20230321

Contos da Cripto: À meia-noite levarei suas economias



Era uma vez um jogador de futebol inteligente. Tanto que resolvia cubos mágicos e lia livros com bastante letras, dois desafios dos quais os colegas de profissão fugiam como o diabo da cruz. E ainda começou a andar de skate, o danado! Precavido (outro atributo que o diferenciava de seus pares), preocupava-se com o futuro. Afinal, carreira de boleiro acaba cedo; é importante fazer o pé-de-meia enquanto o corpo e os reflexos funcionam na mesma velocidade do raciocínio.

Ele já tinha visto craques que ganharam fortunas terminarem como motoristas de aplicativo acreditando serem empreendedores e de jeito nenhum queria esse destino para si. Certa noite, logo depois de uma renhida partida contra uma equipe do interior, vencida com um gol nos acréscimos, tocou no assunto com o atacante do seu time. O companheiro então lhe disse para ficar tranquilo, que iria lhe apresentar um parça que sabia tudo de investimentos.

Não havia por que desconfiar da dica. Durante a conversa no vestiário, ambos estavam naquela situação em que é impossível contar vantagem: nus. Além do mais, conforme o amigo, o tal “mentor financeiro” ganhava a vida como coach, autor de livros de autoajuda e pastor. Ou seja, uma pessoa acima de qualquer suspeita, pensou o jogador inteligente. Bendita hora em que ele resolveu se abrir com um chegado sobre uma questão tão delicada!

Marcaram de se encontrar na saída do culto que o parça e o atacante frequentavam. A primeira impressão foi excelente. O cara não só entendia do mercado como pontuava cada frase com “Deus”, “família” ou “liberdade”. A promessa de lucro era tamanha que, de cliente, o artilheiro tinha virado sócio. Ele já ouvira falar daquela aplicação, mas não imaginava que pudesse render tanto: até 666% ao ano, de acordo com o especialista.

O lastro da empresa em pedras de alexandrita no Acre era o que faltava para o jogador inteligente se convencer e também lhe entregar suas economias. Agora era esperar e faturar. Em pouco tempo seu capital seria superior ao PIB de um país do leste europeu, calculou. Passados os seis meses de carência para a primeira retirada, os milhões de reais investidos renderam algo em torno de 0,5% do total. Deve ter ocorrido algum engano, acreditou.

Reclamou para o amigão. O amigão lhe aconselhou a orar. Cobrou o pastor. O pastor o chamou de chato. Jurou que jamais cairia em um golpe daquele novamente. Da próxima vez, depositaria seu dinheiro em uma instituição sólida, que opera às claras, sob regras e garantias fiscalizadas por órgãos reguladores. Como fez seu sobrinho, um moleque startupeiro que estava enriquecendo com fundos administrados por um banco do Vale do Silício.

***
Já comprei bitcoin. Não pelo papo de “moeda descentralizada”, “sem intermediação de instituições financeiras” ou “independente de governos”, entre outros pretextos pseudo-ideológicos. O que me atraiu foi a geração de riqueza a partir de uma abstração. Ganhei um trocadinho e caí fora antes que a corretora falisse. Continuo tentando encontrar alguma forma de “fazer meu dinheiro trabalhar por mim”. O que me atrapalha é que sou burro demais para armar um esquema de pirâmide e picareta de menos para criar um banco. Estou pensando seriamente em lançar NFTs desta newsletter.

PS: Claro que você entendeu a referência do título desta edição, mas quem ficou boiando saiba que é uma alusão aos Contos da Cripta, famosa série de terror baseada na história de quadrinhos homônima e exibida nos anos 1990 no Brasil.

PS do PS: É sempre constrangedor ter que explicar uma (suposta) piada.

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Baixo astral



Senti de verdade a morte de Canisso. Acho que consigo escrever uma biografia dos Raimundos de cabeça, de tanto que entrevistei a banda. Chegamos na mesma época a São Paulo, cada um com seus sonhos. Ele já era casado e pai, o que fazia com que tivesse um pouco mais de responsabilidade que os demais integrantes do grupo – sempre conservando aquele ar de molecão.

