20211124

Um enigma chamado 4d3l3



A quarta temporada do reality show de Adele já está no ar com o disco 30. O drama de uma mulher madura, recém-divorciada e pronta para retomar a vida em canções sobre perda, aceitação e esperança já está sendo acompanhado por milhares de fãs. O que apenas mentes dotadas de aguçado raciocínio lógico percebem é que a emoção deslavada é regida por meticulosos critérios matemáticos.

A cantora lançou o álbum 19 aos 19 anos. O 21, aos 22. O 25, aos 27. E agora esse 30, aos 33. A explicação, conforme um estudo sobre a vida e obra da artista, é que a dezena que batiza cada álbum se refere à idade que ela tinha quando começou a trabalhar nele. Faz sentido, mas não decifra o enigma que desafia a numerologia pop: quantos anos Adele terá em seu próximo disco e como ele se irá se chamar?

A simplicidade do enunciado esconde um problema mais complexo do que o Último Teorema de Fermat. Os intervalos de tempo entre os lançamentos, 2 (21-19), 4 (25-21), 5 (27-25) e 6 (33-27), não ajudam muito. Por quaisquer padrões que se identifique, o quinto álbum de Adele dependeria de ela começá-lo hoje para que seu nome fosse 33, do contrário seria impossível cravar um palpite. Sem chance.

A solução exige engenharia reversa, qual seja, descobrir quanto tempo Adele dedicaria ao próximo disco. O indicador mais fidedigno para isso é subtrair os títulos da respectiva idade dela: 0 (19-19), 1 (22-21), 2 (27-25) e 3 (33-30). À primeira vista, a diferença entre o minuendo e o subtraendo forma uma sequência básica em ordem crescente. Portanto, o álbum seguinte seria concebido em quatro anos.

Resposta satisfatória, não estivesse se referindo a uma artista admirada pela sensibilidade. Assim como Deus não joga dados com o universo, Adele jamais brincaria com uma ciência exata para aplacar as dores do coração. Olhe de novo para a sequência. Desconsidere o zero, porque representa a estreia e, conforme ela já declarou ao lembrar da escalada para o estrelato, “tudo aconteceu muito rápido”. O que sobra são números primos.

Logo após o 3 na bela e misteriosa lista de números divisíveis somente por 1 e si próprios vem o 5. Significa que, não importa a idade que a cantora tiver, o sucessor de 30 levará cinco anos para ser concluído. O subsequente, sete. E assim por diante, em uma frequência que não obedece nenhum padrão rumo ao infinito – como o amor de Adele, compartilhado apenas consigo mesma e com a pessoa que o merecer. Monogamia é destino.

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Breaking news: um internauta maroto revelou uma insólita semelhança entre as capas dos quatro primeiros discos de Adele e Phil Collins. A comparação só não é perfeita porque os dele foram dispostos fora da ordem cronológica (4, 3, 1, 2) em relação aos dela (1, 2, 3, 4). Apesar desse detalhe, a simetria impressiona. Com base nela, é razoável supor que o próximo álbum da cantora poderá ter uma capa similar ao quinto do hitmaker. Quem viver, verá.



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Está mais que claro que, para Adele, nada é aleatório. Embora seja incalculável, sua contribuição para o pop “tem método”, insinuaria o terceiro zero da ninhada presidencial. Uma coisa, porém, é certa: Adele está tentando nos dizer algo.

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Quem apanha não esquece



Carlinhos Brown construiu uma bonita história para contar aos descendentes. Já estive no Candeal para entrevistá-lo e vi o que ele fez pela autoestima dos moradores da comunidade, em Salvador. O atual técnico do programa The Voice Brasil acaba de escrever mais um capítulo de sua lenda pessoal: declarou que as vaias e a chuva de garrafas e copos que recebeu da plateia no terceiro Rock In Rio, em 2001, foram motivadas também por racismo.

