20220923

A casta só tem mais dinheiro



No anoitecer de sábado fui parar em um supermercado na área considerada nobre do centro de Florianópolis. Não é um estabelecimento que a classe social à qual pertenço permite que eu vá com frequência. O que me levou até lá foi a tentativa desesperada de aplacar com alguma guloseima a fome da carne que me é negada. Se não conseguisse nada para mimar o corpo, pensei, eu poderia alimentar a mente nutrindo o bichinho de estimação que substituiu o rancor depois que amadureci: o recalque.

O lugar é uma delícia. Em suas prateleiras resplandecem iguarias, fiambres, molhos, conservas, temperos e uma infinidade de produtos importados que não se encontra em nenhum outro concorrente local. É também um perigo. Um queijo francês aqui, um chocolate suíço ali, um pinot noir para acompanhar, e o cliente sai com uma sacolinha quase do valor do salário do caixa que registra as compras. Todos ficam felizes. Um, pela sua condição. Outro, pelo emprego.

Eu vagava pelos corredores cobiçando itens mais caros que uma cesta básica quando uma agitação nos fundos da loja interrompeu meu devaneio platônico-gastronômico. Era um ruidoso grupo de umas 30 pessoas, a maioria senhoras, postado em frente à confeitaria. Fingi que estava interessado em uma baguete semi-italiana na padaria ao lado e perguntei à atendente o porquê do aglomero. “Esse movimento aí é por causa da promoção”, respondeu ela.

A garota explicou que o preço de todos os doces do balcão caía pela metade meia hora antes de o supermercado fechar. “É que não abrimos aos domingos, daí perdem a validade”, completou. Deixa eu ver se entendi direito: aquele monte de representantes da burguesia estava esperando um tempão para pagar menos por bolos, torteletes, donuts, carolinas, folhados, rocamboles, queijadinhas e quejandos? Ah, de jeito nenhum que eu vou deixar de testemunhar isso!

Não me arrependi. Foi um espetáculo digno de uma ópera-bufa. Vovós que deviam ter mais carimbos no passaporte que eu na carteira de trabalho se empurrando, se acotovelando como a plebe nas liquidações dos atacarejos. Algumas não se continham e, com a fineza típica da elite floriputa, fiscalizavam os pedidos de quem havia chegado primeiro na fila. “Essa vai tirar a barriga da miséria!” “Ei, deixa um pouco para os outros!” “Tomara que sobre daquele que o Júnior adora.”

Maravilhado com o comportamento peculiar da freguesia, me mandei de mãos vazias e com a autoestima transbordando.

Aquela casta vive arrotando meritocracia, mas só tem o mérito de ser bem-nascida. Visita mais países que eu, mas não conhece nem a cidade onde mora como eu. Come em restaurantes estrelados, mas jamais experimentou os sabores que já provei. Não precisa fazer contas no final do mês, mas não conquistou o que conquistei. Dirige carrões, mas não lê livros tão bons ou ouve tantas músicas lindas quanto eu. Acumulou bens para envelhecer sem preocupações, mas eu amo e gozo mais.

Uma gentalha que não é nem nunca será melhor que eu. A única coisa que tem mais do que eu é dinheiro. E dinheiro eu ganho.

(Extraído da newsletter Extrato. Assine já e garanta o seu exemplar antecipado todas as terças!)

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