20220924

Quando uma ideia basta



Tinha Guns n’ Roses em São José. Tinha Jorge Ben, Planet Hemp, Emicida, Criolo e mais um monte de artistas no Eco Festival em Canasvieiras. Mas o maior nome do final de semana na Grande Florianópolis se apresentou de graça e cheio de graça ao meio-dia de domingo no centro da cidade: Lula, sempre ele. Seu show foi do tamanho da energia que emanava de cada canto da praça Tancredo Neves lotada.

O caminho para o local já indicava uma movimentação atípica. As ruas próximas, tradicionalmente desertas nas manhãs dominicais, estavam tomadas de pessoas trajadas de cidadania. O vermelho intenso do pau-brasil que batizou o país tingia camisetas, bonés e faixas em que predominavam a estrela com a inscrição “meu voto é secreto”, apenas a cara de Lula desenhada ou algum programa social criado no governo dele.

As filas serpenteavam pelo Tribunal de Contas até a frente do Instituto Estadual de Educação, na Mauro Ramos. A revista obrigatória para ultrapassar as grades de contenção que cercavam a praça tornava o escoamento ainda mais devagar. Naquele ritmo, o último só ia conseguir entrar às vésperas de um hipotético segundo turno. Então surgiu um rumor de que os portões haviam sido liberados e eu fui no fluxo.

Quando vi, estava no meio da multidão que se afunilava diante de um corredor gradeado. “Sem garrafas, nem de plástico!”, gritava um segurança. “Homens à esquerda, mulheres à direita”, organizava outro, alheio à frequência não-binária. Depois de ser apalpado pelos homens-de-preto, enfim pisei na arena onde foi montado o palco para Lula – que, como todo headliner, fecharia o evento.

Das muitas atrações que o antecederam, ninguém me tocou como Manuela D’Ávila. Ela falou dos riscos de ser progressista na região mais alinhada com o projeto do atraso, da exclusão, da violência. Dos últimos quatro anos impedidos de vestir nossas cores, defender nossas causas, empunhar nossas bandeiras. Chega de medo, eles que devem temer. Porque nossa vitória nunca esteve tão perto.

A companheira Janja puxou o coro para acompanhar o clipe com a nova versão do jingle histórico exibido no telão. Foi a deixa para Lula pegar o microfone e soltar a voz rouca que o público tanto esperava. O homem é um fenômeno: por mais que seu discurso seja previsível, é impossível não querer se convencer por ele – das conquistas de seus mandatos à garantia de um futuro solidário, próspero e gentil.

Enquanto Lula encantava, eu pensava no quanto o que ele simboliza é mais forte do que qualquer coisa que diga. “Lula é uma ideia” – e não tem como discordar. Quem experimentou sabe. Parecia que nada nem ninguém impediria nosso destino de brilhar. Vivia-se em uma dimensão tão distante do pesadelo atual que inclusive os brutos se fingiam civilizados, porque eram os códigos vigentes.

Ao mesmo tempo, fiquei viajando na “cultura do conforto” que Lula representa para mim. Como uma música, um livro ou um filme que me são familiares, suas palavras me transportam para uma época mais simples, da qual eu já conhecia o final e sempre acabava bem. Além do nada desprezível detalhe de que eu era 20 anos mais jovem e me cegava com uma felicidade que hoje somente olho de soslaio, desconfiado.

Meu presidente se despediu renovando a esperança de todos em dias melhores. À medida que me dispersava com a massa, ainda me lembrei de um artigo em que o filósofo Slavoj Zizek aborda o conceito da psicanálise de Lacan que prega que a verdade tem a estrutura de uma ficção. Em resumo, “a realidade é para aqueles que não podem suportar o sonho”. Lula me faz acreditar que posso.

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PLAYLIST | só pense no amanhã



Louco para desmentir o verso de Sergio Sampaio que diz “não há nada mais sozinho do que ser inteligente”.

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20220923

A casta só tem mais dinheiro



No anoitecer de sábado fui parar em um supermercado na área considerada nobre do centro de Florianópolis. Não é um estabelecimento que a classe social à qual pertenço permite que eu vá com frequência. O que me levou até lá foi a tentativa desesperada de aplacar com alguma guloseima a fome da carne que me é negada. Se não conseguisse nada para mimar o corpo, pensei, eu poderia alimentar a mente nutrindo o bichinho de estimação que substituiu o rancor depois que amadureci: o recalque.

O lugar é uma delícia. Em suas prateleiras resplandecem iguarias, fiambres, molhos, conservas, temperos e uma infinidade de produtos importados que não se encontra em nenhum outro concorrente local. É também um perigo. Um queijo francês aqui, um chocolate suíço ali, um pinot noir para acompanhar, e o cliente sai com uma sacolinha quase do valor do salário do caixa que registra as compras. Todos ficam felizes. Um, pela sua condição. Outro, pelo emprego.

Eu vagava pelos corredores cobiçando itens mais caros que uma cesta básica quando uma agitação nos fundos da loja interrompeu meu devaneio platônico-gastronômico. Era um ruidoso grupo de umas 30 pessoas, a maioria senhoras, postado em frente à confeitaria. Fingi que estava interessado em uma baguete semi-italiana na padaria ao lado e perguntei à atendente o porquê do aglomero. “Esse movimento aí é por causa da promoção”, respondeu ela.