Eu estava lá naquele domingo, 14 de janeiro. Não joguei nada em ninguém, preferi me distrair com o Rumbora no palco secundário. Brown foi a segunda atração do dia, iniciado com o Pato Fu. Os mineiros amansaram as 180 mil pessoas que esperavam pelo Guns n’ Roses abrindo com “Capetão 66.6 FM” e gritos de “vamos detonar essa porra”. Na introdução de “Depois”, a vocalista Fernanda Takai disse que “essa é uma das músicas mais fofinhas do mundo e vamos tocá-la porque achamos que as pessoas deveriam ser mais fofinhas”.

Quando Brown subiu ao palco principal e pediu para os bombeiros pararem de jogar água na multidão que derretia sob um calor de 40 graus, a fofura se transformou em uma saraivada de objetos plásticos. O baiano reagiu. “Pode jogar o que quiser, que eu sou da paz e nada me agride”, “Vocês, que gostam de rock, têm muito o que aprender na vida, aprender a amar. E o dedinho pode enfiar no traseiro”, respondeu. Não me lembro se ele tocou o hit “Água Mineral”, muito apropriado para a ocasião.

Mais tarde, no camarim, o artista refletiu: “Rock’n’roll é coisa de criança. Entre rock e Xuxa, não há nenhuma diferença. Rock não é pesado. Pesado é uma escola de samba com 300 homens tocando.” Foi exatamente o que Axl Rose fez, chamando a bateria da Viradouro para encerrar uma noite que teve ainda Ira!, Ultraje a Rigor, Papa Roach e Oasis. A Brown, restou a distinção de entrar para o clube de artistas vaiados no festival, como Kid Abelha, Ney Matogrosso e Erasmo Carlos em 1995 e Lobão em 1991.

Ou melhor, o único negro vaiado. Na época, ninguém – nem ele – associou a hostilidade ao preconceito racial. Nem no ano passado, ao reavaliar o episódio. Pelo contrário. “No caso do Rock In Rio era necessário, porque eu também provoquei aquilo. Eu sou um provocador. Eu precisava provocar aquilo”, afirmou, tirando sarro dos roqueiros que o tornaram conhecido no mundo inteiro. Pelo visto, parece que Brown mudou de opinião. Tem todo o direito. Só ele sabe o que sentiu.

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À procura da rede social perfeita



A gente sempre pode contar com os algoritmos para zelar pela moral e pelos bons costumes. Os anúncios do lançamento da biografia Planet Hemp – Mantenha o Respeito foram vetados nas redes sociais por causa de “hemp” (cânhamo em inglês, um dos sinônimos da planta maldita). Para driblar a censura, o autor do livro, Pedro de Luna, lançou a campanha Legalize Meu Anúncio.

As peças substituem a palavra proibida por green, erva, mary jane, dois, 4:20 e outras expressões familiares ao universo herbífumo. A julgar pelo número de visualizações do vídeo, a ideia ainda não pegou. Se não der certo, fica a sugestão para que sejam usados termos homofóbicos, misóginos, racistas ou nazistas, daí nenhum bot careta vai encrencar. Em 2021, a maconha ainda escandaliza. É patético.

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PLAYLIST | tudo o que talvez não será



A volta do sol à Ilha de Santa Catarina me transportou para o verão do amor de 1989. De repente, estou no Suco da Arte, o point daquela temporada inesquecível na Laguna. A ruazinha perpendicular ao antigo calçadão do Mar Grosso se enchia de hormônios & aromas em frente ao bar, com suas paredes caiadas e a banda espremida em um canto.

Quem tocava guitarra e cantava era o próprio dono, um forasteiro com visual de Bel, do Chiclete com Banana. A mulher dele, uma loira gata, fazia os backing vocais. Um negrão skatista assumia a percussão e toda noite havia algum músico convidado. Seus nomes agora me fogem, mas serei sempre grato a eles.

Como surgiram foram embora, deixando um repertório que embalou algumas de minhas noites mais plenas. No verão seguinte, do Suco da Arte restavam apenas ruínas, anos depois suplantadas por um condomínio sem personalidade. O calçadão também acabou e minha saudade só resiste porque além de branco fiquei triste.

