20220916

Salvo pelo dilema de Akundum



Ninguém conhecia mais música do que ele. Todas as formações, os discos, os clássicos, as histórias, as lendas: Maxwell contava-as de cor. Em tardes ociosas e inspiradas, era comum a molecada que se reunia na borracharia onde ele batia ponto ser premiada com seus relatos sobre a tumultuada entrada de Ozzy Osbourne no Black Sabbath ou a controversa morte de Paul McCartney.

Quando Maxwell soltava o ar, apontava para a caixa de som – na verdade, um alto-falante de Kombi estourado, pendurado entre um calendário com beldades seminuas e uma imagem da Santa Paulina – e mandava a introdução “vocês sabiam que…”, a gente já se preparava para ouvir um fato inédito, que poderia estabelecer a aceitação de determinado artista.

Por volta de 4h20 de uma terça-feira das mais marasmáticas, ele cumpriu o ritual, deu a deixa e começou a falar de Bob Marley. Disse que o então iniciante Robert nem se incomodou ao ver seu compacto de estreia, Judge Not, creditado a um tal de Bob “Morley” nas jukeboxes de Kingston. O produtor Leslie Kong ter soletrado seu nome errado era o de menos.

Primeiro porque era a sua música, à disposição por uma moedinha. E segundo porque a cabeça e o coração do futuro rei do reggae ainda estavam abalados pelos acontecimentos do final de semana. Algo que (“essa escapou até de Timothy White na biografia Queimando Tudo, a mais completa sobre Bob”, ressaltou Maxwell) seria definitivo para sua formação como músico e como homem.

No sábado anterior, Bob havia participado de um badalado concurso de novos talentos que premiaria o campeão com uma bolsa de estudos e uma vaga de servente no colégio mais tradicional da capital jamaicana. Com o salário, equivalente a 75% do mínimo local, o adolescente pobre da comunidade de Trenchtown pretendia juntar dólares para comprar uma guitarra menos pior.

O que Bob nem sequer desconfiava era que tinha um parente seu no corpo de jurados: Akundum, filho nunca reconhecido de seu avô, Omeriah. Por sua lealdade e senso de justiça, Akundum fora convidado não apenas para preencher a cota de nativos que habitavam a ilha antes da invasão dos ingleses, como para presidir o júri, composto por representantes de diversas etnias e classes do país.

A canção de Bob terminou a apuração empatada com a do concorrente Royce Gordon (que viria a ser primo de Rexton Gordon, nascido em 1966 e famoso mais de duas décadas depois com o nome artístico de Shabba Ranks), ambas com seis votos cada. Caberia a Akundum o voto de minerva. Cioso da responsabilidade, o experiente líder se aproximou do microfone, pigarreou e declarou:

“Sou Akundum, guerreiro das tribos de Nine Miles. Um dos finalistas é meu sobrinho Nesta [referia-se a Bob pelo sobrenome materno], pois sou irmão bastardo de sua mãe. Entre a ética e a justiça, vou botar minha reputação no fogo e me pautar pela coragem dos meus antepassados maroons, os escravos fugitivos que enfrentaram o colonizador no século 17. Vou votar no melhor. E o melhor se chama Bob Marley.”

É bem assim que me sinto agora, com receio de soar cabotino por dividir que este VEÍCULO ultrapassou a barreira de 200 assinantes – a maioria mulheres, o que merece uma comemoração à parte. A centena inaugural foi atingida na quarta edição, e eu torcia para chegar ao primeiro aniversário em setembro com o dobro disso. Agora só me resta agradecer e tentar manter a preferência. Que venham os 300!

Alheio ao quanto suas palavras calariam fundo na minha memória, Maxwell emendou mais uma passagem obscura da vida de Bob. De acordo com ele, o que matou o ídolo precocemente, aos 36 anos, foi a cola das sedas que usava para manufaturar seus cigarros artesanais. “Veneno puro”, explicou, levantando suspeitas sobre a veracidade do dilema de Akundum. Mas aí já era tarde demais para procurar outro assunto.

(Extraído da newsletter Extrato. Assine já e garanta o seu exemplar antecipado todas as terças!)

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