestra Manancial da Alvorada, Mukeka di Rato, Walwerdes, Tom Bloch e Cochabambas, entre outras atrações recomendadas para toda a família. Mais detalhes – incluindo um insuspeito “churrasco do Zimmer” – aqui.




 ANÇAMENTOS



Pixies, Head Carrier – Faixa-título berrando no talo, “Um Chagga Lagga” em velocidade punk, “Oona” e “Plaster of Paris” brincando com o pop, “All I Think About Now” evocando o hit “Where's My Mind”: que bênção Frank Black e cia recusarem-se a envelhecer. Como uma amiga disse sobre o grupo, “é sempre bom”.



Douglas Germano, Golpe de Vista – O segundo disco do sambista paulistano não se compromete com nenhuma bandeira que não a celebração do próprio estilo. Na malandragem torta feita de caixa de fósforo, percussão e violão, não tem como não se deixar levar por “Maria de Vila Matilde” ou “Guia Cruzada”.



(coluna publicada hoje no Diário Catarinense)

20161004

Não era amor, era só falsidade

As mulheres estão dominando o planeta. Presidem países, comandam empresas, lideram movimentos. Cada vez mais, desfilam sua superioridade em áreas tradicionalmente regidas pelos homens e não saem mais do topo. Não seria a música neossertaneja, sempre tão aberta às tendências contemporâneas, que resistiria ao empoderamento feminino: como demonstra a compilação Agora É que São Elas, os cowboys urbanos que cavalgavam solitários na crista do sucesso agora enfrentam a concorrência de prendas dispostas a tomar as rédeas desse importante filão do mercado fonográfico.



O disco reúne nomes como Marília Mendonça, Maiara & Maraisa, Simone & Simaria, Paula Fernandes e até a decana Roberta Miranda. Elas sofreram preconceito por preferir a viola às bonecas. Eram vistas com desconfiança. Talentosas, não desistiram. E conseguiram, depois de décadas de luta por direitos iguais, um lugar de destaque no clube do bolinha do sertanejo nacional – para falar das mesmas coisas do mesmo jeito que seus pares masculinos e usar calças tão apertadas quanto. Pense em balada, bebedeira, romance, sexo e traição, só que com voz mais aguda e letras com gênero trocado.



Não por acaso, o material de divulgação da coletânea limita-se a apresentar números. A cantora posicionada entre os 20 artistas mais acessados no YouTube em todo o mundo. A compositora na lista dos maiores arrecadadores em direitos autorais no ano passado. A dupla com canções que, juntas, somam quase 279 milhões de visualizações. Porque a ascensão das mulheres em uma cena movida a testosterona diz respeito a comportamento, sociedade, economia, diversão, oportunidade, engajamento, quantidade de cliques. Mas, definitivamente, tem pouco a ver com música.

Eternos moleques
Entre idas e vindas, o Suicidal Tendencies está há 33 anos entortando pescoços e promovendo rodas de pogo mundo afora. Com World Gone Mad, a banda se mostra pronta para (de)formar o caráter de uma nova geração de moleques. O 12º disco – e primeiro com a atual formação, que conta com a bateria-britadeira de Dave Lombardo (ex-Slayer) – enfileira petardos com energia de adolescente. De “Clap Like Ozzy” a “The Struggle Is Real”, passando por “The New Degeneration” e “Damage Control”, metal e hardcore unem forças para causar aquela saudável sensação de atropelamento. Diz o vocalista Mike Muir, único remanescente desde o início, que este pode ser o último trabalho. Se for mesmo, o grupo despede-se por cima.




 ANÇAMENTOS



Canto Cego, Valente – Uma das revelações do underground carioca, após três anos em gestação finalmente a estreia do quarteto em disco vem à tona. A pressão rock aliada aos versos da poeta e vocalista Roberta Dittz ditam canções como “Nuvem Negra” e “A Fúria”, enquanto o pop fala mais alto com “Sublime”.



Local Natives, Sunlit Youth – Os californianos chegam ao terceiro disco com críticas favoráveis ao seu indie pop. O que os distingue do enxame de bandas que militam na mesma esfera são as melodias: mesmo com a luminosidade de um pôr-do-sol, exalam uma melancolia que combina mais com final de noite, como em “Dark Days” e “Villainy”.



(coluna publicada hoje no Diário Catarinense)

20160927

Revolução sem causa

Com lançamento oficial previsto para o próximo dia 7, o disco novo do Green Day já vazou nos melhores sites do ramo. Revolution Radio foi precedido por três singles – “Bang Bang”, a faixa-título e “Still Breathing” – que oscilam do punk pop de arena ao rock de FM que fez a fortuna da banda a partir de American Idiot (2004). Mesmo assim, os integrantes do trio ainda são vistos e cobrados como certos jogadores de futebol: têm filhos, ganham um dinheirão, fazem suas presepadas e beleza. Afinal, “não passam de meninos”. Para o bem e para o mal, o apelo da juventude os acompanha desde que estouraram com Dookie, há 22 anos.