A garota explicou que o preço de todos os doces do balcão caía pela metade meia hora antes de o supermercado fechar. “É que não abrimos aos domingos, daí perdem a validade”, completou. Deixa eu ver se entendi direito: aquele monte de representantes da burguesia estava esperando um tempão para pagar menos por bolos, torteletes, donuts, carolinas, folhados, rocamboles, queijadinhas e quejandos? Ah, de jeito nenhum que eu vou deixar de testemunhar isso!

Não me arrependi. Foi um espetáculo digno de uma ópera-bufa. Vovós que deviam ter mais carimbos no passaporte que eu na carteira de trabalho se empurrando, se acotovelando como a plebe nas liquidações dos atacarejos. Algumas não se continham e, com a fineza típica da elite floriputa, fiscalizavam os pedidos de quem havia chegado primeiro na fila. “Essa vai tirar a barriga da miséria!” “Ei, deixa um pouco para os outros!” “Tomara que sobre daquele que o Júnior adora.”

Maravilhado com o comportamento peculiar da freguesia, me mandei de mãos vazias e com a autoestima transbordando.

Aquela casta vive arrotando meritocracia, mas só tem o mérito de ser bem-nascida. Visita mais países que eu, mas não conhece nem a cidade onde mora como eu. Come em restaurantes estrelados, mas jamais experimentou os sabores que já provei. Não precisa fazer contas no final do mês, mas não conquistou o que conquistei. Dirige carrões, mas não lê livros tão bons ou ouve tantas músicas lindas quanto eu. Acumulou bens para envelhecer sem preocupações, mas eu amo e gozo mais.

Uma gentalha que não é nem nunca será melhor que eu. A única coisa que tem mais do que eu é dinheiro. E dinheiro eu ganho.

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PLAYLIST | você me mostrou o quanto o mundo é belo



Então eu embaraço os seus cabelos e você não me pede para parar.

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20220922

Ouça o cara que nasceu da flor



Respeito o Acaso como uma entidade e acolho seus desígnios com o fascínio de uma criança esperando o que o mágico vai tirar da cartola. Mas descobrir que Os The Darma Lóvers estão produzindo um documentário para marcar 25 anos de carreira me pegou de jeito. A notícia aparece logo no momento em que, mais uma vez, busco nas suas canções alento para desmanchar o rígido, serenidade para desfazer críticas e leveza para continuar sendo dissolvido pelo rio que transforma.

Tudo é miragem
Esse é um rito
De sonho e de passagem
A música da dupla que Nenung e Irinia formaram em 1998 me acompanha desde que ouvi o cara que nasceu da flor. No final de 2000, saiu o homônimo disco de estreia, tão simples quanto a capa que lhe rendeu a alcunha de “branquinho”: voz e violão com sininho aqui, pianinho ali, a irradiar aromas folk e mensagens diretas. Para um tipo bem estranho de bicho como eu, que simpatizava com budismo apesar de não ter nada de zen, foi conversão imediata.

Em março de 2001, caiu do céu uma viagem de São Paulo a Porto Alegre para cobrir a gravação do disco ao vivo da Tribo de Jah no bar Opinião. Era a oportunidade que eu precisava. Após cumprir meu dever com o reggae, decorei as Quatro Nobres Verdades, vesti uma camiseta com o ideograma do Om bordado e me mandei para Três Coroas. No topo de um dos morros que cercam a cidade a 90 quilômetros da capital gaúcha, repousava o Chagdud Gonpa Khadro Ling – o lar dos Darma Lóvers.

Caminhões com material de construção não paravam de subir a estrada de terra rumo ao primeiro templo budista no Brasil erguido nos moldes tradicionais tibetanos. Pedreiros se ocupavam com oito blocos de concreto em frente ao prédio principal. Nenung me explicou que eram as stupas, representações das qualidades da mente iluminada e dos feitos extraordinários do Buda histórico, Sidarta Gautama. Forradas de cobre e bronze, elas comportavam relíquias e textos sacros.
O tempo é um professor sem pressa, mas é exigente
E chega a hora de tornar o agir
Ficar mais claro, forte, mais inteligente
Mais adiante, enormes cilindros de ferro exigiram que o músico me desse outra aula. Com paciência milenar, ele disse que se chamavam rodas de oração e guardavam milhares de mantras (combinação de sons que simbolizam e comunicam a natureza de uma deidade e que conduzem à purificação e à realização) escritos e abençoados. Giradas em sentido horário, correspondem à recitação de todas as preces ali contidas. Eu nem tinha entrado no templo e já me sentia pronto para atingir o nirvana.

Lá dentro, pinturas em padrão tibetano decoravam as paredes e o teto. Ao fundo, havia estantes com os livros sagrados e centenas de taças com água sobre uma bancada que tomava toda a largura do recinto. Fiéis munidos de sadhanas (guias de meditação) sentavam em posição de lótus em colchonetes espalhados pelo chão para louvar Tara, a bodhisattva (alguém que desenvolveu bodhicitta, a aspiração de alcançar a iluminação em benefício de todos os seres) feminina da compaixão.