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20211117

Música fácil para um mundo difícil



Quase não falo de música aqui, mas as leitoras exigem. Querem saber se o Silk Sonic, projeto de Bruno Mars e Anderson Paak, é mesmo tudo isso que andam lendo por aí. Como sou um cara mellow, respondo sem medo de ser cancelado: sim. E, parafraseando o mordaz H. L. Mencken, digo mais: para um mundo difícil, existe sempre uma música fácil, elegante e completamente certa no disco de estreia da dupla, lançado nessa sexta. Espero não ter decepcionado ninguém.

An Evening with Silk Sonic é o que acontece quando dois estetas confirmam a expectativa criada pela junção de seus talentos. Popstar, o havaiano Mars aliou o sucesso comercial que já tinha e o respeito artístico que perseguia graças ao hit “Uptown Funk”, em 2014, evocando a black music da década de 1970. Muitíssimo menos famoso do que o colega, o californiano Paak construiu uma carreira entre o rap e o R&B, tão elogiada pela crítica quanto desconhecida pelas massas.

A parceria nasceu em 2017, na perna europeia da turnê 24K Magic, de Mars, aberta por Paak. Entre um show e outro, eles se enfiavam no estúdio. A experiência deu liga e um disco colaborativo era questão de tempo. A oportunidade pintou no início de 2020 e começou a escalar o topo das paradas no último mês de março, com o single “Leave the Door Open” – uma simpatia retrô que cura a rabugice, afasta a ziquizira e traz o amor de volta em quatro minutos.



Logo na sequência veio outra joinha com a alma no passado, “Skate”, que só pelo verso “você cheira melhor do que um churrasco” já valeria a menção, não tivesse também um balanço fino que desliza pela cintura. E nada do disco. Ainda rolou a manhosa “Smokin Out the Window”, até finalmente o Silk Sonic entregar o que as preliminares prometiam: uma noite (expressa no título do álbum) curta (meia horinha de duração) e mágica (deixa com vontade de pedir mais).

Quebrada a resistência, Mars e Paak se dedicam à manutenção do clima. O baixo ventre continua mexendo forte com “Fly With Me”. Há as inevitáveis e necessárias baladas “Blast Off” e “Put on a Smile”. “After Last Night” estabiliza o ritmo, com o baixista Bootsy Collins (ex-Parliament/Funkadelic, outro ícone revisitado) e um nome da geração atual, Thundercat. A única faixa que destoa – embora segure a onda – é “777”, emoldurada pelas rimas da metade rapper sobre uma base racha-assoalho.

Mais do que qualquer música específica, fica evidente o capricho em cada detalhe de An Evening with Silk Sonic. Para ter certeza de que as percussões usadas iriam soar como pretendiam, a dupla pesquisou em antigas revistas de bateria. Parte do disco foi gravada no mesmo Royal Studios de Memphis onde Al Green eternizou LPs clássicos. Cordas foram conduzidas e arranjadas por Larry Gold, da banda MFSB, estrela da Philly Internacional, a gravadora que sofisticou o funk.

Em pleno Culto do Amador, uma era marcada pela valorização algorítmica e consumo frenético de tanta música mal feita, Mars e Paak pegam a contramão para transcender a nostalgia onipresente no disco. Apesar da estética setentista, o mundo que idealizam é atemporal, um não lugar em que problemas e problematizações se dissipam em alienação e escapismo. Seja bem-vinda a essa vibração, ainda que apenas por um breve momento.

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Salvos pelo trocadilho



Deve ser frustrante para um artista gravar um disco com músicas inéditas e perceber que o público está interessado somente em seus velhos sucessos. O Abba não vai precisar lidar com essa situação constrangedora. O esfuziante quarteto sueco acaba de lançar Voyage, seu primeiro disco com material novo em 40 anos; portanto, desde que reinava nas pistas de dança com uma sonoridade avaliada como as propriedades nutricionais do ovo ou do café: ora é considerada sinônimo de brega, ora é o suprassumo do cool.