Quando Rodolfo encontrou Jesus e largou o grupo, Canisso percebeu que os Raimundos tinham acabado. Saiu também e depois voltou, era como sustentava a prole. Bacana ver um monte de depoimentos lembrando que, mesmo continuando a tocar com um guitarrista reaça, o baixista nunca foi um deles. Pelo contrário: não perdia a oportunidade de reafirmar sua posição.

Mas o que menos o agradaria na sua despedida seria ficar falando de política. Faço o registro apenas para ressaltar que, de maluco, conheci somente o seu lado bom. Como milhares de fãs de todas as gerações, de alguma forma também descobri que a vida era boa com suas músicas. E que podia ser ainda mais divertida toda vez que a gente se encontrava.

PLAYLIST | quando o coração teimar que sim



Tudo que eu quero em tudo é simples.

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20230314

Oito mulheres que fazem com que todo dia seja delas



Nada como uma efeméride para resolver o problema da falta de tempo, saco & criatividade que acomete o estilista com uma frequência preocupante. Hoje mesmo me sentei diante desta tela em branco disposto a excretar um tratado que abalasse a masculinidade tóxica – e falhei miseravelmente, por uma série de razões decorrentes dos privilégios a mim concedidos. É o preço a pagar por fazer parte da população economicamente ativa.

Estava quase inventando um álibi para procrastinar sem culpa quando recebi um spam de uma clínica de estética com uma promoção exclusiva para as mulheres no dia delas. Já é: vou vasculhar no meu baú de décadas dedicadas ao jornalismo-arte, com certeza tem algo sobre a data. Achei! Sem mais delongas, fique com esta listinha publicada em 2016 em um extinto jornal catarinense com oito artistas que:

Pela postura.

Pelo rumo que deram às carreiras.

Pelas consequências de suas escolhas.

Desafiaram um meio dominado por homens e fizeram a sociedade patriarcal, machista e misógina se dobrar ao seu talento.

Billie Holiday | Negra e pobre, comeu o pão que o diabo amassou: foi violentada aos 10 anos, aos 12 fazia faxina em um prostíbulo e aos 15 caiu na prostituição em Nova York. Seu jeito sofrido e sensual de cantar jazz a livrou das ruas, mas nem o sucesso apaziguou seu espírito. Morreu em 1959 de cirrose hepática, reflexo do vício em álcool e drogas.

Nina Simone | Já era uma cantora consagrada de jazz quando abraçou o movimento negro na década de 1960, defendendo a luta armada para garantir igualdade de direitos nos EUA. De temperamento complicado, acentuado pela medicação para o transtorno bipolar, nunca levou desaforo para casa – mesmo que isso prejudicasse sua carreira.

Rita Lee | Formou com os irmãos Dias Baptista a mais incrível banda brasileira, os Mutantes. Quando o grupo perdeu a graça, pegou sua espontaneidade e foi ser feliz em outras companhias. Primeiro com a banda Tutti-Frutti, depois com o marido Roberto de Carvalho, protagonizou alguns dos momentos mais inspirados do rock e do pop nacional.

Patti Smith | Poeta, cantora, compositora, ativista. Depois de vagar pelos subterrâneos artísticos nova-iorquinos, estreou em disco em 1975 com uma fusão de rock, punk (que nem existia direito ainda) e poesia. Os versos que canta na música “Gloria”, de Van Morrison, sintetizam sua trajetória: “Jesus morreu pelos pecados de alguém, mas não pelos meus”.

Debbie Harry | De 1978 até meados dos anos 1980, ninguém foi mais sexy e identificada com a sua época. Loira, linda e empoderada, a ex-coelhinha da Playboy liderou a banda new wave Blondie, estendendo sua influência para a moda e o comportamento. Eles a cobiçavam, elas queriam imitá-la – e muitas também a desejavam.

Chrissie Hynde | Poderia estar nessa lista exclusivamente pelos méritos musicais à frente dos Pretenders, grupo inglês que emplacou hits na década de 1980. No entanto, entra aqui por ser autora da frase que, em poucas palavras, expressa a diferença entre pop e rock e dispensa tradução: “Pop is about saying ‘fuck me’. Rock is about saying ‘fuck you’”.

