20211117

Música fácil para um mundo difícil



Quase não falo de música aqui, mas as leitoras exigem. Querem saber se o Silk Sonic, projeto de Bruno Mars e Anderson Paak, é mesmo tudo isso que andam lendo por aí. Como sou um cara mellow, respondo sem medo de ser cancelado: sim. E, parafraseando o mordaz H. L. Mencken, digo mais: para um mundo difícil, existe sempre uma música fácil, elegante e completamente certa no disco de estreia da dupla, lançado nessa sexta. Espero não ter decepcionado ninguém.

An Evening with Silk Sonic é o que acontece quando dois estetas confirmam a expectativa criada pela junção de seus talentos. Popstar, o havaiano Mars aliou o sucesso comercial que já tinha e o respeito artístico que perseguia graças ao hit “Uptown Funk”, em 2014, evocando a black music da década de 1970. Muitíssimo menos famoso do que o colega, o californiano Paak construiu uma carreira entre o rap e o R&B, tão elogiada pela crítica quanto desconhecida pelas massas.

A parceria nasceu em 2017, na perna europeia da turnê 24K Magic, de Mars, aberta por Paak. Entre um show e outro, eles se enfiavam no estúdio. A experiência deu liga e um disco colaborativo era questão de tempo. A oportunidade pintou no início de 2020 e começou a escalar o topo das paradas no último mês de março, com o single “Leave the Door Open” – uma simpatia retrô que cura a rabugice, afasta a ziquizira e traz o amor de volta em quatro minutos.



Logo na sequência veio outra joinha com a alma no passado, “Skate”, que só pelo verso “você cheira melhor do que um churrasco” já valeria a menção, não tivesse também um balanço fino que desliza pela cintura. E nada do disco. Ainda rolou a manhosa “Smokin Out the Window”, até finalmente o Silk Sonic entregar o que as preliminares prometiam: uma noite (expressa no título do álbum) curta (meia horinha de duração) e mágica (deixa com vontade de pedir mais).

Quebrada a resistência, Mars e Paak se dedicam à manutenção do clima. O baixo ventre continua mexendo forte com “Fly With Me”. Há as inevitáveis e necessárias baladas “Blast Off” e “Put on a Smile”. “After Last Night” estabiliza o ritmo, com o baixista Bootsy Collins (ex-Parliament/Funkadelic, outro ícone revisitado) e um nome da geração atual, Thundercat. A única faixa que destoa – embora segure a onda – é “777”, emoldurada pelas rimas da metade rapper sobre uma base racha-assoalho.

Mais do que qualquer música específica, fica evidente o capricho em cada detalhe de An Evening with Silk Sonic. Para ter certeza de que as percussões usadas iriam soar como pretendiam, a dupla pesquisou em antigas revistas de bateria. Parte do disco foi gravada no mesmo Royal Studios de Memphis onde Al Green eternizou LPs clássicos. Cordas foram conduzidas e arranjadas por Larry Gold, da banda MFSB, estrela da Philly Internacional, a gravadora que sofisticou o funk.

Em pleno Culto do Amador, uma era marcada pela valorização algorítmica e consumo frenético de tanta música mal feita, Mars e Paak pegam a contramão para transcender a nostalgia onipresente no disco. Apesar da estética setentista, o mundo que idealizam é atemporal, um não lugar em que problemas e problematizações se dissipam em alienação e escapismo. Seja bem-vinda a essa vibração, ainda que apenas por um breve momento.

(Extraído da newsletter Extrato. Assine já e garanta o seu exemplar antecipado todas as terças!)

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