20211110

Como não escorregar na casca da banana



Andava pelo bairro sonhando em cantar como Dio no Black Sabbath que rolava no fone quando comecei a ouvir vozes na cabeça. “Atravessa a rua, atravessa a rua”, alternavam-se em jogral. Intrigado, obedeci. Na calçada oposta, tinha uma casca de banana já meio escurecida. Fingi que ia amarrar o cadarço e me abaixei para observar melhor os efeitos da decomposição. As manchinhas pretas eram, na verdade, letras que formavam palavras que formavam frases. “Nunca foi uma excelente cantora” e “era gordinha e brigava com a balança”, identifiquei.

Ainda procurando algum significado para aquelas inscrições, uma das vozes explicou que faziam parte de uma análise da trajetória de Marília Mendonça publicada em um grande jornal. Reclamou que nem morta a mulher deixava de ser avaliada pelo peso; que se fosse um homem ninguém ia falar da barriga dele; que a luta contra a objetificação do corpo feminino pelo patriarcado é uma guerra diária; que normalizar esse tipo de ataque gratuito, covarde, ofensivo, machista e misógino ajudava a legitimar o show de horrores do Brasil atual. “E ela cantava superbem”, arrematou.

Outra voz reagiu. Defendeu que as tais menções apareciam no 10º e do 11º parágrafos de um longo artigo elogioso sobre as marcas e a importância dela não só para o sertanejo, como também para a música nacional; que a abordagem ao seu peso estava inserida em um contexto de ditadura estética que discriminava a própria artista; que ela mesma divulgava seus regimes, dietas e procedimentos para emagrecer; que o tribunal da internet confundia fato com opinião e jornalismo com textão canonizante para redes sociais. “O resto é gosto pessoal, concorde-se ou não”, decretou.

Munidas de suas razões, ambas as vozes exigiam que eu me manifestasse. Eu poderia me alinhar aos que pregavam o linchamento do autor por um crime imprescritível e condená-lo ao banimento eterno. Eu poderia relativizar a gritaria e acreditar que os trechos isolados não refletiam o tom do artigo. Nas duas hipóteses, eu deveria ler o texto inteiro antes de me posicionar. Ao pegar o celular para acessar o link, vi a bolinha vermelha sinalizando uma nova mensagem no WhatsApp. Fora enviada por um número desconhecido que começava com 1, seguido de 876, mais sete algarismos.

Abri. Era o Bob Marley da Casca de Banana. Em uma tradução livre do patoá jamaicano, dizia mais ou menos assim: “A Babilônia não tá interessada no que tu acha e muito menos se tu tá no teu lugar de fala [‘situated knowledge’, no original], só quer que tu escorreggae. Em vez de jogar xadrez com pombos, te liga nos três passarinhos e tudo vai dar certo, man.” Teclei “obrigado, Bob da Banana!” e estava pronto para prosseguir a caminhada, mas ele queria papo. Primeiro, mandou um joinha. Depois, avisou que havia sido feito um depósito na minha conta e pediu que eu confirmasse o PIX para recebimento clicando no link informado.

(Extraído da newsletter Extrato. Assine já e garanta o seu exemplar antecipado todas as terças!)

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