Quis o destino que em 2021 a balança pendesse para o lado favorável. Os mesmos argumentos que eram usados para ridicularizar a banda agora são brandidos para justificar sua volta. Reconhecer sua importância histórica não me impede de achar o álbum uma versão piorada da lesma lerda de sempre. Parece que Agnetha, Bjorn, Benny e Anni-Frid estão bem cientes disso também. Tanto que não vão nem se dignar a aparecer nos shows para ouvir o público pedindo “Dancing Queen”.

Em vez disso, serão representados por abbatars.

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Woodstock fica logo ali



Já está disponível para fruição gratuita o documentário Tschumistock – A Casa do Rock n’ Roll e se você é catarinense, gosta de música feita (ou tocada) em Santa Catarina e/ou está nessa simplesmente pela zoeira tem a obrigação de assisti-lo. Conta a história do festival realizado de 1995 a 2008 no sítio da família Tschumi (daí o nome), entre as cidades de Rio do Sul e Lontras.

O filme foi parte do trabalho de conclusão do curso de jornalismo do colega Rafael Weiss em 2002. Não estranhe a qualidade das imagens: o único registro que sobrou estava em VHS, já que o original em DVCam foi roubado do carro do realizador. Eu fico imaginando a reação do ladrão ao ver as imagens e me consolo pela perda.

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Ah, pois é

Gestor de festa – No país em que traficante se vicia, gigolô se apaixona, prostituta goza, pobre é de direita, liberal faz concurso público e comunista bate o tambor para Exu, mais uma criatura mitológica é detectada nesse perfil: o filho de bicheiro indignado com a corrupção.

10 motivos para você apoiar a reeleição do presidente Bolsonaro – Várias são as razões para querer ser governado por mais quatro anos pelo homem que passa madrugadas chorando no banheiro. Mas muito mais convincente é o aviso legal após a matéria: “Os textos aqui publicados não refletem a opinião do grupo” tal.

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PLAYLIST | o que a gente leva dessa vida é a vida que a gente leva



Inspirado pela última temporada de Narcos, meti umas latinagens pa detonar tu cabezón. Aí me perdi – inclusive no horário. Mas, tecnicamente, até 23h59 é terça-feira, como bem sabem as colegas que já dependeram de mim para cumprir prazos.

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20211110

Como não escorregar na casca da banana



Andava pelo bairro sonhando em cantar como Dio no Black Sabbath que rolava no fone quando comecei a ouvir vozes na cabeça. “Atravessa a rua, atravessa a rua”, alternavam-se em jogral. Intrigado, obedeci. Na calçada oposta, tinha uma casca de banana já meio escurecida. Fingi que ia amarrar o cadarço e me abaixei para observar melhor os efeitos da decomposição. As manchinhas pretas eram, na verdade, letras que formavam palavras que formavam frases. “Nunca foi uma excelente cantora” e “era gordinha e brigava com a balança”, identifiquei.

Ainda procurando algum significado para aquelas inscrições, uma das vozes explicou que faziam parte de uma análise da trajetória de Marília Mendonça publicada em um grande jornal. Reclamou que nem morta a mulher deixava de ser avaliada pelo peso; que se fosse um homem ninguém ia falar da barriga dele; que a luta contra a objetificação do corpo feminino pelo patriarcado é uma guerra diária; que normalizar esse tipo de ataque gratuito, covarde, ofensivo, machista e misógino ajudava a legitimar o show de horrores do Brasil atual. “E ela cantava superbem”, arrematou.

Outra voz reagiu. Defendeu que as tais menções apareciam no 10º e do 11º parágrafos de um longo artigo elogioso sobre as marcas e a importância dela não só para o sertanejo, como também para a música nacional; que a abordagem ao seu peso estava inserida em um contexto de ditadura estética que discriminava a própria artista; que ela mesma divulgava seus regimes, dietas e procedimentos para emagrecer; que o tribunal da internet confundia fato com opinião e jornalismo com textão canonizante para redes sociais. “O resto é gosto pessoal, concorde-se ou não”, decretou.