Madonna | A material girl talvez já se desse por satisfeita se a música apenas a tirasse do anonimato. Com o tempo, porém, soube estabelecer uma via de mão dupla com o sucesso, absorvendo novas tendências e lançando tantas outras. Tornou-se rainha do pop e, em 30 anos, já viu muitas ameaçarem seu trono. Nenhuma, porém, capaz de tirar sua coroa.

Lauryn Hill | Muitas rappers vieram antes, como Queen Latifah e Lil’ Kim. A proeza da ex-Fugees foi, graças à falta de educação de seu disco solo, ter se tornado a mulher com mais indicações ao Grammy, em 1999 – das 11, levou cinco, entre os quais melhor álbum e melhor cantora. E, mais importante do que prêmios: abriu o mercado para outras colegas.

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Cenas do Novo Brasil

Quis o destino, esse moleque, que eu fosse novamente em um sábado ao supermercado preferido da casta local. Entrei e me encaminhei direto para a confeitaria nos fundos da loja, na expectativa de me deleitar com uma elite que pode até morrer de diabete, mas não abre mão de se estapear por doces pela metade do preço. Para minha frustração, estava todo mundo civilizado na frente do balcão.

Percebendo meu estupor, a sempre solícita atendente esclareceu: acabaram com a promoção. E mais não disse nem lhe foi perguntado. Eu que não ia tentar descobrir o porquê da decisão nem quando foi tomada. Como na ocasião anterior, saí sem comprar nada (não tinha Coca Zero!), acreditando que bastou o novo presidente assumir para aquela gentalha pelo menos fingir que tem bons modos.

PLAYLIST | livre, ser feliz e amar



Vacilei, devia fazer uma só com mulheres. Espero que a inclusão de um homem feminino (por acaso também o autor do verso que batiza esta seleta) limpe minha barra.

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20230307

Da pista nada se leva além de lembranças



Pois é, eu também não me lembrava mais do Warung até vê-lo reduzido a cinzas na quarta-feira homônima. Pior: eu não sabia nem que ele ainda existia. Tudo bem que nunca fui parâmetro para medir sua fama, pois só estive lá uma vez, a trabalho. Houve um tempo, porém, em que quase todo catarinense o conhecia, nem que fosse apenas de nome. Foi mais ou menos de 2007 a 2017, quando toda semana algum DJ número-1-do-mundo se apresentava por aqui.

Nesse período, passaram pelo estado Carl Cox, Fatboy Slim, David Guetta, Tiësto, Paul van Dyk, Infected Mushroom, Dimitri Vegas & Like Mike e Hardwell, para citar apenas alguns dos estrangeiros mais incensados nas listas gringas de melhores em seus segmentos. Se for para acrescentar brasileiros a esse line-up, não fica ninguém de fora. Nenhum rótulo musical trouxe tantos artistas no auge para cá como a eletrônica – graças ao Warung e similares. De Florianópolis a Itajaí, a fritação não tinha fim.

Inaugurada em 2002, a casa itajaiense de frente para o mar na praia Brava tornou-se um dos marcos de um circuito que incluía superclubes, festivais, agências, live acts e até uma revista especializada – todos premiados nacional e/ou internacionalmente. Estrutura profissional, grandes atrações e público interessado faziam de Santa Catarina um polo de música eletrônica. Não acompanho para dizer como está hoje, mas desconfio que o movimento já foi bem mais forte por estes lados.

A sensação que tenho é de que a eletrônica saiu do gueto, cumpriu todas as etapas da popularidade e voltou para a sua tendinha. Primeiro, era a novidade, o moderno. Daí cresceu tanto que começaram a existir “rave sertaneja”, “rave gótica” e demais variações alheias à essência que sedimentou o termo, enquanto as raves originais ganharam o status de megaeventos. Depois, virou som de mané que bota o volume no talo para a praia inteira ouvir. Por fim, diluiu-se como qualquer outro estilo.

Por que deveria ser diferente? Não é o que acontece com todo tipo de música que faz sucesso? Que fim levou Robin? Techno, house, trance e outras vertentes continuam sendo produzidas e consumidas, embora sem o impacto comportamental e comercial que um dia (ou uma noite) tiveram e beleza, ninguém que gosta de derreter na pista vai se importar com isso. A mesma massificação que tirou a eletrônica do nicho a descartou pela batida seguinte – é do jogo.