O casal morava em um chalé anexo ao mosteiro e seguia uma rotina de puja (prática conjunta de meditação) às 6h, café da manhã às 7h30, trabalho até 19h e mais puja para fechar o dia. Nenung recepcionava, Irinia ajudava na administração e cozinhava para o lama Rinpoche, nascido em 1930 no Tibete e reconhecido como a 16ª reencarnação do abade do monastério de Chagdug, naquele país. Com a ocupação chinesa em 1959, ele se exilou, rodou pelos EUA e se fixou em Três Coroas em 1995.
Não vou mais me repetir
Nem que eu quisesse isso
Outro dia e eu aqui
Novo, vasto e infinito
Foi Rinpoche quem rebatizou Irinia de Yang Zan (“melodiosa”, em tibetano) e Nenung de Pema Gyalpo (“rei do lótus”). Ué, Nenung já não era um nome oriental? “Não, vem de Pedro Verdum, jogador do Internacional na década de 1980. Minha turma começou a tirar sarro, Marcelo virou Marcelum; Marco, Marcum. Como sou Luís Fernando e meu apelido era Neno, virei Nenum”, elucidou o colorado. Aí, bastou trocar o “m” por “ng” para ficar com jeitão de algo do outro lado do mundo.

Deixei os Darma Lóvers se dedicarem à última puja do dia e fui embora com um mala (espécie de rosário budista) no pescoço e um monte de energia positiva no coração. Voltei a falar com Nenung por telefone em 2002, no lançamento do segundo álbum, Básico. Ele me contou que estava se preparando para o “desdobramento natural” de seu “projeto musical-existencial”: o isolamento em um retiro de três anos, três meses e três dias, com término previsto para 7 de setembro de 2005.

Reencontrei-os no extinto bar Drakkar, em Florianópolis, no show com base no disco Laranjas do Céu, de 2004. Não me lembro se foi naquele ano mesmo – o que significaria que Nenung abortou o período de clausura – ou no seguinte, só do CD autografado me desejando muita luz que guardo até hoje. Desfrutei de Simplesmente (2009) e Espaço! (2013), os trabalhos posteriores, mais como fã do que como “profissional da imprensa musical”. Nunca mais tive contato com eles.
Não vou mais ficar esperando ver se fico ou vou-me embora
Vou partir sem medo ao centro
Do que há dentro daqui de onde estou
Rinpoche desencarnou em 2002. O mantra de Tara – Om Tare Tam Soha – virou a tela do meu celular. Não sei se os Darma Lóvers permanecem na ativa, se se reúnem apenas em ocasiões especiais, se sua parceria ainda é conjugal ou somente artístico-espiritual. Mas é à música deles que eu sempre recorro quando me esqueço que não sou nada feito para durar neste mundo imenso que carrego em mim. Abraço a incerteza enquanto a vida quiser.

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PLAYLIST | sempre fica alguma coisa



Os filósofos não dizem nada que eu não possa dizer de onde vem essa vontade.

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20220921

Atendemos todos os convênios



Hoje estou determinado a escrever nada com nada. Sinto que serei bem-sucedido: mal cheguei à segunda frase e já estou enrolando. Poderia destravar isso expondo minha vertiginosa gangorra emocional, se interessasse a mais alguém além de mim. [Suspiro.] Mas, ei, posso falar da vida de outras pessoas – mais especificamente, da de mulheres com quem, sem planejar e muito menos esperar, consegui estabelecer uma relação quase telepática, pela qual agradeço todos os dias. Beijo, chicas!

Com elas, eu me desarmo e me mostro por inteiro, com meus defeitos, minhas fraquezas e meus medos, totalmente diferente da autoimagem que cultivo para consumo externo. Elas me dão colinho e passam a mão na minha cabeça e me falam o que, saído de outras bocas, me deixaria muito machucado porque são coisas que eu não gostaria de ouvir. Dito por elas, porém, ajuda a desconstruir o machinho estrutural que nunca reconheci que sou. Não conheço terapia melhor.

E elas também se abrem comigo. Sobre seus rompantes, seus desejos, suas frustrações. Não que eu tenha algo a ensiná-las, longe disso. Acho que veem em mim um cara com uma certa, er, experiência, embora eu seja um mero aprendiz nas artimanhas do coração. Talvez seja por isso mesmo: elas me ouvem para saber o que não devem fazer. Exceto um ou outro acerto involuntário, mais por coincidência do que pela minha suposta expertise, o contrário do que lhes digo é o que tem que ser feito.

Dia desses uma delas me procurou para falar do namorado. Reclamou que ele parecia reagir com indiferença aos planos que ela imaginava para os dois. Sugeri que, às vezes, a indiferença masculina é orgânica, um comportamento que a gente nem percebe que fere de tão instintivo que se apresenta. Insisti para ela conversar com ele a respeito, para que se o rompimento fosse inevitável não ficasse com a impressão de que uma palavra, um gesto, um afago mudaria o desfecho.

Outra me chamou para contar que estava saindo com um bonitão casado e queria minha opinião. Lembrei das aulas de geometria e lhe recomendei a identificar se esse triângulo era equilátero, isósceles ou escaleno. Ela boiou. Expliquei que, antes de tudo, ela tinha que descobrir o tamanho das vértices: se as três eram iguais, se duas eram iguais e uma diferente ou se todas eram diferentes. Ela me mandou um coraçãozinho e uma cara chorando de rir.

A primeira levou um papo reto com o namorado, ele saiu correndo e voltou no dia seguinte implorando para ela perdoar sua imaturidade.

A segunda dispensou o bonitão casado, encontrou outro (ignoro seu estado civil) e está apaixonadíssima.