Naquela época, em plena aurora grunge, o grupo fez a festa da geração MTV com um punhado de hinos descerebrados movidos a guitarras estridentes, refrãos chicletudos e profundidade que uma formiga seria capaz de atravessar com água pelos joelhos (obrigado, Nelson Rodrigues). Os fãs cresceram, a emissora musical minguou e o Green Day renovou seu público-alvo caindo nas graças dos emos. Até, em mais um reposicionamento (involuntário?), virar uma das “vozes da América” na primeira década deste século com letras que acusavam a apatia da molecada. É nessa condição de grande banda de rock do seu tempo que Billy Joe e asseclas assinam o 12º trabalho.



A revolução radiofônica insinuada pelos californianos começa condizente com seu status. Se não em qualidade, pelo menos em potência “Somwhere Now” impressiona, com um sonzão que os Foo Fighters se orgulhariam. O vigor prossegue em “Bouncing Off the Wall”, “Too Dumb to Die”, “Youngblood” ou “Say Goodbye”, amostras da arte de se mover no limite entre o sucesso comercial e alguma credibilidade de rua. O risco, no caso, é não conseguir nem uma coisa nem outra. Mas no mínimo a primeira parte está garantida.

Sertão lisérgico
Na década de 1970, uma alegre & colorida rapaziada agitou a música, o teatro, o cinema e a poesia de Recife. Era o movimento Udigrudi (corruptela de underground), composto por adoráveis malucos como Alceu Valença, Geraldo Azevedo, Flaviola e o Bando do Sol, Ave Sangria, Zé Ramalho e Lula Côrtes – os dois últimos, autores do maior clássico do encontro entre a psicodelia e o agreste nordestino, o disco Paêbiru. Essa gente toda é homenageada por bandas cujos integrantes poderiam ser seus filhos na compilação No Abismo da Alma, que reúne 19 representantes da nova cena lisérgica nacional. Embarque nessa viagem só de ida para o sertão surreal com nomes como Bike, Meneio, Graxa, Supercordas ou Bratislava baixando sua cópia aqui.




 ANÇAMENTOS



Madeleine Peyroux, Secular Hymns – Quem assistiu ao show da canadense em Florianópolis em 2015 sabe que um piano e um baixão acústico bastam para derreter corações. No oitavo álbum, a cantora traz versões intimistas do universo do jazz, blues e até do reggae, mas é na releitura de “Everything I Do Gonh Be Funky” (do mestre do groove Allen Toussaint) que ela se supera.



Blubell, Confissões de Camarim – Bonita, cool e dona de um repertório eclético, é um mistério como Isabel Garcia ainda não foi descoberta por um público maior. Sempre na dela, a paulista chega ao quinto disco mandando beijinho no ombro das inimigas com o skazinho carinhoso de “Vida em Vermelho” ou a brejeirice de “Bolero do Bem”.



(coluna publicada hoje no Diário Catarinense)

20160920

Trilha faz justiça na TV

A trilha sonora de Justiça tem chamado tanto a atenção quanto a realidade crua & cruel retratada nas quatro tramas que se entrelaçam. A série exibida pela RBS TV entra na semana derradeira com pelo menos outra proeza como legado, ao lado do corpinho de Leandra Leal: revelar ao público da emissora artistas até então semidesconhecidos fora do nicho ao qual estão associados. De repente, aquela sua prima pagodeira convertida pelo trip hop do Massive Attack em Verdades Secretas descobriu como é capaz de se comover quando ouve o queridinho indie Rufus Wainwright entoar “Hallelujah”.



Não muito tempo atrás, a definição das músicas que embalavam os folhetins televisivos seguia um padrão. Gravadoras ofereciam músicas, interessadas na exposição diária no horário nobre. Temas eram compostas especialmente para este ou aquele personagem. A canção ia parar no disco oficial, lançado pela gravadora ligada à emissora. A internet bagunçou esse modelo. O consumidor não precisa comprar um CD inteiro atrás da única faixa que gostou. E, com um catálogo quase infinito à disposição nos serviços de streaming, diretores, roteiristas, produtores e atores podem dar suas sugestões para a trilha.

