20211124

Quem apanha não esquece



Carlinhos Brown construiu uma bonita história para contar aos descendentes. Já estive no Candeal para entrevistá-lo e vi o que ele fez pela autoestima dos moradores da comunidade, em Salvador. O atual técnico do programa The Voice Brasil acaba de escrever mais um capítulo de sua lenda pessoal: declarou que as vaias e a chuva de garrafas e copos que recebeu da plateia no terceiro Rock In Rio, em 2001, foram motivadas também por racismo.

Eu estava lá naquele domingo, 14 de janeiro. Não joguei nada em ninguém, preferi me distrair com o Rumbora no palco secundário. Brown foi a segunda atração do dia, iniciado com o Pato Fu. Os mineiros amansaram as 180 mil pessoas que esperavam pelo Guns n’ Roses abrindo com “Capetão 66.6 FM” e gritos de “vamos detonar essa porra”. Na introdução de “Depois”, a vocalista Fernanda Takai disse que “essa é uma das músicas mais fofinhas do mundo e vamos tocá-la porque achamos que as pessoas deveriam ser mais fofinhas”.

Quando Brown subiu ao palco principal e pediu para os bombeiros pararem de jogar água na multidão que derretia sob um calor de 40 graus, a fofura se transformou em uma saraivada de objetos plásticos. O baiano reagiu. “Pode jogar o que quiser, que eu sou da paz e nada me agride”, “Vocês, que gostam de rock, têm muito o que aprender na vida, aprender a amar. E o dedinho pode enfiar no traseiro”, respondeu. Não me lembro se ele tocou o hit “Água Mineral”, muito apropriado para a ocasião.

Mais tarde, no camarim, o artista refletiu: “Rock’n’roll é coisa de criança. Entre rock e Xuxa, não há nenhuma diferença. Rock não é pesado. Pesado é uma escola de samba com 300 homens tocando.” Foi exatamente o que Axl Rose fez, chamando a bateria da Viradouro para encerrar uma noite que teve ainda Ira!, Ultraje a Rigor, Papa Roach e Oasis. A Brown, restou a distinção de entrar para o clube de artistas vaiados no festival, como Kid Abelha, Ney Matogrosso e Erasmo Carlos em 1995 e Lobão em 1991.

Ou melhor, o único negro vaiado. Na época, ninguém – nem ele – associou a hostilidade ao preconceito racial. Nem no ano passado, ao reavaliar o episódio. Pelo contrário. “No caso do Rock In Rio era necessário, porque eu também provoquei aquilo. Eu sou um provocador. Eu precisava provocar aquilo”, afirmou, tirando sarro dos roqueiros que o tornaram conhecido no mundo inteiro. Pelo visto, parece que Brown mudou de opinião. Tem todo o direito. Só ele sabe o que sentiu.

(Extraído da newsletter Extrato. Assine já e garanta o seu exemplar antecipado todas as terças!)

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