As duas me garantiram que eu já estaria rico se começasse a cobrar pela consultoria sentimental.

O que estou precisando dinheiro nenhum compra, migas.

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PLAYLIST | quem sabe eu vá me encontrar por aí



Edição curtinha, com o tempo de leitura equivalente à duração padrão dos sucessos curtidos pela geração que não tem paciência (ou coragem) nem acredita em nada para sempre.

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20220920

Sempre acredite nos seus sonhos



Por motivos que não vêm ao caso, ando sonhador. Como me comprometi comigo mesmo, anoto o que sonhei tão logo acordo para não o esquecer antes de sair de cama. Semana passada, umas 6h, escuro ainda, arregalei os olhos. Eu havia sonhado com meu compadre rindo comigo. O detalhe é que ele não tinha as duas pernas e se divertia com as próteses. Fiquei bem impressionado mesmo.

Meu padrinho de crisma – a “confirmação do batismo”, sacramento natural para um adolescente criado sob os tradicionais preceitos da família católica – gostava de interpretar as cenas que lhe assaltavam enquanto dormia. Chegava ao requinte de dar uma cochiladinha pós-almoço em busca de inspiração para apostar no jogo do bicho das 4h da tarde. Se perdia ou se ganhava, o importante é que ele sonhava.

Em Chuva de Estrelas – O Sonho Iniciático no Sufismo e Taoísmo, o historiador Peter Lamborn Wilson (procure saber) apresenta a experiência onírica como um instrumento de elevação espiritual que transcende as duas doutrinas orientais do subtítulo. Tem no Corão, no I Ching, em manuais do antigo Egito, em escritos mediúnicos da América Central, no xamanismo e nos primórdios do cristianismo.

Nos apêndices, o autor ensina macetes para decifrar a, na definição do Aurélio, “sequência de fenômenos psíquicos (imagens, representações, atos, ideias etc) que involuntariamente ocorrem durante o sono”. São orações práticas e exercícios que conduzem a revelações inalcançáveis para os infiéis. Não testei nenhuma, vai que funcionem. A última coisa que quero é saber o que vai (me) acontecer.

Depois de muito ruminar, tomei coragem para o óbvio: pesquisar na grande rede mundial de computadores se Morfeu estava tentando me dizer algo. Teclei “sonhar com amputação em outra pessoa”, surgiu “aflições imprevistas”. Digitei “sonhar com perna cortada de outra pessoa”, apareceu “você está tentando fugir dos problemas em vez de enfrentá-los”. Bati “sonhar com pessoas mortas e mutiladas”, veio “reflexão sobre o futuro”.

Foi aí que entendi por que a gente sempre deve acreditar nos nossos sonhos.

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Lista negra



A bibliografia sobre o movimento black brasileiro ainda é pequena, mas está crescendo. O mais novo integrante dessa turma da pesada é Dançando na Mira da Ditadura, disponível para download gratuito & legal. O livro do historiador Lucas Pedretti mostra – com documentos – a perseguição do aparelho repressivo do governo militar aos bailões no Rio de Janeiro nos anos 1970. Para os agentes do funesto Departamento de Ordem Política e Social (Dops), a cor da pele e o jeito que os frequentadores se divertiam era um sinal inequívoco de subversão. Naquele tempo, a alegria de viver já era ofensiva para esse pessoal ressentido.

***

(Em 2017, outra obra similar me fez escrever o seguinte para o Diário Catarinense:)

Bem-vindo ao Brasil da década de 1970. Um país onde reina a igualdade, desde que sua pele seja da cor adequada. Impera a liberdade, desde que não ameace a soberania nacional. Abunda a fraternidade, desde que você saiba o seu lugar. Foi nesse contexto de instituições em pleno funcionamento que dos subúrbios cariocas emergiu uma cultura musical para dar voz, visibilidade e afirmação à juventude negra. A história é recuperada agora com passos coreografados, gírias e muito ritmo pelo livro 1976 – Movimento Black Rio, de Luiz Felipe de Lima Peixoto e Zé Octávio Sebadelhe.

Em 17 de julho daquele ano, uma reportagem assinada por Lena Frias no Jornal do Brasil descreveu a onda que bombava em mais de 300 bailes periferia adentro. Sem querer, o título da matéria acabou batizando o fenômeno, que já existia havia pelo menos cinco anos e até então não tinha nome nem se organizava como movimento: “Black Rio, o orgulho (importado) de ser negro no Brasil”. Em quatro páginas, a zona sul era apresentada a equipes de som e discotecários despejando funk e soul americanos para pistas lotadas por uma moçada guerreira e esperta.

Furacão 2000, Black Power e Cash Box disputavam o posto de donas da parafernália sonora mais potente. Mister Funky Santos, Ademir Lemos e Big Boy competiam para ver quem rolava os maiores sucessos do momento nas carrapetas. Gerson King Combo, Carlos Dafé e Banda Black Rio pediam passagem com trabalhos autorais. E, acima de tudo e de todos, pairava Tim Maia, representante-mor do groove gringo adaptado para a realidade local. De repente, a MPB descobria que “negro é lindo” e absorvia as influências. O cidadão de bem ligava a televisão e se deparava com um balanço diferente na trilha da novela.