Cauã Raymond, por exemplo, construiu Maurício na onda do jazz revolucionário de Miles Davis (“Bitches Brew”) e da melancolia do alternativo Citizen Cope (“Sideways”). A Vânia de Drica Moraes já cantou “O que Será”, de Chico Buarque, que aparece ainda em “Pedaço de Mim”, com Zizi Possi. Os nordestinos Elba Ramalho (“Risoflora”), Fagner (“Revelação”), Geraldo Azevedo (“Dona da Minha Cabeça”) e Johnny Hooker (com uma versão brega cool de “Pense em Mim”) dão cor local às histórias, ambientadas em Recife. Sobra até para Los Hermanos, que emplacaram a bonita “Último Romance”. Não é nada, não é nada, é do que vamos lembrar depois do último capítulo, na sexta. Além de Kellen só de lingerie, lógico.

Causa e efeito
A britânica de origem cingalesa MIA despontou para o mundo em 2005, agregando o pancadão do funk carioca aos ritmos da globalização. Quatro discos depois, o pop eletrônico e étnico da cantora volta a bombar com Aim. Os bailões do Rio são coisa do passado perto da exploração que ela faz de estilos mais identificados com suas raízes no Sul asiático. Menos pretensiosa, ela bota o povo para chacoalhar com as nervosas “Borders”, “Go Off”, “Swords” ou “Visa”. A política continua um elemento vital em sua obra, mas parece que o ensinamento da anarquista lituana Emma Goldman (1869-1940) foi aprendido na marra: “Se eu não puder dançar, não é a minha revolução”.




 ANÇAMENTOS



Marcapágina, Sexto Grau – Uma das promessas do pop rock de Florianópolis, o quarteto empacota mais cinco músicas neste segundo EP. Maturidade e identidade à parte, o que sobressai é o cuidado com que o grupo trabalha cada elemento de sua música, evidente em “Lei dos Três Segundos”, “Elas” e “Motivos de um Fim”.



Real Rio – Na esteira dos Jogos Olímpicos, o selo inglês de música brasileira Mais Um Discos encomendou a Chico Dub uma compilação dos novos sons da cena carioca. O produtor não se fez de rogado e, em 30 faixas, teceu um panorama que vai das loucuras neotropicalistas de Ava Rocha à psicodelia do Supercordas. O Rio continua lindo.



(coluna publicada hoje no Diário Catarinense)

20160913

Dez anos depois, o que foi feito de nós

No lugar do ringue, um palco. Em vez de combates que acabavam quando alguém dissesse “pare” ou perdesse os sentidos, shows de 40 minutos que terminavam aos gritos de “mais um” e com a sensação de noite ganha. Tyler Durden nem sonhava, mas Florianópolis também teve o seu Clube da Luta. Era uma espécie de cooperativa surgida em 2006 que organizava, bancava e promovia shows de bandas locais. Enquanto a estranha confraria do filme homônimo mantinha sigilo sobre sua existência, na versão manezinha a principal regra ressaltava o caráter autoral dos desafiantes: “Você não faz músicas que não são suas”.



Os “combates” ocorriam duas vezes por mês, sempre com dois ou três grupos, para cerca de 200 pessoas geralmente em uma casa sob a cabeceira insular da ponte Hercílio Luz. Não demorou para o movimento se consolidar como uma alternativa viável para artistas que preferiam se mexer a reclamar da falta de apoio – e para gente interessada em conhecê-los por sua música, não para “dar uma forcinha”. A impressão era de, finalmente, a cidade comportava uma cena de verdade, com talento suficiente para seus representantes competirem em outras praças do país e ninguém esperar por um novo Dazaranha.

Foi nessa expectativa que o Clube da Luta comemorou o primeiro aniversário com apresentações de dez associados: Maltines, Coletivo Operante, Luciano Bilu, Aerocirco, Os Berbigão, Tijuquera, Rufus, Gubas & Os Possíveis Budas, Andrey e a Baba do Dragão de Komodo, Ilha de Nós, Kratera e Samambaia Sound Club. Passados dez anos, mudaram formações, nomes e pretensões. Mas ficaram os registros fotográficos de Cassiano Ferraz [no impresso saiu Fagundes, o Cassim que toca com Barbaria – tremenda babada pela qual só resta pedir desculpa]. Até 16 de outubro, o Museu da Imagem e do Som (MIS) lembra aquele breve período em que foi possível acreditar que Florianópolis deixaria de ser um ponto de interrogação no mapa musical brasileiro.

