20220922

Ouça o cara que nasceu da flor



Respeito o Acaso como uma entidade e acolho seus desígnios com o fascínio de uma criança esperando o que o mágico vai tirar da cartola. Mas descobrir que Os The Darma Lóvers estão produzindo um documentário para marcar 25 anos de carreira me pegou de jeito. A notícia aparece logo no momento em que, mais uma vez, busco nas suas canções alento para desmanchar o rígido, serenidade para desfazer críticas e leveza para continuar sendo dissolvido pelo rio que transforma.

Tudo é miragem
Esse é um rito
De sonho e de passagem
A música da dupla que Nenung e Irinia formaram em 1998 me acompanha desde que ouvi o cara que nasceu da flor. No final de 2000, saiu o homônimo disco de estreia, tão simples quanto a capa que lhe rendeu a alcunha de “branquinho”: voz e violão com sininho aqui, pianinho ali, a irradiar aromas folk e mensagens diretas. Para um tipo bem estranho de bicho como eu, que simpatizava com budismo apesar de não ter nada de zen, foi conversão imediata.

Em março de 2001, caiu do céu uma viagem de São Paulo a Porto Alegre para cobrir a gravação do disco ao vivo da Tribo de Jah no bar Opinião. Era a oportunidade que eu precisava. Após cumprir meu dever com o reggae, decorei as Quatro Nobres Verdades, vesti uma camiseta com o ideograma do Om bordado e me mandei para Três Coroas. No topo de um dos morros que cercam a cidade a 90 quilômetros da capital gaúcha, repousava o Chagdud Gonpa Khadro Ling – o lar dos Darma Lóvers.

Caminhões com material de construção não paravam de subir a estrada de terra rumo ao primeiro templo budista no Brasil erguido nos moldes tradicionais tibetanos. Pedreiros se ocupavam com oito blocos de concreto em frente ao prédio principal. Nenung me explicou que eram as stupas, representações das qualidades da mente iluminada e dos feitos extraordinários do Buda histórico, Sidarta Gautama. Forradas de cobre e bronze, elas comportavam relíquias e textos sacros.
O tempo é um professor sem pressa, mas é exigente
E chega a hora de tornar o agir
Ficar mais claro, forte, mais inteligente
Mais adiante, enormes cilindros de ferro exigiram que o músico me desse outra aula. Com paciência milenar, ele disse que se chamavam rodas de oração e guardavam milhares de mantras (combinação de sons que simbolizam e comunicam a natureza de uma deidade e que conduzem à purificação e à realização) escritos e abençoados. Giradas em sentido horário, correspondem à recitação de todas as preces ali contidas. Eu nem tinha entrado no templo e já me sentia pronto para atingir o nirvana.

Lá dentro, pinturas em padrão tibetano decoravam as paredes e o teto. Ao fundo, havia estantes com os livros sagrados e centenas de taças com água sobre uma bancada que tomava toda a largura do recinto. Fiéis munidos de sadhanas (guias de meditação) sentavam em posição de lótus em colchonetes espalhados pelo chão para louvar Tara, a bodhisattva (alguém que desenvolveu bodhicitta, a aspiração de alcançar a iluminação em benefício de todos os seres) feminina da compaixão.

O casal morava em um chalé anexo ao mosteiro e seguia uma rotina de puja (prática conjunta de meditação) às 6h, café da manhã às 7h30, trabalho até 19h e mais puja para fechar o dia. Nenung recepcionava, Irinia ajudava na administração e cozinhava para o lama Rinpoche, nascido em 1930 no Tibete e reconhecido como a 16ª reencarnação do abade do monastério de Chagdug, naquele país. Com a ocupação chinesa em 1959, ele se exilou, rodou pelos EUA e se fixou em Três Coroas em 1995.
Não vou mais me repetir
Nem que eu quisesse isso
Outro dia e eu aqui
Novo, vasto e infinito
Foi Rinpoche quem rebatizou Irinia de Yang Zan (“melodiosa”, em tibetano) e Nenung de Pema Gyalpo (“rei do lótus”). Ué, Nenung já não era um nome oriental? “Não, vem de Pedro Verdum, jogador do Internacional na década de 1980. Minha turma começou a tirar sarro, Marcelo virou Marcelum; Marco, Marcum. Como sou Luís Fernando e meu apelido era Neno, virei Nenum”, elucidou o colorado. Aí, bastou trocar o “m” por “ng” para ficar com jeitão de algo do outro lado do mundo.

Deixei os Darma Lóvers se dedicarem à última puja do dia e fui embora com um mala (espécie de rosário budista) no pescoço e um monte de energia positiva no coração. Voltei a falar com Nenung por telefone em 2002, no lançamento do segundo álbum, Básico. Ele me contou que estava se preparando para o “desdobramento natural” de seu “projeto musical-existencial”: o isolamento em um retiro de três anos, três meses e três dias, com término previsto para 7 de setembro de 2005.

Reencontrei-os no extinto bar Drakkar, em Florianópolis, no show com base no disco Laranjas do Céu, de 2004. Não me lembro se foi naquele ano mesmo – o que significaria que Nenung abortou o período de clausura – ou no seguinte, só do CD autografado me desejando muita luz que guardo até hoje. Desfrutei de Simplesmente (2009) e Espaço! (2013), os trabalhos posteriores, mais como fã do que como “profissional da imprensa musical”. Nunca mais tive contato com eles.
Não vou mais ficar esperando ver se fico ou vou-me embora
Vou partir sem medo ao centro
Do que há dentro daqui de onde estou
Rinpoche desencarnou em 2002. O mantra de Tara – Om Tare Tam Soha – virou a tela do meu celular. Não sei se os Darma Lóvers permanecem na ativa, se se reúnem apenas em ocasiões especiais, se sua parceria ainda é conjugal ou somente artístico-espiritual. Mas é à música deles que eu sempre recorro quando me esqueço que não sou nada feito para durar neste mundo imenso que carrego em mim. Abraço a incerteza enquanto a vida quiser.

(Extraído da newsletter Extrato. Assine já e garanta o seu exemplar antecipado todas as terças!)

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