Em uma época de ânimos acirrados e polaridade latente, a exposição dos brothers na mídia incomodava geral. A direita temia pela radicalização da luta contra o racismo. A esquerda reagia contra o que considerava um desprezo ao samba como legítima música dos despossuídos. O futuro próximo desmoralizaria ambos os lados. O movimento não morreria; iria se dispersar por diversos estilos. Um deles seria o funk carioca que pariu Anitta, hoje invadindo as paradas dos Estados Unidos. Não deixa de ser uma justiça poética para um movimento acusado de somente copiar o que vinha de fora.

PLAYLIST | quanto mais simples, melhor



Vez em quando o mundo é pouco, quase nada para o que vem a seguir.

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20220919

Choque de gerações na sala de estar



Adoro quando meus pais vão visitar o tio Emerson. A casa dele tem disco em tudo quanto é lugar, até na cozinha. Minha mãe me disse que a maioria ele ganhou porque era jornalista de uma revista de música. Deve ser por isso que ele é tão revoltado: não existem mais jornalistas nem revistas. Música é claro que ainda existe, mas ninguém usa mais disco.

O meu tio, depois de juntar aquele monte de CDs, se recusou a comprar tudo de novo em vinil só porque virou modinha. Em acessos de fúria que já fazem parte do folclore da família, ele prometeu que vai se matar assim que o seu tocador de CDs estragar, pois o moço da loja já avisou que não fabricam mais a pecinha que sempre quebra. Não entendo por que ele teria que comprar tudo de novo, hoje a gente só ouve música pelo celular.

Mesmo sendo meio esquisitão, eu gosto dele. E acho que ele também gosta de mim, porque além de ser sua sobrinha, sou a única pessoa que presta atenção nas suas histórias. Ele estava até me ensinando a escrever, para eu parar de tirar notas baixas em redação no colégio. Disse para eu começar colocando uma ideia por frase. Estou tentando seguir a dica dele, não sei se funciona.

Na última vez em que a gente foi na casa do tio Emerson, ele jurou para mim que é mentira que ganhou todos os discos que tem. Muitos foram conseguidos em trocas e alguns ele até comprou. Sorte que minha mãe avisou que quando meu tio começa com esses surtos, a gente deve falar de música do tempo dele que ele amansa. Daí eu me lembrei de Stranger Things e do Batman.

Toda contente, comentei com ele que tinha conhecido Kate Bush e Metallica na série e Nirvana no filme. Nem são muito o tipo de som que eu curto, citei mais para agradar ele. O tio Emerson reagiu com um suspiro e foi na estante onde guarda os discos. Parou na frente de uma prateleira com uma etiqueta escrita “M-P”, pegou uns CDs e voltou na minha direção.

Ao se aproximar de mim, deu outro suspiro. Com o olhar fixo no meu, ele apontou para um disco com uns raios azuis na capa que trazia na mão e me contou que tinha a minha idade quando ouviu aquilo pela primeira vez. Do outro, com um bebê embaixo d’água, garantiu que nada se comparava ao impacto que teve no lançamento, trocentos anos atrás. “Depois deles eu nunca mais fui o mesmo”, confessou.

Então colocou os dois para tocar. À medida que ia me mostrando as músicas, o tio Emerson chegava a fechar os olhos e cantava baixinho, como se estivesse em transe. O dos raios eu ri da força que o vocalista fazia para berrar. O do bebê não tinha uma música inteira legal, só partes que duravam bem pouco. Não dei um pio sobre isso para ele, não queria que ele ficasse decepcionado comigo.

Para disfarçar, perguntei se ele não tinha nenhum disco da mulher com a voz superaguda. O tio Emerson baixou a cabeça e começou a soluçar. Eu ia comentar que o professor de história sugeriu que a nossa turma assistisse a um doc de um tal de Beatles, mas achei melhor deixar ele sozinho. Antes de ir embora, ainda ouvi ele resmungando um papo maluco de “online” e “offline”, como se houvesse diferença entre uma coisa e outra.

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Areia nas expectativas



Comecei a ver Sandman louco para reviver o frisson que sentia com os quadrinhos. Cansei de comprar gibis dele na primeira metade dos anos 1990. Mais tarde, enriqueci minha biblioteca com edições bacanas, capa dura, papel couché e tal. As viagens do personagem de Neil Gaiman sempre me levaram para lugares e estados que eu nem desconfiava que existissem – até saudei a Morte aqui.

Na TV, não resisti nem 15 minutos. O que impresso era fantástico e desafiador, em movimento me desceu como uma versão adultescente da saga Crepúsculo. Li por aí que tem que perseverar, que com o desenrolar dos episódios a história faz jus aos mistérios que encantaram minha geração. Espero ter saco para tentar de novo. Por enquanto, só consegui dormir no sofá.

E sem sonhar com nada.

Velhos, mas ainda cheiram bem

Ode às playlists – Texto bonitinho sobre a evolução do hábito de compilar músicas para algo ou alguém. Das fitas K-7 para o CD-R até o compartilhamento de links, uma “sutil curadoria” que sobrevive à obsolescência programada de corações & mídias.

Reféns da audiência – Como influenciadores, na ânsia por atenção & aceitação, acabam se transformando no que o público espera deles. No processo, as personas reais e virtuais se confundem tanto que restam apenas caricaturas grotescas de si mesmos.

PLAYLIST | onde está o botão de desligar



Acho que vou derreter com você.