Munidas de suas razões, ambas as vozes exigiam que eu me manifestasse. Eu poderia me alinhar aos que pregavam o linchamento do autor por um crime imprescritível e condená-lo ao banimento eterno. Eu poderia relativizar a gritaria e acreditar que os trechos isolados não refletiam o tom do artigo. Nas duas hipóteses, eu deveria ler o texto inteiro antes de me posicionar. Ao pegar o celular para acessar o link, vi a bolinha vermelha sinalizando uma nova mensagem no WhatsApp. Fora enviada por um número desconhecido que começava com 1, seguido de 876, mais sete algarismos.

Abri. Era o Bob Marley da Casca de Banana. Em uma tradução livre do patoá jamaicano, dizia mais ou menos assim: “A Babilônia não tá interessada no que tu acha e muito menos se tu tá no teu lugar de fala [‘situated knowledge’, no original], só quer que tu escorreggae. Em vez de jogar xadrez com pombos, te liga nos três passarinhos e tudo vai dar certo, man.” Teclei “obrigado, Bob da Banana!” e estava pronto para prosseguir a caminhada, mas ele queria papo. Primeiro, mandou um joinha. Depois, avisou que havia sido feito um depósito na minha conta e pediu que eu confirmasse o PIX para recebimento clicando no link informado.

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O que aprendi com a política



Na noite de 8 de novembro de 2019, eu estava no salão de um restaurante de uma cidade próxima à fronteira com a Argentina para mais uma agenda de trabalho. O partido promovia um encontro regional com dirigentes, vereadores, prefeitos, deputados estaduais e federais, pré-candidatos e ex-ocupantes de cargos eletivos. Do menor ao maior, eles se revezaram no microfone para destacar o comprometimento da legenda com a democracia, louvar realizações de correligionários e reafirmar sua confiança na vitória nas eleições do ano seguinte. Nenhum pio sobre o que havia acontecido no final de tarde.

Às 17h40 daquela sexta, Lula era solto depois de 580 dias em uma cela especial com 15 metros quadrados isolada no último andar da sede da Superintendência da Polícia Federal em Curitiba, onde cumpria pena superior a 12 anos por corrupção e lavagem de dinheiro. O petista devia a liberdade à decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de permitir que condenados só fossem presos com o trânsito em julgado, ou seja, esgotados os recursos judiciais. Pelo placar apertado de 6 votos a 5, a Corte alterava a jurisprudência que, desde 2016, autorizava prisões logo após a condenação em segunda instância.

Nem uma simples alusão, uma saudação, um protesto, um gracejo, nada: em uma reunião de políticos para falar de política os oradores conseguiram discursar por mais de quatro horas sem mencionar o maior fato político do dia, quiçá do ano. Para eles e para a plateia que ouviu tudo à espera da maionese que seria servida na sequência, importava (em ordem aleatória) garantir emendas, selar acordos, arrancar promessas, cavar um lugar na chapa, arrumar um emprego, tirar selfies, postar. A realpolitik atropelava qualquer idealismo, qualquer ideologia.

Ali, no mundo de boletos, salários, aluguéis, empréstimos e dívidas, a política se desenvolvia a varejo, atendendo a demandas práticas com resultados imediatos e recíprocos. Lula, a Vaza-Jato ou mesmo Moro e Jair não passavam de abstrações que interessavam somente a uma minoria privilegiada por ainda ter senso crítico. Essa foi uma das lições que aprendi em um meio que já pagou por meu tempo e meu ofício em cinco ocasiões – da direita à esquerda, sempre como indicação técnica, como convém a um profissional não vinculado a nenhum partido. Aqui vão outras:

Quem tem cargos, tem prioridade. Nada tem capacidade maior de atrair aliados, conquistar apoios e mobilizar militantes do que cargos. E só quem tem cargos a distribuir é quem tem mandato ou controla feudos governamentais. Pode ser um reles vereador ou um secretário do primeiro escalão: durante seus quatro anos no exercício da função, ele será mais útil para o partido do que um ex-governador ou ex-senador.