Oceano de emoções
Mais do que pelos hits escritos para Justin Bieber e John Legend, Frank Ocean tornou-se conhecido por ser o primeiro rapper a ter coragem de se assumir como homossexual em um estilo dominado por machos-alfa e biatches. Para o bem de si próprio, porém, sua carreira não depende das preferências afetivas e vem sendo construída por discos acima da média. O último deles chama-se Blond, lançado quase que simultaneamente ao álbum visual Endless. É uma coleção de canções contemplativas entre o rap e o R&B, em que a força dos beats abre es­paço para a delicadeza das melodias. Se você não se co­mover com “Pink + White”, talvez esteja precisando de um cardio­lo­gista.




 ANÇAMENTOS



Aíla, Em cada Verso um Contra-Ataque – Mais uma revelação que o Pará esfrega na nossa cara, a cantora faz de seu segundo disco uma profissão de fé no poder feminino. A causa é embalada por um pop que agrega MPB, ritmos regionais e modernidades, resultando em um caldo que entretém e conscientiza com libelos como “Lesbigay” ou “Será”. Baixe-o gratuitamente aqui.



Faith No More, We Care a Lot – Lançada em 1985, a estreia da banda já continha os elementos do funk metal que conquistaria o mundo (sobretudo o Brasil) nos anos 1990. Além da disposição do então vocalista Chuck Mosely, esta reedição traz demos, remixes e faixas ao vivo. Pena que o sucesso posterior deixou tudo muito datado.



(coluna publicada hoje no Diário Catarinense)

20160906

Muito orgulho, muito amor

Independência isso, independência aquilo, mas independente mesmo é o Infrasound Fuzztival. Como o nome denuncia, trata-se de um minifestival que ocorre hoje a partir das 19h no Taliesyn Rock Bar, em Florianópolis. A escalação é encabeçada pelo Muñoz Duo, que está lançando o disco Smokestack. A nova manifestação do rock chapado dos mineiros serve de pretexto para uma rapaziada nervosa promover “a noite mais brutal da Terra” no acanhado palco do local: Red Mess, Pantanum, Cattarse, Ruí­nas de Sade e Katss. Apelo comercial, zero. Mesmo assim, tudo é feito na raça, sem promessas vazias para cativar adeptos.



Amanhã, é a vez da banda Boogarins se apresentar – em Sevilha. A perna ibérica da turnê dos goianos pela Europa começou no dia 1º, na portuguesa Coimbra. Na Espanha, tocarão também em Madri, Barcelona, Oviedo e Santiago de Compostela. Antes de cruzar o oceano, haviam mostrado a psicodelia caipira de seu Manual ou Guia Livre de Dissolução de Sonhos pelos Estados Unidos. Cantando em português um gênero dominado pelos gringos, o grupo está conquistando o que muita estrelinha venderia a alma ao diabo para obter. A proeza torna-se mais legítima quando se sabe que não há esquemas por trás, apenas receptividade natural.



As pretensões de Sammliz são mais modestas. Longe dos comparsas da banda em que defendeu os vocais por 11 anos – a metálica Madame Saatan –, a cantora paraense revela uma insuspeita versatilidade na estreia solo, Mamba. Há espaço para pós-punk, eletrônica e até alguma brasilidade, representada pelo arremedo de brega oitentista em “Quando o Amanhã Chegar”. Para viabilizar o trabalho, ela inscreveu-se no edital de uma marca de cosméticos e, como vários outros concorrentes, seguiu as regras. Simples e transparente, sem subterfúgio que a beneficiasse. Viva a música brasileira!



Alma intacta
Bancado por US$ 600 mil arrecadados via financiamento coletivo, And the Anonymous Nobody marca a volta do De La Soul após 12 anos. A novidade é que neste disco o trio de rappers nova-iorquino reaparece escorado por uma banda “convencional”, e não pelos samples e colagens típicos do gênero. A pegada, porém, continua entre o experimental e o old school, com uma lista de participações estelares. E vem dos convidados os melhores momentos, como a infalível “Pain”, com Snoop Dogg, e a alternativa “Here in After”, com Damon Albarn.




 ANÇAMENTOS



Baleia, Atlas – O sexteto carioca vem com um conceito ousado, reunindo disco e livro de 32 páginas assinado por Lisa Akerman. O abstracionismo das ilustrações traduz o caráter da música, afinada com as modernidades e de digestão que requer mais de uma audição. “Hiato” ou “Estrangeiro” estimulam a insistência.



Stars Ah Shine – Coletânea com as produções do jamaicano Tapper Zukie para a Star Records entre 1976 e 1988. Sim, reggae do prensado, ideal para aqueles momentos em que a atitude mais coerente é abandonar o pensamento cartesiano. Feche os olhos e deixe a alma passear levada pelos aromas de “Bosra” (Prince Alla) e “Morgan the Pirate” (The Mighty Diamonds).



(coluna publicada hoje no Diário Catarinense)