A bola agora está com o funk. Que, ora veja, é música tão eletrônica quanto a que colocou Santa Catarina na rota dos maiores DJs e incendeia qualquer ambiente com o fogo que pode manter a cena local de pé. Não estou querendo insinuar nada.

[Faixa-bônus]

As poucas informações acima foram extraídas de uma reportagem que escrevi em 2015 para o Diário Catarinense. A matéria trazia ainda uma relação de cinco discos de música eletrônica para quem não gosta (só) de música eletrônica que cometo o descaramento de reproduzir abaixo:

Kraftwerk, The Man Machine (1978) – Como aquela banda de Liverpool que revolucionou o pop, os quatro rapazes de Düsseldorf levaram a música eletrônica a um novo patamar. Graças a esses alemães, o som feito somente à base de máquinas se desenvolveu a ponto de disputar mercado com artistas que usavam instrumentos “de verdade”. Este disco nem é um divisor de águas na carreira do grupo (a primazia cabe a Autobahn, de 1974), mas traz algumas de suas músicas mais emblemáticas, como “The Robots” e “The Model”.

New Order, Power, Corruption and Lies (1983) – Foi em seu segundo álbum que a banda inglesa deu adeus à sonoridade de sua encarnação anterior – o soturno Joy Division – e caiu de boca nos sintetizadores e baterias eletrônicas com que se consagraria nos anos seguintes. Aqui surge a matriz do techno, aquele ritmo bate-estaca presente em “586” e no clássico “Blue Monday” (lançada em single e depois incluída como faixa-bônus na edição do disco para os Estados Unidos). A influência do Kraftwerk também se faz notar em “Your Silent Face”.

The Chemical Brothers, Dig Your Own Hole (1997) – Se na estreia (Exit Planet Dust, em 1995) Tom Rowlands e Ed Simmons logo foram taxados como “os eletrônicos que todo roqueiro deveria ouvir”, no lançamento posterior a dupla atacou por um caminho diverso. Não, eles não se tornaram “roqueiros que todo eletrônico deveria escutar”, apenas rechearam seus beats com características do pop, como refrãos e (alguns) vocais. Prova disso é a lisérgica “Setting Sun”, calcada na beatle “Tomorrow Never Knows” e com Noel Gallagher (do Oasis) no microfone.

Fatboy Slim, You’ve Come a Long Way Baby (1998) – Antes de virar arroz-de-festa, Norman Cook esbanjou conhecimento musical para transformar electro e acid house em algo palatável às massas. Tem surf music (a estourada “Rockafeller Skank”), tem soul (a climática “Praise You”), tem lenha descendo forte no cabeção (a nervosa “Acid 8000”). Como descreveu uma revista gringa, botar essa belezinha para rolar é tipo ver TV: você vai zapeando até encontrar um programa interessante. Com a grande diferença que não irá querer trocar de canal.

Moby, Play (1999) – Em seu quinto disco, o americano uniu o blues e o gospel das décadas de 1940 e 1950 a bem sacadas batidas eletrônicas. O resultado alcançou o topo das paradas em diversos países, conquistou tudo quanto é prêmio e enriqueceu seu autor por meio do licenciamento de músicas para a publicidade. Play foi simplesmente o primeiro disco da história a ter todas as faixas (18!) veiculadas em propagandas. Fica difícil não comprar um produto anunciado com “Natural Blues”, “Bodyrock”, “Porcelain” ou “Find My Baby”.

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APARELHO | Pela volta da música lenta



O bacana deste programa é que rodamos para tudo quanto é lado como biruta de aeroporto até achar um ponto onde nos sentimos mais confortáveis para desfilar nossa já conhecida falta de foco. Da estranha coincidência entre o fim do Carnaval e Twin Peaks, ficamos girando até convergir na importância das canções para se dançar agarradinho como estopim para romances eternos ou apenas umbigadas circunstanciais. Teve mais assunto, lógico, mas tudo se resumiu a uma denúncia inadiável: decorridos dois meses do novo Brasil, ninguém falou ainda na retomada do horário de verão.

PLAYLIST | basta ter coragem e se libertar



Viver, amar.

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