Quanto mais pessoas lhe deverem favores, melhor. É uma consequência direta da situação anterior: um dia você dá para no outro poder pedir. Cargos, verbas, indicação, carona, um cigarro, o escambau. O político que se norteia por esse mantra nunca é abandonado na beira da estrada, porque sempre haverá quem se sentirá com a obrigação moral de lhe estender a mão – principalmente quando ele estiver sem mandato.

Comissionado bajula, terceirizado fala a verdade. Está implícito no contrato de cada pessoa lotada no gabinete de um político que sua função primordial é puxar o saco dele. Quando está disposto a pagar – sempre com dinheiro público – para ouvir que está errado, ele vai buscar uma consultoria externa. De preferência, prestada por alguém que possa ser enquadrado no item anterior.

Tem bastante gente bem-intencionada e preparada. A criminalização da política reforçou a crença generalizada de que todo o político é bandido. Não é verdade. De progressistas a conservadores, há muitas pessoas que entendem de políticas públicas e entraram nessa com o firme propósito de construir uma sociedade melhor. O problema é que elas sempre perdem a vez para especialistas nos tópicos anteriores.

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Agora, algo que realmente preste

Agnotologia – Você sabe que vive no melhor dos tempos e no pior dos tempos ao mesmo tempo quando descobre que foi inventada uma ciência para estudar a “produção da ignorância” de forma intencional. Tudo leva a crer que em breve o Brasil será reconhecido como uma potência na área.

Músicas menores e mais objetivas – Solução para prender a atenção dos jovens que não ouvem canções com mais de dois minutos e meio de duração até o fim, característica que já está sendo chamada de “audição ansiosa”. Eu me surpreendo como a cada dia o mercado musical adota regrinhas para contornar o óbvio: esse público não gosta de música.

Por que este texto pode mudar seu cérebro – Como a leitura altera a química, a física, o funcionamento e a anatomia do nosso cérebro. Difícil vai ser convencer o cara que não tem saco para ouvir uma música de dois minutos e meio a ler.

Pão – Conto de Margaret Atwood publicado em 1983, dois anos antes de a autora canadense lançar o livro que originaria a sensacional série Handmand’s Tale. Achei muito bonito o trecho abaixo:

Imagine uma fome intolerável. Agora imagine um pedaço de pão. As duas coisas são reais, mas ocorre de apenas uma estar no mesmo cômodo que você. Coloque-se em outro cômodo, é para isso que serve a mente.
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APARELHO | Quem matou a alavanca na guitarra foi criado a gérmen de trigo



Uma verdadeira ficção é uma verdade que nunca aconteceu? Se você toca “Polícia” e em seguida aparece uma viatura significa que a lei é para todos? Que sabor um vegetariano sente de um bife que não está comendo? Esses e outros koans moleques permeiam mais uma edição recheada de truísmos nada óbvios que a realidade consensual insiste em ignorar. Mas, enquanto Buda permitir, estaremos aqui para lembrar que nem sempre se vê a mágica do absurdo. O pai tá ooooom!

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PLAYLIST | doce como açúcar, explode na sua boca



Diz o clichê que política é como nuvem: você olha e ela está de um jeito; olha de novo e ela já mudou. Música também pode ser assim, só que a nuvem é você. Tudo depende das circunstâncias.

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20211103

Apontamentos sob a sombra da morte



Acompanhar o processo completo, da chegada do corpo à retirada das cinzas do forno. Entre uma coisa e outra, anotar etapa por etapa, os aspectos técnicos, os rituais, curiosidades. Bem contado, podia render uma boa história. Pena que algum diretor achou que talvez não fosse uma pauta adequada para entreter a família catarinense na edição de um domingo qualquer de 2018 do jornal. Depois de eu ter passado a tarde inteira em um crematório na Grande Florianópolis.