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20220918

Nossa vitória não será por acidente



Está tudo tão virado do avesso, tudo sendo considerado tão normal por mais atípico que seja, que fica difícil resistir à vontade de ligar aquele botão com nome feio. Mas não reclamo. Há sempre uma razão para encarar com otimismo os percalços que o carma espalha pelo caminho. Nem que seja para continuar do único jeito concebível de ser: do contra.

Em maio fui cobrir um festival de música em Natal e conheci atrações que mal apareciam nos guias turísticos. No bairro da Ribeira, na parte antiga da capital potiguar, a organização montou dois palcos com o rio Potengi ao fundo e cercou a rua Chile, anexando bares, restaurantes e o casario. Para entrar naquele pedaço (público) da cidade e ver os shows de mais de 20 artistas, só pagando ingresso.

O que eu sequer desconfiava é que o valor desembolsado – não por mim, um deformador de opinião credenciado como tal – dava acesso também a uma TAZ, sigla em inglês para Zona Autônoma Temporária. O conceito foi criado por Hakim Bey, supostamente um poeta de algum lugar do norte da Índia que fugiu para a Inglaterra e, quando a barra pesou, atravessou o Atlântico rumo a Nova York.

O livro dele traz exemplos de situações que, por ações ou alterações da percepção, desafiam a caretice oficial, a opressão institucionalizada e o livre arbítrio mentiroso patrocinado pelo Estado. Pelas suas páginas desfilam desde piratas que fundaram na costa da África comunidades muito mais tolerantes do que os reinos da Europa feudal até as raves que levam jovens a celebrar um hedonismo com hora para acabar.

De acordo com Bey, não é necessário arregimentar um grupo, tramar uma revolução ou ter ideais muito sólidos para experimentar essa sensação na plenitude. A partir do momento em que o medo, o temor, o pânico diante do que pode acontecer perde importância e tudo o que se pensa é “fodam-se as leis e todas as regras, eu não me agrego a nenhuma delas”, uma TAZ está pronta para nascer.

Foi nesse clima que o Planet Hemp fechou a primeira noite do festival. O vocalista Marcelo D2 pulava no palco e a massa pogava no chão, às vezes de costas para ele, trocando a idolatria bovina pela plena assimilação da mensagem. O auge veio com “Stab”, cheia de significados difusos insinuados pelos versos “esperem sentados a rendição, nossa vitória não será por acidente”.

Ato reflexo, jovens, coroas, brancos, negros, pardos, ninfetas, putas, militantes, alienados, nerds, malacos, pobres, remediados e um bebum em uma cadeira de rodas soltaram, cada um a seu modo, uma torrente de sentimentos represados pela acomodação quase invisível que faz a gente murchar. A banda ainda promoveria mais meia hora de contestação e dedo na cara. Para mim, estava suficiente.

Olhei para o meu amigo de infância, que saiu da catarinense Laguna para passar férias em Natal e nunca mais voltou, casou com uma nativa, comprou um bugue e uma casa na Ponta Negra e vive de frila de publicidade, e não precisei falar nada. Naquele instante, tanto eu quanto ele tivemos a nítida certeza de que o nosso candidato seria eleito. Aquela Zona foi Autônoma, mas não haveria de ser Temporária.

***

Desencavei o texto acima, publicado em 2002, porque ando ansioso tentando encontrar algum sinal que me dê o mesmo alívio. Pode ser uma declaração, um gesto, qualquer banalidade. Será que já rolou e eu nem me toquei? Será que em outubro, ao olhar em retrospecto, vou identificá-lo e rir de como fui tolo em não sacar? Será que desta vez vai ter todo um processo, não um marco definidor? Aceito sugestões, por favor.

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Uma nova raça saindo dos prédios para as praças



Cruzo com meu Amigo Ativista no centro. Ele está na correria: a democracia tem pressa, os boletos também. Durante os poucos minutos que parou para conversar comigo, defendeu o que chamou de “romantismo de resultados”, cuspiu meia dúzia de impropérios contra o genocida e me pediu para não baixar a guarda porque a luta ainda não acabou. Antes de se despedir, vaticinou: “Em 2023, seremos todos filhos de Anitta e Mano Brown”.

PLAYLIST | as palavras correm pelos pensamentos



As imagens que ilustram esta edição fazem parte do projeto Minimal Republics, do artista fotográfico Rubén Martín de Lucas. A proposta é demarcar um pedaço de terra de 100 metros quadrados e habitá-lo por no máximo 24 horas, como se fosse um microestado efêmero – ou uma TAZ.

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20220917

Um retrato feito de canções



O bacana de desencaixotar livros é que sempre se acha algum título que dá vontade de explorar novamente. E ler, bem sabia Nelson Rodrigues, é a arte de reler. Como 31 Canções, de Nick Hornby. Lançado no Brasil em 2005, época em que o escritor inglês estava na moda, nem passou perto do frisson causado por Alta Fidelidade (1995). Apesar de listar músicas como em seu romance de estreia, a onda aqui é outra.

Não se trata de um livro de crítica musical ou de canções prediletas. Ou não só: partindo de uma relação de músicas importantes sob uma avaliação estritamente pessoal, o autor conta como, quando e por que cada uma o afetou. Funciona, desde que se aprecie o estilo dele – muito mais, aliás, do que as canções selecionadas. Tipo disco tributo.