Fui recebido em uma sala no segundo andar de um imóvel com fachada de templo romano – incluindo colunas – e janelas de vidro fumê. Um senhor magro, de camisa por dentro do jeans, sapato, óculos sem armação, sotaque caipira e humor peculiar me atendeu. Era o gerente. Disse ter entrado no ramo em 1996, quando começou em uma funerária. Saiu, não aguentou dois anos fora. “A gente sempre volta, nem que seja como cliente”, piscou, me convidando a descer para um tour.

Pela movimentação no térreo, alguém estava prestes a ir para sempre. A cerimônia de despedida é realizada em um salão com paredes verde-escuro, carpete bege e auditório com 80 lugares. À esquerda, um telão com imagens da idosa falecida. No palco, o caixão com o corpo repousa sobre um altar. Do púlpito à direita, o cerimonialista elogia a mulher por uns 30 minutos. Os 23 presentes se levantam das poltronas marrons acolchoadas e se aproximam do esquife para uma última prece, um último olhar, um último adeus.

Pétalas caem no palco enquanto as cortinas roxas se fecham, “representando o ato final, o encerramento do espetáculo desta vida”, cochicha o gerente no meu ouvido e eu fico em dúvida se é outra piada. Entre abraços e fungadas, ninguém vê o caixão sendo levado por uma esteira até a cremação, em uma sala revestida de azulejos brancos com dois fornos gigantes. “Preferimos chamar de cinerador; a ideia de colocar um ente querido em um forno causa uma certa angústia nas pessoas”, corrige o anfitrião, seguramente falando sério.

Ele explicou que o corpo – com caixão e tudo – é mantido em uma câmara fria até conhecer o forno (ué, não era para evitar a palavra?), o que deve ocorrer em até 72 horas. Antes, é obrigatório verificar se o morto tem marca-passo ou similares e, se for o caso, retirá-los. Polímeros como teflon e náilon, usados em roupas e adereços, também precisam ser removidos, junto com sapatos com solas de borracha. Feito isso e liberados os trâmites burocráticos, as duas câmaras de combustão do forno (de novo!) são ligadas.

Quando a temperatura atinge 800 graus, o operador insere corpo e caixão na câmara primária. A secundária é mantida a 1000 graus para eliminar os odores da cremação. A magia acontece em menos de uma hora. “Quanto mais gordo, mais rápido, porque a gordura aumenta a combustão”, informa o gerente. Um adulto se transforma em, em média, 1,5 quilo de cinzas e resíduos calcinados, que são arrastados com um rastelo para uma gaveta removível na parte central do forno (desisto).

Em seguida, tudo é triturado para uniformizar o tamanho dos grãos que serão guardados em uma urna a ser entregue para a família. A empresa não divulga números, mas o gerente revelou que parte substancial do faturamento vinha dos acessórios. Há urnas para todos os bolsos: mais simples (R$ 200), hidrossolúveis, ou seja, feitas de material que se dissolve na água (R$ 1,5 mil), de resina (R$ 2 mil), metal (R$ 5 mil) e de cristal (a partir de R$ 690). A contratação dos serviços do crematório dava direito a, além da cremação, uso da capela/auditório, velório, cafezinho e a uma urna básica (de vidro ou madeira).

A responsabilidade pelo destino – ou descarte – das cinzas é do cliente, a não ser que ele faça uma declaração por escrito autorizando a empresa a cuidar disso. Aí elas são espalhadas pelo jardim do crematório. Outra opção era pagar por um lugar no columbário, a “sala de memórias” com 92 lóculos (nichos) para guardar restos mortais e visitar no Dia de Finados. De acordo com o gerente, a próxima inovação seria a adoção de um QR Code que, ao ser lido, dá acesso a um “obituário poetizado”, com fotos, vídeos ou lembranças do morto.

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Minha vó sempre dizia que só gente ruim tem medo de morrer. Eu era obediente, ia à missa todo domingo e tirava notas altas na escola: um guri bom dentro do microcosmo a mim reservado quando criança. Mesmo assim, perdia o sono atormentado pela possibilidade de dormir e não acordar mais. Vai ver, eu não era um guri tão bom quanto pensava ser. Nunca fiz terapia para descobrir (também) o porquê disso.