Para um livro pop de um cara pop com temática pop, um formato pop: quadrado do tamanho de um compacto, o suporte clássico da ideia que Hornby tem de canção. Logo na “faixa” de abertura, “Your Love Is the Place Where I Come from”, tocada pelo Teenage Fanclub no lançamento da compilação de contos infantis que organizou para a escola do filho, ele avisa que esse será um dos poucos casos de música associada a algum evento.

“A única coisa que se pode presumir de pessoas que dizem que seu disco favorito faz lembrar da lua de mel na Córsega ou do chihuahua da família é que, na verdade, elas não gostam de música”, escreve. É mentira, tchu-tchu, é mentira. No fundo, tudo está ligado a um momento específico, por mais que o texto fique rodeando para chegar lá.

Amostra disso é a música que evoca sexo para Hornby, “Samba pa Ti”, de Santana. “Ela começa devagar, misteriosa e linda, depois fica mais urgente e então... Bem, então se desvanece”, recomenda. O fato de determinada canção ser considerada sexy não significa que você vá querê-la como trilha sonora do ato. “A maioria delas, na verdade, é substituta sexual em vez de acompanhamento sexual – música para gente que não está pegando ninguém”, constata.

Com “Thunder Road”, ele compara a sua trajetória com a de Bruce Springsteen. “Essa música sabe como me sinto e o que sou”, atesta. Hornby lembra de reouvi-la recentemente e a adorado do mesmo modo que quando a descobriu, dentro de um carro, em 1975. Em poucos meses, observa, o cantor deixou de ser visto como o futuro do rock’n’roll para encarnar o atraso “sem que nada de importante houvesse mudado, a não ser seu índice de popularidade”.

E assim segue o baile, colocando no papel tiradas com as quais em nem imaginava que concordava tanto. Foi inevitável me identificar com “nunca reajo a Mozart ou Haydn como música, e sim como algo que deixa a sala diferente por um tempo, como uma vela perfumada”. “Estou pronto para perdoar as porcarias porque as melhores canções são simplesmente lindas” me tornou mais condescendente.

Se eu fizesse o meu próprio 31 Canções sincerão, entrariam “Ebony and Ivory” (Paul McCartney e Stevie Wonder), “A Vida Não Presta” (Léo Jaime) e “Outra Vez” (Roberto Carlos). Todas, de alguma forma, marcaram situações que, voltando a Nelson Rodrigues, eu não confessaria nem ao médium depois de morto. Cavalheiro que sou, prefiro manter a discrição.

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Há dez anos ninguém dorme



(Nesta quarta, dia 3, começa a série de comemorações pelos dez anos do trio Skrotes. A programação inclui exposição, ensaios abertos, show, exibição de filme e sessões de descarrego em geral no CIC, em Florianópolis, até 25 de setembro. Fui um dos convidados a escrever sobre a efeméride. Saiu isso.)

A ideia de abrir a cabeça para tratar distúrbios mentais remonta a tempos imemoriais. Há referências a essa prática em pinturas rupestres da era neolítica, uns 7 mil anos atrás, e na Idade Média curandeiros não apenas receitavam a remoção de partes do crânio que estariam causando desequilíbrios psíquicos como asseguravam que os pedaços retirados funcionavam como amuletos contra o mau-olhado.

Nos estertores do século XV, o holandês Hieronymus Bosch pintou o que batizou de A Extração da Pedra da Loucura. O quadro mostra um pobre coitado sendo submetido a uma trepanação – a perfuração da caixa craniana por um trépano, instrumento cirúrgico parecido com uma furadeira. De lá para cá, a despeito da evolução da ciência, os apetrechos usados em casos semelhantes permaneceram os mesmos: uma broca e uma serra.

Até os Skrotes surgirem com uma abordagem completamente inovadora & revolucionária.

Com exceção da premissa básica – abrir a cabeça –, o trio florianopolitano investiu na direção inversa. Para começo de conversa, os instrumentos adotados foram baixo, teclado e bateria, ensaiando um tipo de procedimento invasivo que, sem a necessidade de cortes, anestesia e muito menos assepsia, causa efeitos extrassensoriais com duração perene e aleatória. É como instalar um caleidoscópio na massa cinzenta.

O grande achado da banda, porém, foi a mudança radical da finalidade do processo: em vez de extrair a loucura de alguém, a proposta era acentuá-la. Em dosagens diferentes, junto ou misturado, o grupo pôs-se a combinar erudição & psicodelia, rigor & improviso, minimalismo & saturação. Afinal, quem precisa de rótulo é remédio. Os resultados iniciais foram animadores. E hoje, passados dez anos de sua aplicação pioneira, ainda são.

Mas atenção: esse tratamento sempre estará em fase experimental.

PLAYLIST | a noite no maior astral



De tudo vai rolar.

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20220916

Salvo pelo dilema de Akundum



Ninguém conhecia mais música do que ele. Todas as formações, os discos, os clássicos, as histórias, as lendas: Maxwell contava-as de cor. Em tardes ociosas e inspiradas, era comum a molecada que se reunia na borracharia onde ele batia ponto ser premiada com seus relatos sobre a tumultuada entrada de Ozzy Osbourne no Black Sabbath ou a controversa morte de Paul McCartney.

Quando Maxwell soltava o ar, apontava para a caixa de som – na verdade, um alto-falante de Kombi estourado, pendurado entre um calendário com beldades seminuas e uma imagem da Santa Paulina – e mandava a introdução “vocês sabiam que…”, a gente já se preparava para ouvir um fato inédito, que poderia estabelecer a aceitação de determinado artista.