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Nenhum parente próximo havia desencarnado até dezembro de 1980, de modo que a primeira morte que me impressionou foi a de John Lennon. Eu já tinha idade na passagem de Elvis, três anos antes, mas nem liguei, embora entendesse muito melhor o rebolado do rei do rock do que o mundo sem países nem religiões de “Imagine”. A fama do ex-beatle, a banalidade de seu assassinato e aquela capa de Veja apenas com uma ilustração dele e a manchete “Lennon e o nosso tempo” me deixaram muitas noites em claro.

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Do pop, a morte que mais senti foi a de Adam Yauch, dos Beastie Boys, em 2012. Primeiro porque eu era fãzaço da banda, que foi mudando à medida que eu também mudava. E ninguém representava tão bem essa evolução quanto MCA, como ele assinava: o moleque escroto que cresceu e virou um budista engajado em causas humanitárias. Segundo, e mais grave, porque ele tinha 47 anos quando o câncer o levou. É muito triste e assustador quando pessoas da mesma geração que você começam a partir por causas naturais.

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Minha relação com a morte se divide em antes e depois do personagem Sandman, de Neil Gaiman. Uma das irmãs do Mestre dos Sonhos é justamente ela. Esqueça o manto, a foice, a aparência lúgubre. A personagem Morte se veste como uma roqueira e carrega no pescoço um colar com um Ankh, a cruz egípcia que simboliza a vida. É uma jovem sensível, gaiata e gentil, que compreende e aceita todo mundo sem julgar e gosta dos mortais de um jeito que eles começam gostar de si próprios também. Em um dos quadrinhos dedicados a ela, a atriz Claire Danes (do filme Stardust – O Mistério da Estrela, adaptação do livro de Gaiman e Charles Vess) descreve:
A Morte tem corpo de modelo, roupa de poeta e o sorriso de sua melhor amiga. (...) Pensamos na Morte como algo ruim, mas ela é a melhor das companheiras: deixa a escolha bem clara para nós e diz, usando seu exemplo, que ficar obcecados com coisas como violência, cobiça, preconceito e solidão nos impede de estar perto dos outros, de nos divertir e de realizar nossa grande obra. Assim, só desperdiçamos nosso tempo aqui.

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Dos poucos obituários que fiz, um permanece inédito. É o de um velho político que sofrera um AVC e, conforme sugeriam os boletins médicos, sairia direto do hospital para o necrotério. Varei a madrugada batucando o teclado sobre o dito cujo e as controvérsias em que se meteu durante a vida pública para que no dia seguinte, tão logo se confirmasse o óbito, o texto fosse publicado no site do jornal. Pois o figurão se recuperou e está por aí até hoje, todo pimpão. Que bom. Para ele, por motivos óbvios; para mim, porque nada do que eu havia escrito superava o comentário mordaz de um colega: “Mais vascular do que cerebral, fulano foi um acidente na política estadual”.

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Meus familiares e amigos sabem que quero ser cremado. Também sempre imaginei que iria me integrar ao cosmo tendo como trilha sonora Electric, do The Cult, o disco que mudou minha vida – já falei do impacto que o álbum, lançado em 1987, teve para mim em uma edição da descontinuada revista Bizz com esse tema, um dia conto aqui. Agora, pensando melhor, gostaria de me esvair ao som de “Não Estou Nem Aí”, de Arnaldo Baptista, para decolar toda manhã. Mas até lá eu não vou me esconder.

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APARELHO | De volta, descarado e desencanado como um baseado apertado em plena novela das oito



Ah, nada como férias não remuneradas para renovar a disposição em evitar que a política contamine nosso astral. Entre a patifaria diuturna do lorpa eleito pelos paspalhos de bem e a cruzada dos pascácios contra um personagem de quadrinhos, ficamos com a música, com a arte, com o sarro & demais instituições pequeno-burguesas para alienar as massas.

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PLAYLIST | aqui de cima é tão tranquilo



Alguns mortos queridos, esperança e transcendência. Não tenha pressa, que eu não tenho medo.

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