Por volta de 4h20 de uma terça-feira das mais marasmáticas, ele cumpriu o ritual, deu a deixa e começou a falar de Bob Marley. Disse que o então iniciante Robert nem se incomodou ao ver seu compacto de estreia, Judge Not, creditado a um tal de Bob “Morley” nas jukeboxes de Kingston. O produtor Leslie Kong ter soletrado seu nome errado era o de menos.

Primeiro porque era a sua música, à disposição por uma moedinha. E segundo porque a cabeça e o coração do futuro rei do reggae ainda estavam abalados pelos acontecimentos do final de semana. Algo que (“essa escapou até de Timothy White na biografia Queimando Tudo, a mais completa sobre Bob”, ressaltou Maxwell) seria definitivo para sua formação como músico e como homem.

No sábado anterior, Bob havia participado de um badalado concurso de novos talentos que premiaria o campeão com uma bolsa de estudos e uma vaga de servente no colégio mais tradicional da capital jamaicana. Com o salário, equivalente a 75% do mínimo local, o adolescente pobre da comunidade de Trenchtown pretendia juntar dólares para comprar uma guitarra menos pior.

O que Bob nem sequer desconfiava era que tinha um parente seu no corpo de jurados: Akundum, filho nunca reconhecido de seu avô, Omeriah. Por sua lealdade e senso de justiça, Akundum fora convidado não apenas para preencher a cota de nativos que habitavam a ilha antes da invasão dos ingleses, como para presidir o júri, composto por representantes de diversas etnias e classes do país.

A canção de Bob terminou a apuração empatada com a do concorrente Royce Gordon (que viria a ser primo de Rexton Gordon, nascido em 1966 e famoso mais de duas décadas depois com o nome artístico de Shabba Ranks), ambas com seis votos cada. Caberia a Akundum o voto de minerva. Cioso da responsabilidade, o experiente líder se aproximou do microfone, pigarreou e declarou:

“Sou Akundum, guerreiro das tribos de Nine Miles. Um dos finalistas é meu sobrinho Nesta [referia-se a Bob pelo sobrenome materno], pois sou irmão bastardo de sua mãe. Entre a ética e a justiça, vou botar minha reputação no fogo e me pautar pela coragem dos meus antepassados maroons, os escravos fugitivos que enfrentaram o colonizador no século 17. Vou votar no melhor. E o melhor se chama Bob Marley.”

É bem assim que me sinto agora, com receio de soar cabotino por dividir que este VEÍCULO ultrapassou a barreira de 200 assinantes – a maioria mulheres, o que merece uma comemoração à parte. A centena inaugural foi atingida na quarta edição, e eu torcia para chegar ao primeiro aniversário em setembro com o dobro disso. Agora só me resta agradecer e tentar manter a preferência. Que venham os 300!

Alheio ao quanto suas palavras calariam fundo na minha memória, Maxwell emendou mais uma passagem obscura da vida de Bob. De acordo com ele, o que matou o ídolo precocemente, aos 36 anos, foi a cola das sedas que usava para manufaturar seus cigarros artesanais. “Veneno puro”, explicou, levantando suspeitas sobre a veracidade do dilema de Akundum. Mas aí já era tarde demais para procurar outro assunto.

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Sucesso de público



Despachos do covil – Infiltrada na convenção partidária que oficializou a candidatura à reeleição do presidente danação, a intrépida Bia Abramo (com quem já tive o privilégio de trabalhar e aprender) mostra que a máscara não serve somente para se proteger do vírus. Conforme a ocasião, o artefato também é muito útil para esconder traços de “incontinência facial” – como a cara de nojo e desdém ante a manada.

Diagnóstico de amor – O exame que salva a vida de milhões de mulheres surgiu em 1928, mas só teve a eficácia reconhecida muito tempo depois. Tudo graças à esposa do cientista grego George Papanicolau, Mary. Para ajudá-lo a embasar suas pesquisas, ela topou se submeter a coletas diárias no colo do útero por 20 anos, até a comunidade científica começar a perceber a importância da descoberta do marido.

Anotações de leitura



De Os Coadjuvantes, de Clara Drummond:

Eu sou muito insegura para não ser superficial, preciso me agarrar a qualquer coisa material, que me sirva como ponto de referência, essa sou eu, esse é meu mundo, essas são as leis que guiam a mim e àqueles ao meu redor.
Não existe um desejo real de igualdade social na esfera da classe artística que estudou em escola construtivista de esquerda. Ninguém quer admitir que talvez não tenha talento suficiente para ocupar determinada posição de destaque.
Há poucas coisas mais feias que um bar quando as luzes se acendem depois que o último cliente é expulso.
De A Cama de Procusto, de Nassin Nicholas Taleb:
Você será civilizado no dia em que puder passar um longo período sem fazer nada, sem aprender, sem melhorar nada e sem sentir um pingo de culpa.
Quando usado com habilidade, um elogio será muito mais ofensivo do que qualquer outra forma de depreciação.
Quando as pessoas o chamam de inteligente, quase sempre é porque concordam com você. Caso contrário, chamam você de arrogante.

PLAYLIST | sem a fantasia que sai no jornal



Se o terrorismo poético aqui é assim, imagina na Jamaica.

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